Jornal do Brasil – Rio de Janeiro, 14 de junho de 1997.
Telmo Wambier
Dos sentimentos do ser humano a felicidade é a mais sutil. Encoberta pela ansiedade, pelo desejo, pela ambição, normalmente é percebida como tempo passado. Vivido. “éramos felizes e não sabíamos”. Porque costuma-se confundí-la com a satisfação do desejo, com a conquista, com a posse. Dificilmente é sentida como presente e separada do ter. O ser humano está fadado à miséria da insatisfação. E talvez por isso a coloque sempre como tempo futuro ou passado. Raramente no presente.
Cego pela ansiedade, presa da propaganda e do consumo, o homem caminha por sobre ela numa rua ensolarada sem dar por isso, engole-a sem sentir-lhe o sabor, confunde-a entre sons e cheiros. A percepção da felicidade em sua sutileza é privilégio de poucos. E entendê-la como possibilidade construída no minimalismo existencial, de menos ainda.
O Cachorro e o Lobo, a mais recente criação de Antônio Torres, é um romance com título de fábula, que na essência versa sobre isso. Ou uma fábula na forma de romance. Que conta de um “cachorro” que procura a felicidade. Imagina-a vagando entre as luzes da cidade grande, já que não a vê onde nasceu. Deixa a sua Junco, um vilarejo perdido nos confins da Bahia, “terra de filósofos e loucos”, e perde-se imaginário São Paulo- Paraná, a terra rica do sul, paraíso verde onde as chuvas são um perene mês de maio e que “fica pra lá do Vale AnhangabaÚ, do Viaduto do Chá”. é dos cachorros o tudo revirar, na busca curiosa da vida.
Retornar 20 anos depois para comemorar os 80 anos do pai, um velho e matreiro lobo solitário, que todos tomam por maluco e bêbado. é dos lobos a solidão e a territorialidade. E descobre ali, no silêncio da cidadezinha quieta, “enfeitada de arvores e antenas parabólicas, à espera do fim do mundo”, entre os fantasmas do passado e a nostalgia da lembrança, tudo que um ser humano precisa para ser feliz.
Ela não está no São Paulo-Paraná, com seus carros, luzes e civilização. Mas no jeito de se olhar as coisas. Devagar, reparando na grandeza que há nelas. No sol que filtra pela janela da tapera do pai e ilumina a ponta de um banco de madeira, na sombra de uma amendoeira contra o cimento do passeio da rua, no cheiro da macaxeira colhida na horta do fundo do quintal.
Nas três etapas de um dia que segue o curso do sol – manha, tarde, noite – o narrador revisita a infância, a paz, o silêncio do passado. Conversa com os seus fantasmas e redescobre a sábia ingenuidade do pai que só, livre da família, tem por companhia meia-dÚzia de galinhas, que ciscam mas não falam. LÚcido e feliz, não precisa da civilização mais que cigarros, fósforos e sal. Uma vida de poucas necessidades.
Como todo filho do lugar que vai para terra dos sonhos, é recebido com festa, como celebridade. E percebe quão pouco se é pelo ter. E a riqueza do pai, traduzida na paz do cigarro fumando à janela da casa da rua. E no silêncio com que percebe a chegada da noite.
Na volta ao Junco, percebe que se afasta da paz ao criar necessidades desnecessárias. E entristece ao descobrir que o progresso e suas vicissitudes é inevitável. Que não tem mais serenata e prosa depois do jantar. Foram substituídas pela novela que entra pela parabólica. Mas ainda restam, lá, na praça, a Igreja do Povo de Deus, a bóia feita no fogão de lenha e um solão danado que reflete o branco das casas.
O progresso trouxe televisão, vídeo, o primeiro assalto, tudo isso posto no lugar dos causos, das visagens. Do sobrenatural. Tirou o povo da praça, chumbando-o às poltronas das salas. As longas noites, a noite, mãe das almas, madrinha dos sonhos, acabou. Como eram longas. Encurtou a saia das moças e a imaginação dos homens.
Mas nada disso tem muita importância. O Junco continua lá, no fundo da memória, a lembrar que o essencial pode ser vivido ali ou em qualquer parte, desde que se preste atenção nele. E que é feito de bem pouco. Muito pouco.
O banco levou tudo do velho lobo. As terras, a casa. Da antiga sobrou apenas um caco de telha. Só lhe restou a tapera, dois palmos para uma horta, as galinhas. E a sabedoria que o banco não leva. Eis aí. Isso lhe basta. Mais não precisa. Lá embaixo está a rua, como o lugar sempre foi chamado, desde os seus tempos de povoado. Virou uma cidadezinha quieta, silenciosa, enfeitada de árvores e antenas parabólicas. Talvez por isso fique olhando cismado para o radinho de pilha que ganha na despedida. “Não precisava”. Pra que se incomodar?
Vinte anos depois da publicação de Essa Terra, romance emblemático dos anos 70 que se tornou um clássico, Antônio Torres dá meia-volta. Seu narrador caminha novamente sobre sua terra.
O cachorro e o lobo demarca a maturidade do estilo. é o nono livro do autor, editado pela Record. Bom, leve, fácil, recheado ora de humor fino, ora do melancólico nordestino que mora na cidade grande mas namora com o interior. Numa linguagem enxuta, sem excessos, amarra o leitor à poltrona do começo ao fim. Livro para se ler de uma sentada. São 219 páginas. E depois ficar pensando se não está na hora de mudar de vida. De parar um pouco com o São Paulo-Paraná e procurar o Junco, ainda que numa janela da Avenida Paulista.
Escritor retoma personagem de 1976
Totonhim, o protagonista do novo livro de Antônio Torres, O cachorro e o Lobo, tem muitos pontos em comum com o seu criador. Ambos nasceram na pequena cidade de Junco, interior da Bahia e foram tentar a vida em São Paulo. Há quem chame Torres de Toninho, como o escritor e amigo Eric Nepomuceno, aproximando os nomes. No entanto, as semelhanças terminam aí. Enquanto Totonhim precisa voltar para Junco por ocasião do aniversario de 80 anos de seu pai, Torres nem pensa nesta possibilidade. “Sou um urbanóide, sempre gostei da cidade grande. Quando saí de Junco sabia que era uma viagem sem volta.”
E foi o que fez, mas ao poucos. Primeiro mudou-se para Alagoinhas para estudar e depois foi para Salvador, onde começou a escrever no Jornal da Bahia. Quando chegou em Salvador criou coragem para ganhar o Sul maravilha começando por São Paulo. Só mais tarde, depois de um período de três anos em Portugal, veio para o Rio de Janeiro. Isso não impediu, no entanto, que Antônio Torres revisitasse diversas vezes a cidade natal através de sua ficção. “Vim do interior, minha memória está nele. Isso me permite ficcionalizar histórias sobre Junco”. O caminho na ficção de saída e de volta a Junco já foi feito há 20 anos em Essa Terra, em 1976. Nele, o irmão mais velho de Totonhim, depois de passar 20 anos em São Paulo volta para a cidade, se desilude com o que encontra e acaba se enforcando no gancho da uma rede.
é a partir desta história que se desenvolve a trama de O Cachorro e o lobo. “O cenário e o personagem dos dois romances são os mesmos. Mas as histórias seguem idéias diferentes. Enquanto o Essa Terra tem uma tragédia por trás de si, O Cachorro e o Lobo tem um olhar otimista”. A cidadezinha de Antônio Torres deixou para trás quando tinha apenas 14 anos aparece no novo romance como um pequeno paraíso semidestruído, que absorveu a modernidade através das antenas parabólicas, do asfalto e até dos assaltos que já começam a acontecer. “Mas não existe desilusão na descoberta desta nova cidade. O romance não é saudosista nem cheio de falsos otimismos. Ele mostra que estes lugares perderam parte de sua identidade, se tornado híbridos”.
No entanto, esta descoberta não desagrada ao personagem. Ele vai chegar a pensar se realmente pode ter um lugar ali. “O mais importante do livro é o reencontro dele como seu pai, seu passado e consigo mesmo”. De uma forma ou de outra, este reencontro literário foi difícil de ser realizado pelo autor. O escritor passou quase quatro anos elaborando o romance, e depois depurando a linguagem e forma. “às vezes eu achava que não ia conseguir fazer o livro. Parava uns tempos, depois voltava. Sempre tive medo de fracassar nesse projeto, mas hoje posso dizer que foi um livro que me deu prazer.”
Quanto à sua própria vontade de voltar ao lugar e rever a família, Antônio é categórico: não volta. Gosta das cidades grandes em que morou e não hesita em viajar mais para conhecer outras e colher material para novos romances. Mas existe uma ponta de saudade da vida que podia levar em Junco. “Sinto falta do tempo em que eu era apenas eu, com uma japona, a pastinha do colégio na mão e um curioso olhar de descoberta”.