Processo criativo. Ou: Como uivar para a Lua numa noite sem a menor possibilidade de estrelas

UERJ, março de 1999

Em princípio, criar e coçar é só começar. Mas como é que se faz para começar?

Se tudo depende da primeira frase, já temos uma para entrar neste tema que vem despertando muita curiosidade, principalmente para aqueles que estão se iniciando no mundo das letras. Como se o processo criativo fosse a caixinha de Pandora que cada escritor guarda dentro de si. Essa busca ao tesouro começa com outra pergunta, curta e concreta, que pode gerar respostas longas e subjetivas, pois no entender deste já velho escriba não há arte mais abstrata do que a escrita. A pergunta é: “Como nasce uma história?”

Um escritor norte-americano chamado Henri Miller, hoje em desuso mas que fez muito sentido para a minha geração, definiu o processo criativo de uma forma um tanto quanto megalômana: “Deus fez o mundo em 7 dias. Depois entrou nele. Este o segredo da criação.” Já o nosso Glauber Rocha, um cineasta de vocação literária por excelência, e que tinha fama de delirante, baixou ao terreiro dos deuses afro-baianos, ao falar da gênese de seus filmes, em entrevista ao locutor que vos fala, quando do lançamento de Deus e o Diabo na Terra do Sol, em 1964. Disse ele: “O negócio é fazer mandinga e esperar o santo descer. Aí então a gente é bem capaz de fazer um take de 4 minutos, na mão, entre luz e sombra, entre foco e fora de foco, balançando ou não. Será possível ir aos infernos de outra maneira?” Clarice Lispector também confessou que às vezes ficava dias e dias, com os olhos na folha em branco, à espera de que o texto baixasse em seu teclado. Igual a qualquer um de nós, diante da telinha do computador, até que o milagre aconteça. Ou que uma voz salvadora sopre em nossos ouvidos: “Fé em si mesmo e mãos às teclas. Com sorte, você terá uma frase, ou um parágrafo, quem sabe uma página inteira que valha a pena.” E aí, coragem. Porque outras perguntinhas perturbadoras surgirão: “E agora? Como é que se faz para continuar?” E se uma Musa Inspiradora beijar-lhe as mãos, levando você ao êxtase, ao vórtice dos iluminados, ainda assim haverá ainda uma outra pergunta, a lhe deixar perdido no tempo e no espaço, completamente desnorteado: “Como vou terminar isso?” Sim, queridos, se o começo é difícil, o meio é uma tremenda mão-de-obra e o fim o ajuste de contas, como no Dia do Juízo. Uma só palavra fora de lugar e iremos para o inferno. Os leitores não anjos, cheios de candura para nossas besteiras.

O escritor aqui levou trinta anos para começar. Foram trinta anos lendo um livro atrás do outro, obsessivamente. Trinta anos pedindo socorro a Machado de Assis, Guimarães Rosa, Drummond, João Cabral, Maiakovski, Garcia Lorca, Walt Whitman, Rimbaud, Jorge Luís Borges, Vargas Llhosa, Garcia Márquez, Joyce, Faulkner, Hemingway, Scott Fitzgerald, Truman Capote, James Baldwin, Carson McCullers. Trinta anos lendo o Almanaque Capivarol e o Biotônico Fontoura, tanto quanto bula de remédio, para ver se achava a receita, enquanto cantava: “O teclado não me ama, o teclado não me quer. O teclado não me chama, de Baudelaire.” Trinta anos lendo rostos, ruas, becos, estradas, palácios, palhoças, igrejas, bordéis, campo e cidade, mar e sertão. E escrevendo. Para a cesta do lixo. Até que uma noite…

Era uma noite escura, sem a menor possibilidade de estrelas. E foi em São Paulo, esse país amigo ao Sul do Brasil, onde um dia William Faulkner, depois de ter bebido uma parte considerável do seu Prêmio Nobel, acordou numa ressaca miserável e, ao abrir a cortina do hotel para tentar saber em que cidade se encontrava, bateu na testa e disse: “Oh, my God, Chicago again?”

Pois foi lá mesmo, na locomotiva da nação, destino de todos os baianos, que o baiano aqui, numa noite de breu sem luar, percebeu que tinha algo nas mãos para começar, e que desta vez, quem sabe, seria para valer.

Estava sozinho num quarto de hotel barato da Alameda Barão de Limeira, tocando numa vitrolinha igualmente barata um disco de   Miles Davis, e repetindo a mesma faixa, o tempo todo. E a faixa do disco era uma velha e terna balada norte-americana chamada My funny Vallentine. A música do Dia dos Namorados. Só que no trompete de Miles Davis lembrava mais um lamento, pungente, um uivo lancinante. Foi aí que me lembrei do velho Faulkner, em Luz em Agosto: “É a memória, e não a dor, que faz você se lembrar de centenas de ruas selvagens e ermas.” Como lembrança puxa lembrança, me lembrei também de Fitzgerald, quando dizia: “Numa noite escura da alma, são sempre três horas da manhã.” O trompete de Miles Davis não apenas puxava essas leituras. Parecia interpretar os tormentos da minha geração. Uma parte dela ouvia Jimmy Hendrix e se entupia de LSD, até ir parar debaixo dos choques elétricos nos manicômios; outra parte gemia nos porões da ditadura, uivando até a morte para um luar inexistente. Pronto. Miles Davis acabava de soprar nos meus ouvidos o título que eu buscava há 30 anos: Um Cão Uivando para a Lua. Era só ir para o teclado e começar a história. Para encurtá-la: começou com a idéia de um louco batendo papo consigo mesmo. E de repente, não mais que de repente, o teclado andou. Agora, sim, eu e ele parecíamos nos entender, nos aceitar, com uma certa inimidade. E já que ele, o arisco teclado de antes, agora me deixava à vontade, fui em frente. E oito meses depois tinha um romance nas mãos. E foi como se tivesse tirado uma espinha da minha garganta. E depois do primeiro vieram outros, um após outro, mas nunca mais iria escrever um livro com tanta rapidez. É bom lembrar que por trás dele havia toda uma vida marcada, obsessivamente, pela busca de um texto. Aquele primeiro livro significou uma vitória sobre muitas mortes, porque eu vivia um terrível sentimento de morte, a cada tentativa fracassada, ao longo do percurso. E no entanto o fracasso faz parte do aprendizado. É a pilha de realimentação do seu processo, o limão que você pode transformar em limonada.

Muitos anos depois daquela feíssima porém bendita noite, vejo-me diante do mesmo e torturante impasse: como começar um romance. E era o oitavo romance! Outra vez uma tela em branco. Outra vez a sensação de estar de pote vazio, sem café no bule. Desta vez eu não iria ser socorrido por um gigante do jazz, mas por um Deus da chuva. Era domingo e começou a chover. Cheguei à janela do meu apartamento em Copacabana, ao pé de um morro, e fiquei olhando a chuva cair sobre as árvores. As folhas se eriçavam. Passarinhos cantavam. Aí me lembrei de um canário belga chamado Jacques Brel, ou melhor, de um trecho de sua música mais famosa, Ne me quites pas: “Eu te oferecerei, pérolas de chuva, vindas de um país, onde nunca chove.” Isso me remeteu para o lugar em que nasci, uma terra chegada a uma seca. Quando chovia, era uma festa: os homens vestiam ternos brancos e rolavam na lama, felizes da vida, loucos de alegria. Corri para o teclado e bati lá: “Eis aí. Eis-me de regresso a essa terra de filósofos e loucos, a começar pelo meu pai, que disso tudo tem um pouco.” E assim nasceu um romance chamado O Cachorro e o Lobo.

Para terminar: eu vim de longe, e já nem sei mais de onde é que eu vim, como cantava Vinícius de Morais, num afro-samba memorável, que ele compôs com Baden Powell. Queimei muito as solas dos pés no chão quente para chegar a uma escola. Venho de um mundo rural, um lugar esquecido nos confins do tempo, onde se achar um livro era uma odisséia. Ainda assim um dia cheguei à palavra escrita. Foi a maior conquista da minha vida. Portanto, nunca achei escrever um sofrimento ou um ato solitário. Solidão é a do boi no campo e a dos homens nas ruas – já dizia Carlos Drummond de Andrade. Solidão é quando termino um romance. É quando todos aqueles personagens que estavam ali comigo, batendo um papo que varava o tempo, vão embora, sem me dizer adeus. Escrever é, para este escriba, um barato. Claro que não é fácil. Mas, se fosse fácil, que graça teria?

*Texto apresentado na aula inaugural do Projeto Escritor Visitante, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, em março de 1999.