Prefácio da 1ª à 14ª edição – 1976/2000
Lígia Chiappini Moraes Leite
Quando a matéria é o sertão
“Produto Nacional Bruto; gente se alimentando de farinha de telha, sopa de farrapos e carne de rato”. Assim Antônio Torres definiu recentemente sua obra, firme na opção de tematizar um Brasil subdesenvolvido e temporalmente descontínuo. Tais palavras, como ele próprio esclarece, são ditas ainda sob o impacto de uma viagem pelo sertão da Bahia, recomeçada de certo modo nas páginas deste seu novo livro, onde o Junco aparece como um paradigma dos lugarejos nordestinos de “sopapo, caibro, telha e cal”, feios e secos como a gente que ai teima em sobreviver.
Para o autor, o simples fato de existirem muitos juncos pelo Brasil afora justificaria o livro. Embora possamos aceitar esse tipo de argumento, enteressa-me ressaltar alguns aspectos que ele poderia injustamente obliterar. Trate-se de elementos tipicamente ficcionais que, neste livro, alargam o documento, transfigurando a realidade para fornecer dela (paradoxo aparente de toda a arte) uma imagem mais profunda. Interessa mostrar sobretudo que fazer da ficção uma forma de conhecimento da realidade social leva a pôr em jogo um complexo de relações pelo qual autor e leitor também acabam na berlinda, porque são envolvidos pela rede dialógica do discurso ficcional, convite à auto-análise e à participação.
Não há dúvidas de que a estória de Nelo e Totonhim é exemplar. Nesse sentido caberia aqui uma análise que buscasse homologias entre esse mundo de palavras e a sociedade aí representada, através de situações e personagens típicos.
Seria possível mostrar, então, como são generalizáveis a muitas outras regiões brasileiras elementos como estes: a decadência do Junco, com a modernização representada pela chegada do banco por outras inovações que acabam acarretando a ruína dos plantadores e o êxodo para a cidade; nesta, o desemprego, as dificuldades da família numerosa para manter os filhos na escola ou mesmo conseguir o mínimo para a subsistência; a prostituição das mulheres (duplamente descriminadas numa sociedade eminentemente machista) ou a perpetuação de um estado miserável no casamento com indivíduos em condições econômicas igualmente precárias; o sonho da grande cidade como última esperança e, por fim, o esfacelamento desse sonho, diante da evidência de que a “mina de ouro” não é patrimônio comum.
No Junco e sua gente, reconhecemos tipos e situações que já constituem verdadeira obsessão nos romances de Antônio Torres. Em Um Cão Uivando para a Lua, encontramos um repórter como personagem principal, vivendo em São Paulo, mas cuja infância se passa no Junco, em condições muito semelhantes a do protagonista narrador de Essa Terra e de seu irmão, Nelo. Há um momento em que isso fica bem claro. Referindo-se aos meninos subnutridos da Amazônia, o personagem sugestivamente denominado A (o que reforça o seu caráter exemplar), diz: “Mas não era apenas neles que eu estava pensando. Isso também era outra coisa que eu já tinha visto antes, no Junco. Eu já tinha sido um daqueles meninos, eu era a soma deles todos”.
No livro seguinte, Os Homens dos Pés Redondos há igualmente um personagem denominado O Estrangeiro que também veio do Junco, para a grande cidade, onde trabalha como publicitário. Essa presença obsessiva de alusões à vida no Junco, principalmente ligadas à infância, apontam até mesmo para um certo cunho autobiográfico das estórias de Antônio Torres, como sugerem certas passagens do prefácio de Essa Terra, onde reaparecem esses elementos obsessivos que também vão entrar na composição deste romance. Entre outros, a família numerosa; a dificuldade em fazer o ginásio; a modernização do Junco contra o desenvolvimento do trabalho na lavoura; os amigos e conhecidos que emigram para as grandes cidades; os tipos reais que inspiram os seres ficcionais, embora não se confundam com eles, como o velho Giese, Lela de Tote, Humberto Vieira… Pode-se levar mais longe a analogia, se notarmos as semelhanças de certos nomes ou iniciais: Lela – Nelo; Antônio Torres – A e T (personagens de Um Cão…); Antônio Torres – Totonhim. Mas tudo isso ainda é o mais óbvio e o mais exterior no texto. Para alcançar uma dimensão mais profunda de leitura é preciso verificar como tipos e situações se refletem na consciência dos personagens neste romance e quais as relações entre uma certa consciência coletiva difusa e culpada da gente do Junco, com a consciência mais crítica, mas igualmente culpada, do narrador-protagonista.
Pela sondagem das idas e vindas dessa consciência a que o leitor tem acesso mais diretamente, porque grande parte da estória é narrada em primeira pessoa, é que se estabelecerá uma ponte entre o personagem, o autor e o leitor, rumo a uma representativa mais interna ao texto.
Quando a culpa faz crer no Apocalipse
Perpassa o livro todo uma culpa coletiva da qual participam em menor ou maior intensidade todos os moradores do Junco. E o pecado parece ter sido o abandono da terra, a entrega à sedução do progresso, a fidelidade concedida ao Anticristo, representado pelo banco, cujos empréstimos precipitam a decadência da lavoura com a imposição de plantar cizal. O banco e o sargento são os principais agentes estranhos que vêm disseminar o mal no pequeno lugarejo; com eles vem a televisão, as idéias extravagantes, as novidades citadinas, o palavreado enganoso, para roubar os braços fortes do cabo da enxada e enfraquecê-los no uso da caneta. As pessoas enlouquecem para purgar essa culpa coletiva: como Alcino, Pedro Infante, o prefeito, a mãe de Nelo.
A loucura vai-se alastrando à medida que a narração progride e a fala profética do doido Alcino dá coerência às alusões dispersas ao Apocalipse e às pragas de ilustres antepassados, como Antônio Conselheiro. A terra irada fala pela boca de Alcino uma linguagem bíblica. Sua voz é um pano de fundo constante contra o qual os acontecimentos do presente (que giram em torno da morte de Nelo) ganham uma dimensão trágica. A loucura põe a nu a culpa e a clama pela expiação.
E a culpa se configura cada vez mais na vitória da caneta contra a enxada, duas forças em conflito, personificadas em dois personagens-chaves: o pai e a mãe de Nelo. Esta, defendendo a ida para a cidade, a compra da televisão, a escola; o pai, sustentando a permanência na terra, o plantio, a união da família no trabalho da lavoura. Essa luta, por vezes, se interioriza num só personagem, como em Nelo que, embora nada possa esperar de São Paulo, onde perdeu tudo, não se adapta mais no Junco, à sua vida primitiva e seu conforto.
Mas a culpa de ter abandonado o pai, a lavoura e a velha casa o persegue e é retomada simbolicamente no remorso por ter perdido o chapéu. Este é símbolo dos tempos primordiais, “é do tempo de Deus nosso Senhor”. Imagem da proteção e de uma vida sem culpa, o chapéu aparece na cena em que Nelo está sendo agredido pelo primo e rival, numa noite indiferente da grande cidade. Nesse momento, o pai aparece-lhe estendendo o chapéu e cruzam-se em sua mente perturbada cenas do presente com cenas do passado: lembranças desconexas de uma vida telúrica, onde encontra refrigério para o sofrimento da hora. Mas a culpa de ter perdido o chapéu é inseparável da consciência da impossibilidade de voltar a usá-lo. É aliás, essa ambivalência que impede o livro de cair num tom excessivamente saudosista, pois sob a culpa há sempre a desconfiança de que ela é também uma força repressiva que se exerce sobre o homem miserável do sertão. Aliás, essa desconfiança já se insinuara anteriormente, quando A recordava as explicações supersticiosas que, em criança, ouvia para o fenômeno das chuvas e das secas: “o mesmo Deus que dava chuva, também dava sol e o sol era castigo dos céus, diziam os mais velhos, citando fanáticos e profetas”.
Mas a ambivalência entre a aceitação e a negação da terra, de suas crenças e de sua gente, por parte e Nelo e de outros personagens dos romances anteriores, também existe no narrador-protagonista de Essa Terra. E, embora a profecia seja contrabalançada pela explicitação das causas econômicas e sociais da decadência do Junco, ela continua a enformar a narração, ora diretamente, ora através de símbolos de danação, como o sol ou o mata-pasto. Aceitar a profecia é aceitar a culpa. E, de fato, esta é introjetada no personagem narrador desde o início da narrativa.
Quando o homem se faz em pedacinhos
Como o narrador é também protagonista, a narração se faz, de maneira descontínua, desenrolando-se ao sabor das lembranças mais ou menos imediatas e mais ou menos intensas. Misturam-se, assim, aos acontecimentos do presente (que são poucos e giram em torno do fato central: o enforcamento de Nelo) os do passado, que aparecem sempre envoltos no tom magoado do narrador (tom de menino preterido pela mãe e abafado pela imagem de um irmão perfeito, quase lendário). Assim, à medida que a narrativa avança, o narrador se transforma em narrado, porque sua palavra nos diz menos sobre os outros do que sobre si mesmo. Analisar o seu passado e o de sua família é também realizar um esforço de auto-entendimento e, em todo esse processo, avulta um traço no seu relacionamento com o pai, a mãe, o irmão e o lugar de origem: a ambivalência entre o amor e o ódio. A uns e outros repele e deseja ao mesmo tempo. Odeia a mãe por discriminar os filhos em favor do mais velho, por atormentar o pai e por representar a mulher escrava do consumo; mas admira-lhe a tenacidade, a coragem e ama-a como amante não correspondido, deixando transparecer às vezes fantasias incestuosas: “Minha mãe vai virar sereia. Eu sempre achei que ela tinha corpo de sereia”. Por outro lado, o pai aparece envolvido em grande ternura, como o homem da terra, o artesão, familiarizado com os bichos e a morte; homem bom, incapaz de bater num filho, vítima de uma mulher mais astuta e ambiciosa.
Deslocado para a cidade, porém, ele aparece bêbado e fraco, incapaz de sustentar a família e de assumir as responsabilidades de chefe, quando então avulta, por contraste, a figura quase heróica da mãe. A ambivalência se resume freqüentemente numa frase: “Todos têm razão. Essa é que é a verdade, todos têm razão”. E ambivalente é também a relação do narrador com a terra, como já indicam os próprios subtítulos, nessa síntese de contrários que é a terra-mãe chamando, mas ao mesmo tempo, enxotando; fazendo enlouquecer, mas também amando.
A mesma culpa do personagem-narrador transparecendo no final, ao perceber que o desejo de libertar-se da família, para “não morrer atolado em problemas” é a mola mestra da sua partida, (mal escamoteada pela necessidade de ganhar mais e auxiliar o pai e irmãos menores) aparecia naquele momento em que A lembrava a visita feita aos pais, visto então como dois estranhos; momento em que a acusação se explicita: “Pensa que mandar um dinheirinho todo mês para sua gente já resolve tudo, pensa? Você é um assassino”.
Na verdade, o narrador-personagem Totonhim é o ante-Nelo, o ante-A e o ante-Estrangeiro; ou é todos eles no seu nascedouro. Nesse sentido, é um duplo de Nelo, em Essa Terra.
Nelo traz para dentro desse romance a figura dos outros personagens desencontrados de si mesmos, porque se perderam na cidade, e os confronta com um passado vivido no Junco. Totonhim identifica-se com Nelo, embora mantenha também em relação a ele, a atitude ambivalente: ama-o, admira-o, faz dele a “palha de lenha dos seus (meus) sonhos”, mas odeia-o e sente ciúmes pelo que ele sempre representou para os pais; e sobretudo não o perdoa por haver, com sua morte, revelado a sua verdadeira face, desfazendo o mito ao expor-se em toda a sua miséria material e moral.
A ambivalência explica porque encontram-se lado a lado cenas de extremo carinho de sua parte para com Nelo, e cenas violentas como aquela em que tenta esbofetear o cadáver. Mas a complexa relação do narrador com Nelo se revela através de uma imagem central – dos ponteiros parados: “vinte anos para a frente, vinte anos para trás. E eu no meio, com 2 ponteiros eternamente parados, marcando sempre a metade de alguma coisa – um velho relógio de pêndulo que há muito perdeu o ritmo e o rumo das horas”.
Essa imagem torna evidente que a vida de Totonhim é um simulacro. Ele tem 20 anos que desviveu identificando-se com o irmão, projetando o desejo de ser outro. Os próximos 20 anos estão condicionados igualmente pela vida do irmão que tem 40. Relógio sem corda, ponteiros parados – conotando uma vida desvivida por antecipação, morte na repetição padronizada, vida de forno – a imagem é mais ampla, transcendendo o caso específico do narrador-protagonista e adequando-se a toda uma gama de indivíduos – classe média, indecisos entre o apego a um passado de miséria e a identificação com uma classe superior a que buscam ascender. Totonhim prefigura (embora seja criação posterior), o intelectual-classe média que os personagens principais dos outros dois romances representam. A inversão explica-se porque as origens parecem mais claras à luz do vivido.
O espelhamento de um personagem em outro que existe aqui entre Nelo e Totonhim já existia entre A e T e entre De Jesus, o Estrangeiro e Alves. De um livro para outro há uma fragmentação crescente do homem, figurando a desestruturação da personalidade na luta cega pela ascensão, no trabalho sem prazer e sem dignidade, no sufocamento do indivíduo progressivamente retificado.
Se em Os Homens dos Pés Redondos a esquizofrenia chega ao máximo, com a explosão de um personagem em três, refletida na própria explosão do arcabouço lógico da narrativa que caminha por direções desencontradas (e se isso já acontecia de certa forma com a patética figura de A, perplexo ante a necessidade de conviver com dois seres diferentes dentro dele) Essa Terra parece buscar a unidade perdida, mas o que encontra são já os germes da esquizofrenia. Totonhim já não é mais Totonhim; Nelo é quem tinha razão: ele já traz as marcas do homem dividido.
Por isso, uma análise mais profunda deste livro mostra que não se trata somente da representação da miséria do Junco ou do Sertão Brasileiro, mas sobretudo de uma sondagem que se inicia (ou prossegue): a sondagem de uma condição social, através do mergulho no caso individual que acaba nos conduzindo às origens mais gerais da culpa, onde se encontram o autor, o personagem e o leitor, sofrendo na pele a fragmentação do homem, desde que a civilização criou o abismo entre a enxada e a caneta.
In ESCRITA. Ano I, n° 1, 1975. p.19.
Cf.: LUKÁCS, Georg. “La categoria de La particularidad.” In: Estética. Barcelona, Ed. Grijalbo, 1972. v. 3.
TORRES, Antônio. Um Cão Uivando para a Lua. Rio de Janeiro, Ed. Gernasa, 1972.
Id. ibid., p.45. (Sobre o caráter exemplar de A e T ver a orelha do livro, escrita por Celso Japiassu.)
TORRES, Antônio. Os Homens dos Pés Redondos. Rio de Janeiro, Liv. Francisco Alves Ed., 1973.
TORRES, Antônio. Um Cão Uivando para a Lua. Rio de Janeiro, Ed. Gernasa, 1972. p. 45.
TORRES, Antônio. Um Cão Uivando para a Lua. Rio de Janeiro, Ed. Gernasa, 1972. p. 100.
” Essa Terra marca nitidamente o contraste entre o interior – de estrutura feudal, miserável, mas de valores e feições humanamente reconhecíveis – e São Paulo, sem rosto nem forma, um falso Eldorado onde ganhar a vida significa perder o seu sentido.” Leo Gilson Ribeiro/Jornal da Tarde (SP)