Jornal do Brasil – Rio de Janeiro, out/73
Norma Couri
É na sola do pé que ele sente a vida. “Foi queimando a sola dos pés no caminho da escola, onde ficavam os pastos e o cabo da enxada, que comecei a sentir um desejo louco de sair pelo mundo afora”. E, para esse romancista baiano basta ficar de pé no chão, para que a vida se irradie pelo corpo inteiro. Mãos, olhos, pele, tudo participa do processo de criação de Antônio Torres, 33 anos, que quando pisa no esboço de um livro “é como se na garganta”. Ele gastou oito meses fabricando idéias no meio da noite e escrevendo-as durante o dia, até as cinco da tarde, “quando a luz começava a fraquejar”, para se livrar da primeira espinha, Um Cão Uivando para a Lua. E foi queimando novamente a sola dos pés que fez explodir, o segundo livro, Os Homens dos Pés Redondos, e esboçar um terceiro, e um quarto, declarando: “Meus pés estão doendo. Eu estou vivo”.
– Vejo uma porção de homens de pés redondos – e eu no meio deles – rodando, rodando pelo mesmo quarteirão, comendo pipoca e engolindo em seco a vista baixa, um passo aqui outro não sei quando, como se não existisse mais nenhum horizonte, como se o mundo começasse aqui e terminasse aqui mesmo, neste banheiro, neste bairro, e sempre ligado a um aparelho de televisão.
Antônio Torres não viu só isso. Viu pessoas andando em redor de si mesmas. Pessoas que se ataram e não conseguem mais desatar. E imaginou a Ibéria, uma nação impossível, que já não está mais suportando o peso de seu próprio passado.
É nessa nação que se passa a história. É a terra dos homens cabisbaixos, homens “de crista baixa”. Diante de seu fracasso, só resta à velha Ibéria a memória de tempos mais felizes, quando seus homens podiam levantar, com uma só mão, uma espada de 80 quilos, e resolver guerras a pedradas e azeite, porque o azeite era barato e naquela época os americanos ainda não fabricavam armas.
– Levei um bocado de tempo para escrever este livro. Primeiro, vivendo o assunto. Depois ruminando idéias para encontrar a forma de atacar. Só para encontrar a primeira frase gastei dois anos. Eu sabia que tudo dependia dela. Foi num promiscuo quarto de hotel, que mais parecia um velho e enferrujado navio, que este começo me veio: “A julgar por ele, todos são homens sem mulheres, porque as mães de seus filhos não contam”. Aí eu não parei mais de rondar a máquina de escrever.
O uivo do cão
Mas o resto do romance ficou engasgado, Antônio Torres saiu de São Paulo, veio para o Rio, viajou para Nova Friburgo, voltou ao Rio. Escrevia até o sol raiar, esfregava as mãos, dialogava com Faulkner (“juro, eu falava com um cara que já morreu, numa casa vazia, onde só tinha eu e uma máquina de escrever”), rasgou muitas folhas e então aconteceu o romance. Não o que Torres pretendia. Mas outro. A história de um louco batendo papo consigo próprio.
– Numa tarde de sábado eu sentei na máquina. Senti um troço na garganta e precisava tirar. Praticamente só me levantei dela oito meses depois. Um Cão Uivando para a Lua estava pronto. O livro fala de desespero, apalpa as causas e as conseqüências desses cães são uma geração que de repente se descobriu enganada por uma série de valores que não eram verdadeiros.
Antônio Torres, homem de sertão (“melhor ainda, um homem de sertão que pegou o matulão, enfiou a viola no saco, subiu num pau-de-arara e rumou para o Sul – um entre 80% da população, que fez o mesmo”), viu em pouco tempo os uivos de seu cão serem elogiados pela critica. Seu livro já vendeu mais de 10 mil exemplares.
– Mas a espinha continuava atravessada na minha garganta. Precisava retirá-la para continua vivendo – e sendo capaz de funcionar. Então voltei-me para Os Homens dos Pés Redondos. Foi quando terminei de ler Bar Dom Juan, de Antônio Callado, ainda um pouco assustado, que tudo recomeçou normalmente, sem muito esforço. Comecei do principio, salvando apenas a primeira frase, aquela que eu havia levado dois anos para encontrar.
O texto da enxada
Foi no caminho da escola, que começava depois de uma cancela – e antes da cancela ficavam os pastos e o cabo da enxada – que Antônio Torres viu o primeiro caminhão aparecer no Junco, levantando poeira. “Eu queria cair fora, principalmente para me livrar do cabo da enxada”. Então passou a recitar Gonçalves Dias, Castro Alves e Olavo Bilac nas festas da roça. Os matutos gostavam muito, mas quem ficava comovida mesmo era a mãe, “a velha Durvalice”. Acabei no Ginásio de Alagoinhas, Bahia. Foi lá que descobri Graciliano Ramos, Monteiro Lobato, Jorge Amado. Aos 17 anos entrei para o Jornal da Bahia, em Salvador. Fui levado por um homem de nome Mário Alves, que passava o dia todo recauchutando pneus, na entrada de Alagoinhas. Ele pós um terno branco e pagou-me a passagem do trem. Em Salvador, fui direto à sala do Dr. João Falcão, que também estava de terno branco. João Falcão levou-me para Florisvaldo Matos, seu redator-chefe. Ele não só me admitiu como, mais tarde, viria a arranjar um emprego num banco. Mais: cavou nesse banco a minha ida para São Paulo.
Nesse tempo Torres já havia deixado de estudar. E acabou “se enfiando de cara” no jornalismo.
– Agora estou em cima de um livro de contos (um desses contos já foi publicado num jornal em São Paulo). É um livro sobre o Junco, o meu velho Junco. Esse livro é uma questão que tenho comigo mesmo. (Pra dizer a verdade, eu acho o conto um intervalo, uma espécie de descanso do cara que se mete verdadeiramente a escrever. É possível que eu leve muito tempo para publicar um livro de contos. Minha ambição pessoal é o romance). No fundo, o que queria mesmo era escrever um grande romance (no sentido do tamanho e do valor) sobre o Junco. Mas não encontrei um personagem único, que servisse de médio – apoiador. Então parti para uma série de histórias curtas, que, no fim, dão um bloco. E, apesar de estar com a mente e a alma bastante jogadas nesse assunto, já tenho um romance nas tripas, Metade Homem, Metade Bode.
– O que eu que mesmo é chegar aos 40 com a minha viola afiada. Essa viola que carrego comigo desde os oito anos, quando descobri o caminho da escola de dona Serafina, lá no Junco (não me pergunte onde fica esse lugar. O Junco não ocupa, nem nunca vai ocupar, um espaço decente no mapa do mundo). Agora, aos 33 anos, se olho para trás me dá vontade de assoviar Légua Tirana, de Luis Gonzaga. Sim, foi uma estrada muito comprida.