Universidade Estadual de San Diego, Califórnia
Malcolm Silverman
Tradução: Cláudia Mello Belhassof
Em seu oitavo romance, Antônio Torres (nasc. 1940) consegue aprimorar seu estilo habitual e, ao mesmo tempo, introduzir um formidável elemento lírico, cujo tom alivia consideravelmente temas familiares pesados como injustiça, sofrimento e morte. O apelo telÚrico não é mais rompido pela ambivalência e descrito em termos neonaturalistas, nem a sofisticada atração da costa megalopolitana brasileira está necessariamente em oposição dialética ao costumbrismo baiano “retrógrado”. Como expressão mais recente de autobiografia ficcional transformada em confissão, O Cachorro e o Lobo, com seu fluxo analítico de percepção, seu diálogo espontâneo e seus padrões circulares de tempo e espaço, apresenta um agradável tom de simetria pós-moderna.
O encadeamento da trama é bastante descomplicado, e o autor confia, uma vez mais, em uma (re)interpretação moderna do retorno do filho pródigo, sobreposta ao fluxo migratório endêmico no Brasil. é nesse mesmo contexto que o narrador-protagonista Totonhim, bem conhecido dos leitores de Essa Terra (1977), de Torres, encontra-se no meio dos acontecimentos, reaparecendo sem aviso em sua cidade natal, Junco, depois de um hiato de vinte anos passados em São Paulo. Aparentemente, Totonhim volta para casa com a intenção de atenuar um fervilhante complexo de culpa em relação ao pai, depois de ter faltado à comemoração – e consequente reunião de família – de seu aniversário de oitenta anos. Durante sua estada relâmpago, ele revisita pessoas e lugares bem conhecidos, refletindo sobre o contato cara-a-cara com seu pai. Nesse processo, no entanto, ele principalmente redescobre a si mesmo.
Torres estrutura seu dramático encontro de mentes (e, no caso da ex-paixão Inês, de corpos) em uma moldura cronológica e espacial cujos parâmetros condensados e claramente definidos são repletos de emoção teatral, ou mesmo clássica. Na verdade, meticulosamente envoltos por uma estada de 24 horas, estão ambientes específicos tão díspares quanto uma cozinha, um budoar, uma árvore mal-assombrada, o bar local, a delegacia de polícia, a escada da igreja, e a praça principal, para mencionar os mais memoráveis. A ambientação em tais locais abrange uma escala que vai desde a quase fantasmagoria até a objetividade fotográfica, fornecendo, também, uma arena propícia ao estudo dos personagens.
Sucessivamente, a maioria dos personagens, seja em carne e osso ou em lembranças (principalmente por parte de Totonhim), tendem a ser inocentes e inofensivos; e quando não o são, podemos, pelo menos, contar com seu humor cáustico e sua vivacidade. Personagens secundários – por exemplo, o prefeito que atende às próprias necessidades, a empobrecida tia Anita, o louco da cidade, e o sacristão homossexual – assim como personagens principais, mais especificamente o opinioso pai de Totonhim e a professora primária Inês, acrescentam profundidade tanto ao desenvolvimento dos personagens quanto à atmosfera de cidade pequena do nordeste. Quanto a Totonhim, quando não está conversando com os cidadãos de Junco, está pensando sobre eles, sonhando com eles ou falando neles, frequentemente incitado por catalisadores familiares, animados ou inanimados, que aparecem à sua volta.
Enquanto isso, o macrocosmo de Junco está repleto de sons reconhecíveis, especialmente de mÚsica moderna, cuja popularidade contagiante e letras transcritas de maneira liberal inadvertidamente servem para reduzir ainda mais a tradicional divisão entre os dois mundos do Brasil (e de Totonhim). Além disso, ao longo da narrativa há, também, uma abundante intertextualidade literária, mais extensa, compreensivelmente, na homenagem do autor a Pedro Páramo e nos mÚltiplos paralelos dos clássicos mexicanos com O Cachorro e o Lobo. Com a presença do luar, de cheiros, de São João, do roubo de galinhas, de um toque sobrenatural, e de uma nostalgia palpável, esse lugar atrasado tornou-se um palco vibrante e sensual e uma alternativa desejável à afobada cidade de São Paulo.
Por isso, não é de surpreender que fotografias não convencionais do convencional eixo norte-sul – aquele notável por sua privação e este por sua onipresença – estabeleçam, talvez, o mais duradouro assunto do romance, dominando o tema, o espaço e a caracterização. Em todos os níveis, o autor enfatiza o contraste divergente em todas as suas nuances sutis e não tão sutis: velho/novo, tradicional/moderno, pobre/rico, interior/litoral, paz/violência, antes/depois, calmo/nervoso, e mesmo faz-de-conta (reconfortante)/(dura) realidade. O titulo do romance também faz alusão, simbólica e subconscientemente, à diversidade dicotômica, aqui personificada no filho e no pai, como se um fosse um canino dependente e domesticado e o outro, um nobre e experiente caçador.
No conjunto, O Cachorro e o Lobo é, paradoxalmente, uma narrativa insistentemente contemporânea e uma odisséia atemporal. O realismo psicológico predominante no livro, no qual até a metaficção faz uma ou duas pequenas aparições, une-se de maneira simbiótica a interlÚdios tão poéticos quanto a exuberância erótica da perda de inocência de Totonhim e Inês, certamente a passagem mais lírica da narrativa. O assunto principal do livro é a jornada mÚltipla com viagens sobrepostas dentro e à volta do paraíso na Terra chamado de Junco. O vinculo, o afeto e o respeito mÚtuo entre pai e filho estão abundantemente presentes em toda parte. Na verdade, no final do romance surge até mesmo uma chuva de purificação, como se anunciasse um novo começo. Além disso, O Cachorro e o Lobo é, antes de mais nada, uma extensão otimista e uma esperança de um novo Brasil, harmonicamente transformado em um só.