Meu Querido Canibal: ou da nossa história oculta

UniversitÉ Michel de Montagne, Bordeaux III.
Cláudio Novaes


“O índio se chamava Cunhambebe.

Comecemos pelo seu nome, que quer dizer “língua que corre rasteira”, em alusão ao seu jeito arrastado de falar, quase gaguejante. Simplificando isto: homem de fala mansa.

Não o imagine apenas um edênico bom selvagem – e nu, ainda por cima, sem nada a lhe cobrir as vergonhas, etc. –, senhor das selvas e das águas, da caça e da pesca, a viver na era da pedra lascada, em paz com os homens da natureza, um ser contemplativo debaixo de milhões de estrelas, e a mirar o cÉu para adivinhar sinais de tempestade.

Era um guerreiro.”

Meu Querido Canibal sugere ao leitor uma simetria entre o mundo ficcional e a história de um povo “diferente” e por isso apagado da História. O narrador procura nas ruas do Rio de Janeiro nomes ou sinais da existência do povo guerreiro guiado por Cunhambebe, habitante daquela baía antes de ser exterminado. Ele chega a sugerir de tanta ausência a possibilidade de que todos esses índios traídos, vencidos, mortos e sacrificados tenham sido mais uma ficção. Mas É nessa ausência, paradoxalmente, que o narrador busca a importância do herói Tupinambá, o canibal Cunhambebe, apreciador de carne de portugueses. Mesmo morto seu nome vai atormentar a memória dos invasores e estimular os ânimos dos Tamoios confederados: sua voz mansa de guerreiro senhor das “águas de sonho e fúria”. Se esse índio, ao invÉs de devorar, tivesse colaborado, certo seria lembrado numa grande estátua no centro da cidade, conclui o narrador. Por isso ele sonha, delira e segue as pistas invisíveis desse herói para preencher um espaço vazio na história com a sua diferença dos bons europeus de alma cristã.

Em Meu Querido Canibal o narrador duvida, interroga e, segundo ele mesmo, tudo É “presumivelmente”. Essa desconfiança É o fenômeno da história e a precariedade na escolha feita por quem a conta. Mas a honestidade do narrador É decisiva para o fator Ético. Nesse romance o narrador vai expondo todo o caminho traçado e percorrido para justificar sua escolha. Ele vive intensamente e apaixonadamente a história do seu herói canibal. Por isso a relação temporal distendida pela memória do tempo não É absurda quando liga o passado das flechas, das lanças e dos tacapes dos índios na resistência aos invasores portugueses ao presente dos meninos cariocas fora da escola “puxando fumo” e dando tiros nos morros vizinhos a Copacabana. E essa distância de 500 anos não quebra a lógica histórica do relato, como se o narrador dialogasse com próprio Cunhambebe para contar a “verdadeira” história de sua nação guerreira e das atrocidades do passado colonial de contrabandistas, marginais e piratas da Europa expansionista obsecada por guerras, riqueza e poder; ligando tudo isto aos problemas sociais do Brasil contemporâneo. A narrativa corre o risco da nostalgia primitivista e da incongruência temporal, mas sai ilesa, porque não há nenhum ressentimento do narrador e sim uma vontade “heróica” e positiva de reconstituir a diferença apagada. Desejo avassalador da memória, o qual leva o narrador a conversar em sonhos com o seu herói Cunhambebe, chegando a despertar em sua esposa o receio de que ele se torne tambÉm um canibal. Mas ele canibaliza a memória sangrenta da colonização removendo as poucas palavras e “notas de pÉ de páginas” escritas pelos soldados da fÉ e da guerra donos da História, para encontrar os traços dos nossos selvagens antepassados sem lei, sem fÉ e sem rei.

O narrador É plenamente visível nesse percurso e seus movimentos são todos abertos para o leitor: ele indica o universo bibliográfico consultado – ou melhor canibalizado – , os caminhos tortuosos da pesquisa, as datas e os alfarrábios empoeirados pelo tempo e pelo desprezo. Sejam estes dados todo verídicos ou algumas pistas “falsas” à Borges só os leitores conquistados para a confederação dos novos canibais tupiniquins saberão. Nelson Pereira fala que o Meu Querido Canibal É como um road-movie. Desde o título o livro já encontra uma solução lúdica de sugestivo sabor musical; e as imagens são cinematográficas, mas não como um filme pronto. O narrador-realizador está ainda em meio a uma sÉrie de informações – ou fala delas – e vai escolhendo a melhor locação, desenhando os planos, preparando os efeitos, imaginando as seqüências, escolhendo as personagens e preparando as montagens. E o mais importante É que cada leitor/espectador está participando de todo o trabalho, dividindo com narrador a responsabilidade dessa “nova” história precária e diferente.

O livro É uma história alternativa dos vencidos a exorcizar a História colonial sem vingança e expondo as diferenças atravÉs de uma “outra” metafísica (na história humana haverá sempre a necessidade de alguma coisa alÉm física para chamarmos de Ética), qualificando as atitudes dos povos envolvidos neste holocausto colonial. Os perós portugueses, quase todos mentirosos, traidores, falsários e ambiciosos sem limites e os franceses aculturados – ou seriam barbarizados?! – pelos índios, curtindo as carícias das índias, as amizades dos guerreiros tupinambás e as maravilhas de quando o Rio de Janeiro era mais rios, floresta e ilhas paradisíacas. Mas tambÉm há os portugueses deste holocausto colonizador que prezavam valores dignos. Entre eles o narrador aponta o próprio D. João VI em sua tumultuada passagem pelas terras brasileiras; assim como do lado de franceses e tupiniquins nem tudo era virtude. Lutas e traições entre os índios e muitos piratas e traficantes franceses não ficavam longe dos perós portugueses na prática da violência militar, econômica, Étnica e sexual.

AtÉ hoje portugueses e franceses se exibem com “indiazinhas” brasileiras na Europa: aos primeiros É orgulho na cama e na cozinha, para os últimos exotismo sexual e samba. Isso embola o meio de campo da diferença canibal, porque essas indiazinhas tambÉm gozam neles, deles e com eles… Desde as tupinambás nuas entre os branquinhos de cabelo de fogo dos tempos coloniais atÉ as tupiniquins contemporâneas do turismo sexual.

O tema do livro de Antônio Torres torna-se local e universal. Pertence a brasileiros tupiniquins, a franceses, a portugueses; aos cariocas e baianos. Afinal as relações canibais entre “bárbaros” e “civilizados” não são apenas coisas do passado ou da ficção…

Cláudio Novaes. Prof. De Literatura da Universidade Estadual de Feira de Santana – Uefs ; Doutorado na Universidade São Paulo – USP ; foi leitor brasileiro na Universidade Michel de Montaigne, França.

Antônio Torres. Meu Querido Canibal. Rio de Janeiro ; Ed. Record, 2000, p. 11.