Filho Pródigo

Correio da Bahia – Salvador, segunda-feira, 17 de agosto de 1998.
Jean Wyllys

O escritor Antônio Torres passou o fim de semana ao lado dos personagens que o transformaram em um grande escritor de literatura brasileira e o colocaram no circulo dos romancistas que gozam de prestígios no exterior. O que pode parecer uma história fantástica não passa de pura realidade. Há décadas afastado de sua terra natal, Junco (hoje, Sátiro dias), Torres retornou ao lugar perdido no agreste da Bahia, a 191 LM de Salvador, para comemorar os 40 anos de emancipação do município. Como o protagonista do ultimo romance – O Cachorro e o Lobo –, o escritor voltou para a terra que cobre suas raízes.

Com saudades e faixas em todos os cantos, uma banda de pífaros e um bolo de 40m de comprimento, Sátiro Dias despertou de seu sono de morte não para festejar o aniversário, mais para homenagear aquele que a colocou nas páginas do jornal Le Monde, de Paris. A faixa estendida sobre a biblioteca municipal (que leva o nome do escritor) é o melhor exemplo dessa gratidão. Ela dizia: Totinho, obrigado por colocar essa terra no mapa do mundo“. Sendo Totinho o apelido local de Antônio Torres e Essa terra o título de seu mais famoso romance.

Impossível olhar para as mais de três mil pessoas que compareceram à missa em ação de graças a Torres e não ver os personagens da maioria de seus livros, gente dividida entre o amor à terra natal e a esperança de uma vida melhor em outras plagas. Todas as pessoas entre 15 e 20 anos entrevistadas pretendem deixar a cidade para morar em São Paulo. Difícil caminhar pelas ruas de Sátiro dias e não reconhecer o velo Junco descrito por Torres, pobre, ignorante e temente a Deus, apesar das antenas parabólicas. De acordo com o atual prefeito, Joaquim Cardoso Neto (PL), 54% da população de Sátiro Dias, é de analfabeto.

O próprio Antonio Torres, em seu discurso de agradecimento, disse não saber onde terminava a autobiografia e onde começava a ficção. “Meus personagens têm a cara dessa gente e essa gente tem a cara de meus personagens.”, ele disse. De fato, com nomes diferentes e existência real, os personagens de Torres podem ser encontrados em todos os lugares de Sátiro Dias. Desde “Nelo”, de Essa Terra (1976), até o “Totonhim”, de O Cachorro e o lobo (1997), passando por “Virinha”, o patriarca que aparece em todos os livros que têm Junco como personagem.

Aliás, Junco, a cidadezinha à espera do fim do mundo, e São Paulo, o eldorado, são ora protagonistas ora antagonista das histórias de Torres, assim como das histórias particulares dos moradores de Sátiro Dias. Para alguns, Sampa é o sonho que se converteu em pesadelo; para outros, Junco é a encruzilhada da qual São Paulo é a saída. No confronto concreto ou abstrato entre esses dois mundos, alternam-se sonhos, esperanças, desilusões, conformismo, loucura e morte.

Entre a ficção e a realidade

Os personagens de Antônio Torres, ele mesmo e a população de Sátiro Dias vivem consciente ou inconscientemente, e função da Parábola do filho pródigo – aquela história alegórica sobre o filho que abandona o lar na ânsia de viver experiências melhores, mas acaba voltando e encontrando a felicidade no lugar de onde nunca deveria ter saído. “A gente sai por causa da necessidade e volta por causa da saudade.” Explicou a mãe do escritor, dona Durvalice Torres, 77 anos, que há 34 deixou Junco para dar uma vida melhor aos filhos.

Seu Zeca de Julião (em Sátiro Dia, as pessoas ainda são identificadas assim0, 95 anos, também perdeu os seus sete filhos para o mundo. Morando no que restou da fazendo Mato Grosso, ao lado da esposa, dona Jardina, seu Zeca é a própria encarnação do “Velho” de O cachorro e o Lobo, solitário em suas conversas com os mortos. Sentado em uma cadeira de rodas, o velho Zeca de Julião ainda se lembra, com previsão de datas, a partida de cada um dos filhos. Já cega, devido à catarata, dona Jardina disse que até hoje chora o inevitável abandono.

A partida para a cidade grande é certa, mas o sucesso na mesma, nem sempre. O personagem “Nelo”, de Essa terra, ao retornar para Junco, enforca-se porque sua Cida miserável em São Paulo não correspondia às expectativas da família. O mesmo aconteceu com Lela de Tote, de quem os moradores de Sátiro Dias preferem não lembrar. Já seu Manoel do Nascimento, 65 anos, não tomou nenhuma atitude trágica ao voltar para Junco foi a melhor das decisões. “São Paulo é a terra em banco de praça”, contou.

A estudante Jeane da Cruz (mais conhecida como Jeane de Branco), 18 anos, sonha em deixar Sátiro dias para fazer um segundo grau decente (ela esta na 6ª série) e arranjar um emprego. “Salvador é o meu destino, eu sei disso”, confessou. Sentada no Cruzeiro da Ladeira, aonde vai rezar de vez em quando, cabelos ao vento, Jeane lembra a personagem “Virinha” de Adeus, velhos, a garota que, no “Cruzeiro dos Montes”, pensava em deixar o “buraco de solidão e poeira” para conhecer “o mundo das cores, das flores, das luzes”.

Torres já disse que “a palavra escrita tem muita força quando transmite ou reflete o que está na cabeça de todo mundo”. De fato, a indecisão entre o porto seguro e além-mar não é exclusiva dos habitantes de Sátiro Dias. Convidado, durante toda programação de aniversário da cidade, a falar sobre essa tensão, o escritor disse que mais do que ficar ou partir, o pior talvez seja parar no meio do caminho.