Essa terra na cidade que se abre para a morte

Jornal da Tarde – São Paulo, 24/07/1976.
Leo Gilson Ribeiro

Capas de Essa Terra

A grande cidade não tem lugar no sofá das musas.

De Tchekov a Steinbeck, de John dos Passos a Eça de Queiroz, nos contrates entre “A Cidade e As Serras”, o campo perpetua a saudade dos contatos humanos e da relação artesanal que o homem mantém com seu trabalho, e a metrópole é a imaginação para o anonimato de um trabalho mecânico e sem dignidade. Como no cinema, o epitáfio do trabalhador moderno é a máquina que enlouqueceu o operário de Charles Chaplin em “Tempos Modernos”. Como nos romances naturalistas de Zola, a revolução industrial, no Brasil ou na França, não criou só a multiplicação do lucro: colocaram na linha de montagem, triturando-os, os próprios sentimentos humanos. Ao dividir tarefas, isolou os seres humanos numa produção brutal e mecanizada.

Na literatura contemporânea do Brasil, a transformação de uma sociedade rural em amontoados de favelas, cortiços e bairros elegantes  encontrou em São Paulo seu laboratório ideal. Antônio Torres , com “Essa Terra”, demarca nitidamente o contraste entre o interior – de estrutura feudal , miserável, mas de valores e feições humanamente reconhecíveis – e São Paulo, sem rosto nem forma, um falso Eldorado onde  ganhar a vida  significa perder o seu sentido. A alienação utilitarista do emprego que se dará à energia humana já tinha sido analisada pelo autor em seus livros anteriores, “Um Cão Uivando para a Lua” e “Os Homens dos Pés Redondos”. Neles, tanto o repórter de um jornal como o publicitário de sucesso são engrenagens desse mecanismo maior que eles apenas fotografaram, células desse organismo devastado pela leucemia.

Em “Essa Terra” seu alvo pertinente é o progresso formam, feito de lantejoulas; o homem da roça arruinado pelos empréstimos do banco, deslumbrado com o radinho de pilha, o relógio, o arado substituído pela oficina mecânica e pelo posto de gasolina. As famílias são igualmente pilhadas, de forma crescente: de suas propriedades, que diminuem de geração a geração, de seus filhos que emigraram para São Paulo, da autenticidade das relaçeõs humanas quando as pessoas tinham nomes e não cargos. De forma exacerbada, o escritor sugere que a caneta mata a palavra, o papel asfixia a fala.

Felizmente, Antônio Torres tem suficiente discernimento para não encampar a idéia de que a aldeia, com suas virtudes devoradas pelo asfalto, é aquele mundo inocente, do homem selvagem de Rousseau, ainda não corrompido pela civilização. Ele não vê o meio rural como uma paisagem bucólica, da qual a técnica foi abolida numa volta absurda ao passado anterior à revolução industrial. Como em seus livros anteriores, Antônio Torres acumula elementos para denunciar toda uma estrutura social, que abrange “a cidade e as serras”. Mostra que se a roça não isola seus habitantes, mantendo sua identidade no agrupamento social, por outro lado sufoca com o latifúndio, o conservadorismo, o patriarcalismo, qualquer perspectiva de melhora. O campo brasileiro é o atoleiro da ignorância, da fome, do desmantelamento. A cidade é a troca dessa injustiça particular por uma injustiça mais ampla e mais amorfa. É sintomático que logo no primeiro capítulo Nelo, o irmão que foi da Bahia para São Paulo, apareça enforcado: o suicídio é a impossibilidade de escolher entre as duas monstruosas opções: afinal, ficar ou partir desemboca tudo no mesmo fracasso.

Todo o livro passa a ser então uma evocação do passado que se alterna com o presente, em trechos de eficiente utilização estilística do flash-back. O irmão sobrevivente, narrador que alinhava os acontecimentos trágicos, se sente “como dois ponteiros eternamente parados” de um relógio: ameaçado pelos pastos que diminuem, gradativamente, é enxotado da terra pelo mero instinto de conservação.

Antônio Torres traz como elemento novo, de função inesperada, a mulher, a mãe que é o motor de transformação, o alvo da propaganda mentirosa e que incita o filho a emigrar, a procurar no formigueiro da grande cidade o poderio do salário, a força concreta do dinheiro como fuga daquele pântano cotidiano. O pai é que se apega à terra, como se ele fosse o porto seguro diante do naufrágio. Ponto de tensão entre esses dois extremos, o “filho pródigo”, na trágica ironia do autor, é o elo que se parte.

Na trajetória de seus três livros já publicados, o escritor, se aprofundou sua análise, no entanto não disciplinou o tom emotivo. Se obteve páginas excelentes na descrição patética dos personagens e na viagem da mãe para o asilo de loucos, foi infelizmente incapaz de eliminar expressões que abalam a força do relato. É o caso patente de “Papai nem queria ouvir se tocar no assunto – gargalham os dentes do passado” ou “Mais pesado do que o ar não era o sino. Era o coração dos homens”. Isoladas , essas frases involuntariamente “ Kitsch” não chocam tanto. Só na passagem em que a qualidade decai a um nível inesperado é que o autor, num diálogo imaginário com Deus, atribui-lhe características de um Clóvis Bornay, a desfilar na passarela do carnaval:

“Me visto de sol e de lua, me adorno de estrelas e tenho um raio em cada braço. Quer saber a verdade mesmo? Sou o campeão nacional de qualquer concurso de fantasia. Deve ser por isso que dizem que Eu Sou Brasileiro”.

Frases como esta desmerecem qualquer livro que não tenha sido assinado por José Mauro de Vasconcelos, Num escritor sério, de talento comprovável, causam mal-estar, embaraço, perplexidade. Destoam da colaboração elegíaca desta narrativa que se inicia com um suicídio que serve para iluminar outras vidas já mortas. Enfraquecem este painel comovedor em certos trechos da ineficácia da emigração como solução final para a miséria, deste teorema que se reconhece o falso progresso.

O romance social é possivelmente o gênero mais difícil pelos ardis maniqueístas que oferece ao escritor. De um lado o bem róseo, de outro o Mal monolítico e todo “do lado de lá”. Antônio Torres não sucumbe á tentação ingênua de propor soluções ideológicas que extravasam a diagnose radiológica que a leitura pode fazer de uma sociedade. Reconhece por detrás de qualquer materialismo, histórico ou não, o materialismo histérico que mina tantas visões primatas da complexa condição humana. Sabe que entre o Gorki de 1914 e o Brasil de hoje passaram-se décadas decisivas que reformularam as fórmulas da farmacopéia para os males que os homens infligem uns aos outros. E é justamente por ter a lucidez de não desembocar no proselitismo panfletário que seus livros deixam sua marca na literatura que se faz hoje no Brasil.

No entanto, é indispensável que o autor reduza de muito o âmbito de dizer. Caso contrário, o excesso de temas, abordados sem profundidade, como o do louco e o do veado, enfraquecerá inevitavelmente a importância do que ele tem a testemunhar para ao leitor. Não se trata de uma luta simplista entre a caneta e a enxada: a máquina de escrever coexiste com o trator. Por não se insurgir contra a mecanização da lavoura nem por advogar uma panacéia cifrada na volta pura e simples à Natureza agro-pastoril é que a sua criação precisa restringir-se para adquirir substância maior. Na lavoura como na literatura, o latifúndio e o minifúndio são tão enganadores como o binômio cidade-campo.

Senão, para continuar com o vocabulário agrícola, o melhor será esperar. Assim como as terras se esgotam, sem rotatividade de culturas, os autores também se beneficiam quando um intervalo de meditação fecunda sua própria gleba de talento.


“Torres, como Graciliano, optou pelo mais honesto: escrever sobre o seu Nordeste. E assim como Graciliano identificava as personagens de Vidas Secas mostrando que saíram de sua família, Essa Terra tem no lastro biográfico a sua força original.” – Affonso Romano de Sant’Anna/Veja