Em Carne e osso e filamentos de sonhos

Diário do Nordeste – Fortaleza, Ceará – Domingo, 9 de Setembro de 2007
Carlos Augusto Viana – Editor

“O Antônio Torres, uma das vozes mais criativas da moderna ficção brasileira, consagrado aqui alhures, deixou em quarentena suas personagens, fragmentos de um mundo em decomposição, e, agora envereda no gênero crônica (de há muito já o cultiva em jornais), num texto doce e suave sabor.”

Nos primórdios do Cristianismo, a crônica era tão-somente o relato de acontecimentos, sujeitos a uma cronologia, tomado como registro. Não havia o aprofundamento das causas, tampouco a interpretação de seus efeitos. No Brasil, a partir do século XIX, com José de Alencar e Machado de Assis, assumiu uma personalidade literária.

Hoje, em sua moderna roupagem, a crônica (ocupa o espaço de jornais e revistas; depois, sofre uma seleção, para, então, converter-se em livro) implica, sobretudo, um acontecimento diário que chama a atenção do escritor (uma paisagem urbana, uma cena lírica qualquer, uma pessoa, um objeto, um fenômeno natural etc.), uma introspecção (o estar no mundo, aspirações, o país da infância) ou, dentre tantos outros, motivos encomiásticos (amigos, cidades).

É, portanto, uma expressão híbrida (assume várias formas: alegoria, entrevista, confissão, diário, carta…) que percorre, naturalmente, as fronteiras entre o conto e a poesia, convertendo-se numa visão pessoal, subjetiva acerca do cotidiano.

Em Antônio Torres, (ficcionista engenhoso, que tece suas tramas como quem emaranha fios de uma interminável teia) a singularidade do cronista reside em sua extrema simplicidade – o que não lhe tira o encantamento do literário. Ao captar instantes, às vezes fragmentos de tempo, que tanto dizem da condição humana, ao redesenhar, pela memória, encontros com artistas e personalidades – da música, do cinema, da literatura, da televisão, do esporte – pesca, com o olhar agudo, a grandeza do que se esconde sob a pele das coisas miúdas. Deparamos, então, sob a aparente banalidade, o que, dentro de nós, estava adormecido, ainda que nos inquietasse.

Eis o Antônio Torres de “Sobre Pessoas”. Nesse livro, retoma as cadeiras de balanço dos alpendres sertanejos; isto é, deixa, no leitor, aquela sensação de conversão ao pé da orelha, conversa amena, acompanhada de um café com tapioca, quando o sol já se espetando nos espinhos do mandacaru. Jorram, portanto, as marcas de oralidade, que tanto açúcar põem nas pautas de nossa língua portuguesa do Brasil: “Sinuca de bico” (p.10); “deu uma olhar rápida” (p.13); “não era de avançar sobre o leitão assado” (p.25); “A primeira cipoada dele é na imprensa” (p.28); “não sobrou uma cabeça de índio para contar história” (p.58) – e assim vai, para não perder o ritmo.

Sua crônica é, antes de tudo, uma cartilha de ensinamentos. Com ela o leitor aprende, a partir dos retratos alheios, a remodelar o seu próprio retrato, a este acrescentando aprendizagens, ou relendo conceitos, quando não, recuperando o que se foi nas asas do longe.

Com despojamento verbal, explorando a polissemia das palavras, Torres nos coloca frente a frente com grandes expressões artísticas, sejam estas daqui ou d’além-mar; e, em todas elas, uma marca em comum se inscreve: a humanidade. Nesse sentido, antes de um escritor, um cineasta, de um esportista, imprime-se o ser humano – sempre na fronteira entre o paraíso e a queda.

Assim como ocorre também em sua ficção, na crônica ele faz largo uso das intertextualidades – recurso que, para Domício Proença Filho, constitui uma das marcas da pós-modernidade. O modo por que aparecem nos textos é bastante variado: ora, são letras de música: “Era uma vez um lugar esquecido nos confins do tempo, sem rádio e sem notícia das terras civilizadas…” (p.158); ora, a citação de poemas: “Amor é fogo que arde sem se ver,/ é ferida que dói e não se sente…” (p.95); ora, subvertendo a forma original do texto: “Ele não foi um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones…” (p.76); ora, com procedimento híbrido: “Hoje é sábado e amanhã é domingo e a vida vem em ondas como o mar e Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar” – aqui, fundem-se versos de Vinícius e fragmentos da liturgia católica.

Em Torres, tudo é assim muito natural, é doce música, bem como carrega um gostinho de um passado, perdido, mas tão presente em nós como uma cicatriz. São crônicas que tanto podem ser lidas na sala de espera dos sempre atrasados médicos ou na concentração de um alpendrada cadeira, sob o balanço das folhas e as flautas do vento.

Você pode ler o livro Sobre Pessoas na íntegra em DOC ou PDF