Crônica publicada pela Editora Íbis Libris, para a Primavera dos Livros, realizada no Museu da República/ Palácio do Catete, de 29 de novembro a 2 de dezembro de 2007, e da qual Antônio Torres foi o patrono
24 de agosto de 1954.
Estávamos muito longe do Palácio do Catete, onde um tiro fizera o país tremer. Mas não foi pela distância que não o ouvimos. Foi por vivermos numa casa de roça, sem rádio e sem notícias das terras civilizadas.
Nesse dia, como sempre, o pai acordou com o canto dos galos e dos passarinhos. E fez o que o seu dever mandava: chamou os filhos, um a um, em ordem decrescente, do mais velho ao caçula. Puxou a ladainha, atento às vozes que o acompanhariam, no ritual de todo o amanhecer:
– Kyrie eleison.
– Christie eleison.
Mesmo sem entendê-las, achávamos bonitas as palavras que recitávamos solenemente, em alvíssaras a mais um dia que desejávamos abençoado por Deus Nosso Senhor Jesus Cristo, Sua Santa Mãe e todos os santos do céu, amém. Depois, aos meninos maiores caberia pular das camas e se arrumar para a escola, que ficava na rua – como o povoado era chamado –, dali a uma boa caminhada.
E lá fomos nós ao reencontro da turma, com o coração em festa. A escola significava também isto: convívio. E bate bola na hora do recreio. Oba!
Naquele dia, porém, iríamos bater era com a cara na porta. O prédio escolar encontrava-se fechado. Coisa boa não podia ser. Felizmente a professora não demorou a aparecer, desfazendo nossos temores em relação a ela, que avisou: as aulas estavam suspensas durante oito dias, em respeito ao falecimento do presidente da República.
– Todo o Brasil está de luto – ela explicou.
E mais não disse, mantendo a informação em seus devidos limites. Como boa cristã, senhora ajuizada, e tudo o mais que se exige de uma educadora, ela não iria alardear para crianças a causa mortis do primeiro mandatário da nação. Nem mesmo de forma eufemística:
– Cometeu o tresloucado gesto…
Ali, qualquer menino ou menina com um mínimo de entendimento sabia o quanto um suicida podia perturbar o sono dos vivos. Opróbrio post-mortem, ao corpo daquele que atentava contra a própria vida era negado o direito de ser levado à igreja, significando isto a condenação pública da sua alma às trevas sepulcrais, sem pouso ou sossego, enquanto lhe restasse tempo de vida a cumprir na Terra.
Não era em tais crenças que eu estava pensando naquela manhã, enquanto procurava uma aglomeração de adultos, para assuntar os acontecimentos, a me perguntar como, assim de repente, a professora fora informada da morte do presidente e do luto nacional, a ser respeitado até naquelas brenhas esquecidas nos confins do tempo, a quase dois mil quilômetros de distância da capital federal, e aonde o correio só chegava de oito em oito dias, no lombo de um burro. Tudo seria esclarecido na venda de Josias Cardoso. Ali, entre o cheiro de pão de milho recém-saído do forno, creolina e cachaça, o ambiente era de velório. De pé, ao balcão, ou sentados em engradados, caixotes e tamboretes, os bêbados de sempre se transformavam nos seres mais tristonhos do mundo. Num extraordinário ato de contrição, ouviam, mudos, um rádio movido a bateria de caminhão noticiar bombasticamente que Getúlio Vargas havia se matado com um tiro no peito, disparado de um Colt calibre 32, de acabamento niquelado, e em cuja coronha reluziam placas de madrepérola. E se condoíam até as lágrimas com as últimas palavras de Vargas, em sua carta-testamento, que se tornaria célebre:
Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.
A venda ia se enchendo. Era como se, de uma hora para a outra, todo aquele lugar fosse incondicionalmente getulista. Mas não. Difícil era encontrar uma só casa de roça que não tivesse o cartazete com a foto de Cristiano Machado ao lado de um boi. Naquele mundo de pequenos proprietários rurais houve uma identificação maior com o candidato à presidência pelo PSD (o Partido Social Democrático) nas eleições de 1950, do que com o gaúcho que cativava as massas de trabalhadores urbanos. Agora os sentimentos eram outros. A trágica morte de Getúlio Vargas os fazia oscilar entre a perplexidade e as interrogações. Estaria a mão da grande perdedora em tal pleito, a UDN (União Democrática Nacional), por trás do dedo que apertou o gatilho? Atento à desolação reinante, concentro-me na voz do rádio:
– “… esse povo, de quem fui escravo, não mais será escravo de ninguém”.
Com essas palavras, que ali deixavam todos tocados, Vargas se rendia como um herói. Sua morte, porém, deixava apreensões no ar:
– É agora que o comunismo vai tomar conta do Brasil.
Comunismo?
Eu ainda não sabia o que era isso. E, com certeza, nem o homem na venda de Josias Cardoso, que tanto o temia.