TRANSVERSAIS DA LINGUAGEM

Muniz Sodré *
A Tarde Cultural, Salvador, Bahia (10/08/1991)

(Primeiro) Um franco-argelino atira num árabe, sem motivo, talvez por que o sol brilhasse mais forte naquele dia; (segundo) um brasileiro atira num compatriota, velho amigo seu, também sem motivo, por mero reflexo, querendo talvez livrá-lo de uma dor de barriga.

>Os dois gestos são insensatos, claro, o primeiro já é um clássico; trata-se do ponto de partida de O Estrangeiro, de Camus. O segundo, recente, como que detona a trama de Um Taxi para Viena d’Áustria, último romance de Antônio Torres.

>Entre o francês e o baiano, há o abismo de uma filosofia voltada para a sondagem das exigências essenciais do sujeito, matizadas pelo absurdo. O romance filosófico de Camus implica simplesmente em outro projeto de literatura.

>No entanto, algo em comum: o exame da condição humana. Só que o texto de Torres dispensa a metafísica em função da crônica patética de um publicitário desempregado que tenta fugir de táxi após seu absurdo gesto assassino. Isto, em lpanema, coração da Zona Sul carioca.

O carioca bem sabe que nenhuma fuga será segura na hora do rush. Pelo mar, não há saída; na rua, o imprevisível engarrafamento; por baixo, o buraco sem metrô. Nenhum vazio metafísico, pois, nenhum rombo originário, mas o concreto buraco sem fundos do país, tematizado no caos da cidade, na falta de emprego, na modernização sem fundamentos ético-sociais.

Confinado a um táxi, que por sua vez está imobilizado num engarrafamento, o personagem de Torres – Watson Rosavelti Campos (o Veltinho) é metáfora do Brasil, de um país que parece não andar.

Para desenvolver uma temática dessas seria bem viável adotar a poética da não-ficção, à maneira de um Truman Capote ou de um Norman Mailer. Ou então seguir o gosto de um Manuel Puig e, a partir dos recortes jornalísticos e televisivos sobre o cotidiano da cidade, construir uma narração em que se pudesse perceber a fragmentação da existência na grande urbe de hoje, especialmente a urbe sul-americana.

Torres não fez nada disso. Nada disso, entenda-se, em caráter exclusivo, já que fez tudo isso ao mesmo tempo, mesclando estilos, com bossa própria. A atmosfera estilística é a do realismo, mas sem a descrição certinha de incidentes, sem a composição retoricamente ordenada de situações humanas. Torres usa o presente do indicativo (um tanto na esteira do que fazia o hoje já antigo Nouveau Roman) para expor a consciência in actu de um personagem atravessado por vozes de todos os tempos, dele mesmo e de outras pessoas, inclusive a da própria Cidade.

Assim: “Ontem à noite eu não sabia que ia matar um homem. Nem ontem à noite, nem há poucos minutos atrás. É, acho que não faz nem uma hora que matei um homem. (…) Ontem à noite até sonhei com um anjo, que me fez um estranho apelo: – Pelo amor de Deus, não se entregue. (…) Achei que era uma mensagem, que traduzi assim: – Vai trabalhar, vagabundo. Vai à luta – Coisas de sonho. E sonho de desempregado”.

Ou então, a “a voz”, o mundo, é a televisão: “Em close: rugas, estrias, bolsas aquosas, olheiras. E os famigerados cabelos brancos. Ralos. Rareando. O que foi feito da sua vasta, crespa e selvagem cabeleira, senhor? Domesticou-se, ao se encanecer? Atenção, pessoal da produção, bota aí no áudio, em bg – quer dizer, baixinho – a velha “Folhas Mortas”, que a corrente transporta, ó Deus…”

Torres encontra-se aí em pleno ato de literatura, isto é, de transformar fragmentos de frases, fórmulas, sintagmas de língua coloquial e cotidiana marcada pela mídia em enunciados de uma língua própria que, nele ao contrário do táxi fabulado, é móvel e ágil.

Não, nada da escrita moderninha, colada a autores norte-americanos, tão cara a alguns experimentalistas da chamada pós-modernidade. A língua literária de Torres transmite uma experiência de plurilinguagem, por onde se expressa a modernidade caótica ou eclética demais (já pensaram um Junco fazendo ponto em Ipanema ou Mozart acompanhando Charlie Parker ao piano?) em que vivemos.

Neste caos, às vezes, como diz o protagonista Veltinho, dá “vontade de correr, correr, correr.  Como um atleta, um louco, um bandido”.  O que é de bom alvitre, pois este país, como o táxi, não aparece achar as suas transversais.  Ou então, com a mesma vontade de O Estrangeiro, esquecer o tiro e mandar o motorista tocar assim mesmo para Viena d’Áustria.

* Muniz Sodré é professor-titular da UFRJ e escritor, autor de O monopólio da fala (ensaio) e Santugri (contos).

UM NOVO E EXCELENTE ROMANCE

José Olympio da Rocha*
Tribuna da Bahia/16.06.91

Dificilmente você poderá interromper a leitura do novo romance de Antônio Torres, Um Táxi para Viena D’Áustria. O que não é surpresa, pois desde Um Cão Uivando para a Lua (1972) o autor baiano revelou-se um dos escritores mais promissores do Brasil. Torres, ex-jornalista (“precisei abandonar o jornalismo para escrever ficção”, disse ele) transferiu-se definitivamente para o Rio de Janeiro, onde conseguiu sobreviver como publicitário. Certamente agora, depois que seus livros foram traduzidos com sucesso para vários outros idiomas, Antônio Torres poderá dedicar-se com mais tempo à literatura. E o maior exemplo de que isso é o que acontece, é este novo romance: inventivo, bem trabalhado na sua linguagem, brilhantemente irônico e mordaz, com uma dose de humor sadio, quase um hino simples aos prazeres da vida.

A inventividade do autor está cada vez mais acentuada. Aqui ele disseca o homem urbano, com sua tragédia cômica, o dia-a-dia de uma cidade como o Rio de Janeiro. Torres compõe essa sinfonia, esse perfil da cidade grande, através de um painel em que ele toma emprestado as letras da música popular, as gírias, o ritmo cotidiano de um viver que passa pelos apartamentos de classe média, sobe até os morros e explora o estranho humor dos que vivem na adversidade: “Quero um dia de luz, festa do sol, um barquinho a deslizar, no macio azul do mar/Por que esqueceram de me avisar que hoje à tarde ia ter um caminhão da Coca-Cola atrapalhando o tráfego?/É isso aí. It’s the real thing. É pau, é pedra, é o fim do caminho. É um caminhão atravessado, engarrafando o verão. Moro na zona sul. Quero o mar. E não essas ruas interrompidas, selvagens – esse beco sem saída. E também quero ver se os jornais vão ter coragem de sair amanhã com uma manchetona assim: Acidente da Coca-Cola foi provocado pela Pepsi”.

Antônio Torres é um cronista urbano, do dia-a-dia, os episódios que constituem a sua narrativa podem ser notícias tiradas de um jornal (como um acidente no carro da Coca-Cola onde os meninos do morro fizeram a festa), as letras de música que bem defi­nem o espírito carioca: “Quero um dia de luz, festa de sol, um barquinho a deslizar, no macio azul do mar”.

Torres sabe ironizar este sempre ridículo e sem rumo país que se chama Brasil: “Ela continua fiel à Santa Madre Igreja de Roma. Ainda não se japonezou na Igreja Messiânica. Não se americanizou com os evangélicos, os adventistas, as testemunhas de Jeová. Não se africanizou,na umbanda. Nem se universalizou no espiritismo. Continua uma fidelíssima católica apostólica romana. Como que minha mãe ainda não virou esotérica? Tantas seitas, tantos credos, no varejo e no atacado! Era agora que ela ia gostar de ver o mundo”.

O Brasil narrado por Antônio Torres é este que você conhece: tão confuso como o bruto engarrafamento de uma zona urbana, tão cômico e ao mesmo tempo tão ridículo e sem rumo como a própria política econômica. Não se pode negar que o leitor está diante de um livro originalíssimo, gostoso de se ler, uma prosa enxuta e poética ao mesmo tempo, irônica e atual. É assim Um Táxi para Viena D’Áustria.

Precisamente porque é um autor inventivo é que ninguém consegue largar esta narrativa, com sabores para todos os gostos, sem ser comercialmente submisso ao leitor: “Não contar nada sobre aquela vez que você ficou olhando pelo buraco da fechadura enquanto a espanhola tomava banho. Ela se ensaboando e cantando. E você chupando o dedo. Ela alisando os seios e cantando – e você alucinado. Ela esfregando as coxas e cantando – e você comendo a espanhola com o olho e vendo estrelas. Lânguida, louca, caliente, salerosa, ela transbordava em água e desejo, roçando cabelos, pele e labirintos… de ternura. Voz rouca de tanto cantar o mesmo bolero: Solamente una vez…”

A beleza da prosa de Antônio Torres é por si só um motivo muito forte para você chegar até o fim. E ter pena de acabar essa leitura.

* José Olympio da Rocha é crítico literário.