Bilhete a Antônio Torres

Folha da Tarde, São Paulo — 04/12/1972
Torrieri Guimarães

Você escreveu um romance denso de proposições, não impostas, mas naturalmente nascidas da sua própria vivência. Você penetrou na massa do mundo, trabalhou com ela, sujou-se com ela, viu que suas mãos tinham sangue e barro, e de repente, quase como num ‘flash’ você percebe uma terrível verdade: neste mundo regido por um sistema absurdo (o Kafka também descobriu isto e sublimou tudo colocando-se do outro lado da parede invisível e recriando o que poucos iniciados têm capacidade de ver) a realidade não é aquela que nossos olhos vêem, dura e odiosa, mas umapintura abstrata que só alguns compreendem e podem manipular à vontade.

Esta contradição é realmente chocante e ninguém escapa aos seus efeitos. Certamente muitos acharão o modo de enganar-se, de iludir-se, de imaginar que ainda são donos dos seus narizes — mas intimamente sabem que estão sendo dirigidos, enquadrados, encaminhados para destinos que absolutamente não sonhavam, incapazes de um gesto de revolta. Engajam-se numa situação que lhes é cômoda, ou que pelo menos lhes permite continuar supondo que vivem, e vendem a alma ao diabo por uma simples ilusão de liberdade.

Mas, insidiosamente, a angústia está trabalhando em seu íntimo, corroendo-lhes as últimas resistências, deixando-os lassos e bambos como míseros fantoches, até que, tensas até a exaustão as linhas da sensibilidade, rompem-se — e os infelizes são obrigados a internar-se em regimes de tratamento de que jamais conseguem escapar, ou, pior ainda, deixam-se levar pela onda de indiferença, engrossando a multidão dos que nada têm a oferecer de si.

Você trouxe para a sua luta nos campos incultos deste mundo, com a sua mocidade, todos aqueles ideais imprecisos que são a contribuição mais importante dos jovens, porque significa que, de tempos a tempos, de geração a geração, as flores do sonho continuarão vicejando. Mas percebeu, de repente, que sua realidade, o mundo que você imaginava, as noções que apreendera, a sua contribuição pessoal, nada tinham a ver com a realidade imposta de dentro para fora, firmada em regras especiais, comsuas leis próprias e inexoráveis. E foi bom que você escrevesse este livro agora, com toda a força de sua revolta, com a noção exata da posição que você adotou, sem envolvimentos nem concessões — numa linguagem crua, despejada, azeda, amarga — porque sempre é de se temer que, com a idade madura, com os profundos lanhos das experiências vividas e engolidas no silêncio das humilhações, você talvez se acomodasse, se acovardasse, e acabasse apenas, como tantos, fazendo blague desta triste realidade que poucos ainda enxergam.

Até a sua linguagem tem uma função importante neste livro: ela agride, não de maneira ofensiva, mas como sacudidela naqueles que parecem adormecidos, como a dizer-lhes: ei, meu chapa, você está perigosamente iludido com todas estas luzes, há chefes de família esmagados pelo excesso de trabalho, corroídos pela descrença diante de tantas injustiças, fazendo-se o carrasco de seus próprios amigos pela defesa de seus míseros empregos; há crianças famintas que se prostituem à beira das estradas, há milhões que vivem na promiscuidade das favelas, as cores, as luzes intensas deste país tropical cegam as vistas, mas é preciso um esforço — vamos, eia, desperte — para não se deixar envolver nem pelo pessimismo, nem pelo ufanismo.

A sua experiência como jornalista transparece clara em seu romance; você continua um repórter de olhos abertos nas esquinas do mundo, mas insiste em fazer a reportagem errada. Já Romain Rolland dizia (quem é que ainda lê Romain Rolland, me diga?) que a Imprensa é a grande prostituta (e isto antes da Primeira Guerra Mundial, num país como a França, onde se imagina que more a tal de Liberdade…). Inserida no contexto, vivendo às expensas daqueles que detêm os meios de produção (de bens de consumo e, portanto, do vil metal), a Imprensa é hoje uma indústria da informação, e como tal deve ser administrada. Todos vós, plumitivos, que adentrais este templo, lede antes a inscrição gravada na porta: “Deixai de fora toda veleidade literária, toda pretensão a reformistas, contentai-vos com a linguagem seca dos fatos, sem fantasias, e aprendei que o que não é bom para o jornal não é bom para vós.”

O seu mundo interior, cheio de fantásticos sonhos, chocou-se violentamente com este mundo real, bem organizado, impiedoso; e, se foi um choque que deixou marcas em seu espírito, tão fundas que ainda sangram em palavras de revolta, a verdade é que serviu para dar-lhe a exata medida, as dimensões, as fronteiras, as leis que o regem, deste outro mundo de felizes fantoches, manipulados por dedos invisíveis.­

Antônio Torres, meu irmão: você é como o astronauta que conquistou a lua e agora anda meio sorumbático por este mundo, porque viu que o sonho tão intimamente sonhado, acarinhado como a máxima realização, era apenas um mundo árido, vazio, esterial. À sua volta, os amigos estão dispersos, encaixados como peças do Sistema, acomodados; os amores estão esquecidos ou mortos; sua casa está em escombros, é preciso reconstruí-la porque o homem está sempre reconstruindo-se. Você já não luta, aceita ser consumido pelo Minotauro-Televisão, símbolo do holocaustro dos sonhos jovens em louvor do deus máquina.

Gosto do seu Um cão uivando para a Lua. Livro de um jovem, com impacto e excessos de juventude, mas muito humano e muito verdadeiro. Há, quanto à composição, certas restrições leves, que a profunda impressão causada pelo todo faz esquecer.

Uivar é com os cães

Aguinaldo Silva

Terra em transe marcou, junto com as páginas finais de Quarup, o fim de uma fase na cultura brasileira. A partir daí, os gestos românticos deixariam de atrair até mesmo os nossos intelectuais, o que marcava o início de um processo terrível: o “virar um Portugal” de que falou Chico Buarque de Holanda, em “Opinião” no 2. A cultura passaria a trilhar um caminho cada vez mais desinteressado da vida, até chegar às caixinhas ocas e transparentes de acrílico nas artes plásticas; aos diálogos entrecortados e ininteligíveis do cinema; o ao delírio formal, ao jogo de palavras sem sentido a que se entregou a literatura.

No campo da literatura — o que nos interessa — a des­munhecada foi ainda maior: nossos jovens e aflitos escritores passaram a negar toda uma tradição realista, a chamar de acadêmicos os que ainda jogam com a realidade, e a despencar, ou para o fanatismo capenga, ou para a mais desenfreada vanguarda. Nos dois casos, uma preocupação que deve ter agradado o sistema: não dizer nada. Mascarar de tal forma as palavras que estas, afinal, acabem desprovidas de ­qualquer sentido. Nem mesmo usar o sentido “oficial”, o con­­­ve­niente à situação atual, e portanto já deformado, mas partir para o non sense do tipo Me segura que vou dar um troço (Wally Sailormoon, autor jovem) que mascara, principalmente, a covardia (seria bom lembrar aos nossos escritores a lição dos escritores portugueses: ao longo desse “virar Portugal” eles aprenderam a empunhar a palavra e a pairar acima da hipocrisia geral. Basta citar um romance: O delfim, de José Cardoso Pires).

Uma das primeiras missões de um honesto intelectual brasileiro, hoje, é dar às palavras seu verdadeiro sentido. “A vida de um honesto intelectual brasileiro, hoje”, é a motivação de Um cão uivando para a Lua, que, como Quarup, de Antônio Callado, vai mais além, até traçar todo um painel da vida brasileira, hoje, que oscila entre os PNBs fantásticos e a miséria que nenhum milagre consegue camuflar. A história de A., personagem central do livro, jornalista que se projetou na fase posterior a Terra em transe — quer dizer, aí pelos idos de 1967 — é a de boa parte dos nossos intelectuais de agora, imprensados entre os últimos estertores de um idealismo inútil e a soberba Tentação da Montanha, onde o diabo aparece disfarçado em torre de televisão, ou em promessa de muito dinheiro e alguma possibilidade criativa numa agência de publicidade. Os frequentes e chocantes contatos com a realidade tornam este intelectual doente, amargo (alcoólatra), levam-no a procurar o útero — ou o saco — do analista e até a “clínica em Botafogo”, mas já não o conduzem a aventuras como as do Padre Nando em Quarup. Ninguém quer mais morrer poeticamente, em câmera lenta, como Jardel Filho em Terra em transe, porque a realidade das caixinhas de acrílico é avassaladora demais, e porque, para esta geração que agora chega aos 30, e que passou a se interessar pelo processo cultural a partir de 1965, a vida foi sempre assim.

Um estreante seguro

Mesmo para os críticos — e os leitores — que se recusem a ver nesta obra a realidade que ela reflete, Um cão uivando para a Lua é irrepreensível. Embora o autor cite, a certa altura, “Pierrot Le Fou Godard” como seu “autor” predileto, sua novela atinge quase sempre um tom feliniano, isso com uma segurança pouco frequente em estreantes. Algumas seqüências — como a da viagem do repórter pela Transamazônica — atingem a maior altura de nossa ficção, o que nos permite cobrar de Antônio Torres a promessa de importantes obras futuras; esperamos que, após uma estréia tão feliz, ele não desça da montanha, como seu personagem, para assinar um promissor — e castrador — contrato com a TV.