Essa terra na cidade que se abre para a morte

Jornal da Tarde – São Paulo, 24/07/1976.
Leo Gilson Ribeiro

Capas de Essa Terra

A grande cidade não tem lugar no sofá das musas.

De Tchekov a Steinbeck, de John dos Passos a Eça de Queiroz, nos contrates entre “A Cidade e As Serras”, o campo perpetua a saudade dos contatos humanos e da relação artesanal que o homem mantém com seu trabalho, e a metrópole é a imaginação para o anonimato de um trabalho mecânico e sem dignidade. Como no cinema, o epitáfio do trabalhador moderno é a máquina que enlouqueceu o operário de Charles Chaplin em “Tempos Modernos”. Como nos romances naturalistas de Zola, a revolução industrial, no Brasil ou na França, não criou só a multiplicação do lucro: colocaram na linha de montagem, triturando-os, os próprios sentimentos humanos. Ao dividir tarefas, isolou os seres humanos numa produção brutal e mecanizada.

Na literatura contemporânea do Brasil, a transformação de uma sociedade rural em amontoados de favelas, cortiços e bairros elegantes  encontrou em São Paulo seu laboratório ideal. Antônio Torres , com “Essa Terra”, demarca nitidamente o contraste entre o interior – de estrutura feudal , miserável, mas de valores e feições humanamente reconhecíveis – e São Paulo, sem rosto nem forma, um falso Eldorado onde  ganhar a vida  significa perder o seu sentido. A alienação utilitarista do emprego que se dará à energia humana já tinha sido analisada pelo autor em seus livros anteriores, “Um Cão Uivando para a Lua” e “Os Homens dos Pés Redondos”. Neles, tanto o repórter de um jornal como o publicitário de sucesso são engrenagens desse mecanismo maior que eles apenas fotografaram, células desse organismo devastado pela leucemia.

Em “Essa Terra” seu alvo pertinente é o progresso formam, feito de lantejoulas; o homem da roça arruinado pelos empréstimos do banco, deslumbrado com o radinho de pilha, o relógio, o arado substituído pela oficina mecânica e pelo posto de gasolina. As famílias são igualmente pilhadas, de forma crescente: de suas propriedades, que diminuem de geração a geração, de seus filhos que emigraram para São Paulo, da autenticidade das relaçeõs humanas quando as pessoas tinham nomes e não cargos. De forma exacerbada, o escritor sugere que a caneta mata a palavra, o papel asfixia a fala.

Felizmente, Antônio Torres tem suficiente discernimento para não encampar a idéia de que a aldeia, com suas virtudes devoradas pelo asfalto, é aquele mundo inocente, do homem selvagem de Rousseau, ainda não corrompido pela civilização. Ele não vê o meio rural como uma paisagem bucólica, da qual a técnica foi abolida numa volta absurda ao passado anterior à revolução industrial. Como em seus livros anteriores, Antônio Torres acumula elementos para denunciar toda uma estrutura social, que abrange “a cidade e as serras”. Mostra que se a roça não isola seus habitantes, mantendo sua identidade no agrupamento social, por outro lado sufoca com o latifúndio, o conservadorismo, o patriarcalismo, qualquer perspectiva de melhora. O campo brasileiro é o atoleiro da ignorância, da fome, do desmantelamento. A cidade é a troca dessa injustiça particular por uma injustiça mais ampla e mais amorfa. É sintomático que logo no primeiro capítulo Nelo, o irmão que foi da Bahia para São Paulo, apareça enforcado: o suicídio é a impossibilidade de escolher entre as duas monstruosas opções: afinal, ficar ou partir desemboca tudo no mesmo fracasso.

Todo o livro passa a ser então uma evocação do passado que se alterna com o presente, em trechos de eficiente utilização estilística do flash-back. O irmão sobrevivente, narrador que alinhava os acontecimentos trágicos, se sente “como dois ponteiros eternamente parados” de um relógio: ameaçado pelos pastos que diminuem, gradativamente, é enxotado da terra pelo mero instinto de conservação.

Antônio Torres traz como elemento novo, de função inesperada, a mulher, a mãe que é o motor de transformação, o alvo da propaganda mentirosa e que incita o filho a emigrar, a procurar no formigueiro da grande cidade o poderio do salário, a força concreta do dinheiro como fuga daquele pântano cotidiano. O pai é que se apega à terra, como se ele fosse o porto seguro diante do naufrágio. Ponto de tensão entre esses dois extremos, o “filho pródigo”, na trágica ironia do autor, é o elo que se parte.

Na trajetória de seus três livros já publicados, o escritor, se aprofundou sua análise, no entanto não disciplinou o tom emotivo. Se obteve páginas excelentes na descrição patética dos personagens e na viagem da mãe para o asilo de loucos, foi infelizmente incapaz de eliminar expressões que abalam a força do relato. É o caso patente de “Papai nem queria ouvir se tocar no assunto – gargalham os dentes do passado” ou “Mais pesado do que o ar não era o sino. Era o coração dos homens”. Isoladas , essas frases involuntariamente “ Kitsch” não chocam tanto. Só na passagem em que a qualidade decai a um nível inesperado é que o autor, num diálogo imaginário com Deus, atribui-lhe características de um Clóvis Bornay, a desfilar na passarela do carnaval:

“Me visto de sol e de lua, me adorno de estrelas e tenho um raio em cada braço. Quer saber a verdade mesmo? Sou o campeão nacional de qualquer concurso de fantasia. Deve ser por isso que dizem que Eu Sou Brasileiro”.

Frases como esta desmerecem qualquer livro que não tenha sido assinado por José Mauro de Vasconcelos, Num escritor sério, de talento comprovável, causam mal-estar, embaraço, perplexidade. Destoam da colaboração elegíaca desta narrativa que se inicia com um suicídio que serve para iluminar outras vidas já mortas. Enfraquecem este painel comovedor em certos trechos da ineficácia da emigração como solução final para a miséria, deste teorema que se reconhece o falso progresso.

O romance social é possivelmente o gênero mais difícil pelos ardis maniqueístas que oferece ao escritor. De um lado o bem róseo, de outro o Mal monolítico e todo “do lado de lá”. Antônio Torres não sucumbe á tentação ingênua de propor soluções ideológicas que extravasam a diagnose radiológica que a leitura pode fazer de uma sociedade. Reconhece por detrás de qualquer materialismo, histórico ou não, o materialismo histérico que mina tantas visões primatas da complexa condição humana. Sabe que entre o Gorki de 1914 e o Brasil de hoje passaram-se décadas decisivas que reformularam as fórmulas da farmacopéia para os males que os homens infligem uns aos outros. E é justamente por ter a lucidez de não desembocar no proselitismo panfletário que seus livros deixam sua marca na literatura que se faz hoje no Brasil.

No entanto, é indispensável que o autor reduza de muito o âmbito de dizer. Caso contrário, o excesso de temas, abordados sem profundidade, como o do louco e o do veado, enfraquecerá inevitavelmente a importância do que ele tem a testemunhar para ao leitor. Não se trata de uma luta simplista entre a caneta e a enxada: a máquina de escrever coexiste com o trator. Por não se insurgir contra a mecanização da lavoura nem por advogar uma panacéia cifrada na volta pura e simples à Natureza agro-pastoril é que a sua criação precisa restringir-se para adquirir substância maior. Na lavoura como na literatura, o latifúndio e o minifúndio são tão enganadores como o binômio cidade-campo.

Senão, para continuar com o vocabulário agrícola, o melhor será esperar. Assim como as terras se esgotam, sem rotatividade de culturas, os autores também se beneficiam quando um intervalo de meditação fecunda sua própria gleba de talento.


“Torres, como Graciliano, optou pelo mais honesto: escrever sobre o seu Nordeste. E assim como Graciliano identificava as personagens de Vidas Secas mostrando que saíram de sua família, Essa Terra tem no lastro biográfico a sua força original.” – Affonso Romano de Sant’Anna/Veja

Essa Terra um clássico contemporâneo

Correio das Artes – João Pessoa, PB, 3 e 4/11/2001.
Aleilton Fonseca

Capas de Essa Terra

O romance Essa terra, de Antonio Torres, chegou à 15ª edição, pela Editora Record, comemorando 25 anos de circulação, já traduzido para cerca de dez idiomas, estudado em artigos, ensaios e teses no Brasil e no estrangeiro. O sucesso do livro começou já na estréia, em 1976, com edições seguidas, ao merecer da crítica a saudação como uma ficção madura e primorosa.

Essa terra focaliza, na experiência de uma família do sertão baiano, o drama da migração nordestina para São Paulo e suas conseqüências psicológicas e sociais. Sob a ótica do narrador Totonhim, o irmão mais novo, conhecemos a trajetória do protagonista. Nelo é o migrante que, ao deixar sua terra, sua família e sua identidade para trás, entrega-se à metrópole paulistana e nela se perde, desenraiza-se e termina derrotado. Ao retornar ao lar paterno, encontra-se doente, abandonado e desiludido. Não suporta o peso da frustração, ao sentir que não contemplara as expectativas da família, sobretudo de sua mãe, que o imaginava rico e vencedor. O suicídio de Nelo é, portanto, o nó do enredo, síntese do impasse, do desenraizamento e da frustração que destroem o personagem. Este drama pungente constitui uma ficção precisa, de grande força estética, uma espécie de depoimento sobre um aspecto dramático da sociedade brasileira de meados do século XX. Pode ser visto ainda como um memorial consubstanciado no contraste gritante entre os grandes centros desenvolvidos e o sertão esquecido à própria sorte, em que a redenção do homem se reduzia ao horizonte das tristes estradas.

Essa terra tem o toque mágico dos grandes livros, desperta no leitor o senso de reflexão comiserada acerca do semelhante e a suas condições de existência, açula a vontade de compreensão e a solidariedade, provoca uma visualização mais profunda do ser humano. Este romance nos faz enxergar mais profundamente a realidade dos excluídos, reconhecendo-os enquanto sujeitos e pacientes de um drama histórico. Ao lê-lo sentimos aquele mesmo apelo de Vidas secas, assim como a marca da hombridade que se capta no sertanejo de Os sertões. Trata-se de uma escrita densa, de economia formal medida, tecida com a maestria de um romancista que consegue aliar precisão técnica à ternura do relato, mantendo, apesar da tensão, uma “camaradagem” equilibrada com seus personagens. Enfim, esta é uma prosa que alicia o leitor fazendo-o mergulhar afetivamente na leitura e nos dramas as personagens.

A migração é um fenômeno universal, assim como o desenvolvimento desigual dos lugares. Campo, cidade, metrópole, essa é a rota que exibem todos os países, num fenômeno mundial. O drama da viagem, do desenraizamento, da diáspora, da perda de valores fazem de Essa terra um romance universal, pondo em relevo a feição particular que este assume em território brasileiro, na trajetória sertão/metrópole, como uma viagem de ida e volta, não só em termos concretos, no deslocamento dos corpos e das vivências, mas na transição de valores, comportamentos, imaginários e condições de vida.

É auspicioso para a literatura brasileira ter um romance dessa dimensão, surgido na abertura do último quartel do século XX. Um livro que se coloca na mesma linhagem de O quinze, Vidas secas e Vila Real, naquilo que esses romances têm de esforço para compreender a saga do nordestino, em condições tão adversas. Nesse sentido, pela fortuna crítica amealhada em suas 15 edições, pela saga em terras e universidades estrangeiras, em apreciadas traduções, Essa terra merece registro entre os grandes romances brasileiros. Um clássico contemporâneo que se tornará cada vez mais visível na pequena lista de livros que jamais caem no esquecimento, porque se tornam objeto constante de estudos, referências, matéria de exames e concursos, fazendo parte do cânone escolar corrente, lugar das obras consagradas. O romance de Torres tem a rara qualidade de ser ao mesmo tempo profundo e acessível a um público mais amplo. Rico em significações não só estéticas, mas também sociais, dialoga com diferentes dimensões do saber, interessando também aos estudiosos da cultura, da história, da geografia humana, entre outras.

Essa terra, essa vida, essa busca – uma viagem a que a leitura nos convida, de forma que ao final da trajetória, poderemos exorcizar o drama humano e social de Nelo pela forma narrativa e compreensiva que o narrador Totonhim nos ensina. Ensinar a compreender a vida não é o papel social do escritor, para além de seu irrecusável compromisso estético? Para compreender melhor essas questões, leiamos Totonhim, Totonho, Totinho, simplesmente Antônio Torres.


“Eu admiro muito a ironia, o calor e o estilo de Essa Terra, que tão brilhantemente descreve pessoas cujo destino é mudar de lugar.” – Doris Lessing

ESSA TERRA

Gerana Damulakis
gerana@atarde.com.br

Capas de Essa Terra

No livro Machado de Assis, a ensaísta Lúcia Miguel Pereira, observa que, no grande mestre, vemos confirmada a importância do regionalismo na formação do artista. Com aquela escrita crítica única, ela segue mais longe em suas considerações e lembra que este regionalismo constatado, não é o regionalismo do espírito, mas o da sensibilidade. Vale reproduzir as palavras da própria Lúcia Miguel: “As experiências como que se fixam melhor, são mais profundas, quando o ambiente é sempre o mesmo. Ir lentamente descobrindo o humano no local, partir do particular para o geral, torna mais natural e espontânea a criação”.

Tais colocações chegam a calhar aqui para tratar do livro de Antônio Torres, Essa Terra, nada menos do que a 15ª edição. A Editora Record está oferecendo ao público as reedições dos livros do baiano de Junco, com formato e capas dentro de um determinado padrão para quem quiser compor uma coleção: O Cachorro e o Lobo; Balada da Velha Infância Perdida; Os Homens dos Pés Redondos e agora Essa Terra. De 1976 até hoje, Essa Terra vem ganhando traduções mundo afora; além de traduzido para o francês, inglês, italiano, alemão, holandês, hebraico e espanhol, sairá em Cuba brevemente.

Mas é tempo de justificar a chamada de Lúcia Miguel Pereira para ser aplicada a este texto: Essa Terra é ambientado em Junco, hoje Sátiro Dias, interior da Bahia. O regionalismo de Antônio Torres trata desta terra e sua gente e, principalmente, do desejo e da realização mesma de sair do mundo da seca. No seu primeiro livro, Um Cão Uivando para a Lua, de 1972, a miséria do personagem que cresceu em Junco é apenas o começo da trajetória de um repórter rumo a São Paulo. Em Os Homens dos Pés Redondos, um publicitário, também trabalhando em São Paulo, teve sua infância passada em Junco. Finalmente, em Essa Terra, está evidente o tratamento tanto da miséria dos que vivem em Junco, como do êxodo, na figura do irmão do narrador principal, que partiu para São Paulo, ganhou dinheiro, mandou dinheiro de lá para a família que ficou no interior, e voltou, mas não afortunado como se poderia prever, e sim acabado, bêbado e traído pela mulher.

As memórias do personagem, chegadas como fragmentos, são aquelas memórias profundas de que fala Lúcia Miguel Pereira, fixadas no ambiente. E com isto de trazer o Junco para a ficção, Antônio Torres descobre “o humano no local, parte do particular para o geral, torna mais natural e espontânea a criação”. Regionalizando sua obra, Antônio Torres ganha na agudeza com que tece o drama e os personagens são mais reais. Em Essa Terra aparece de passagem o Nego de Roseno, dono do armarinho, que é personagem de um conto trazendo seu nome “Segundo Nego de Roseno”, do volume Meninos, Eu Conto (Record, 1999). Essas particularidades criam uma cumplicidade imediata com o leitor, fazendo com que se estabeleça uma intimidade muito interessante para a leitura.

>Outro ponto que o escritor sabe também atingir o leitor prendendo-o é o seu uso de frases curtas, sempre muito objetivas, em várias ocasiões chegando mesmo a serem bombásticas — aqui é imediata a lembrança do episódio da mãe do personagem, doente, dentro de um carro em direção a um distante socorro pelo deserto do sertão, a vomitar pela janela; há frases de enorme poder de expressão do momento. Mas o estudo minucioso sobre o livro encontra-se no posfácio assinado pela professora Vania Pinheiro Chaves, da Universidade de Lisboa.

Tendo em vista que alguns títulos estavam esgotados, os romances reeditados de Antônio Torres são oportunidades para o leitor passar a fazer parte dos admiradores deste ficcionista baiano, autor de mais de uma dezena de livros, sempre reconhecido e aplaudido.

Romance em tom profético

Estado de Minas – sabado, 14 de junho de 2003
Clara Arreguy

Em edição rica em documentos e reflexões, foi relançado pela Record o romance Um cão uivando para a Lua, de Antonio Torres. Escrito em 1971 e lançado no ano seguinte, o livro demonstra, 30 anos depois, que continua a ser não apenas o retrato de um tempo e de uma geração, mas um documento visionário, que antecipou em décadas a decadência da sociedade brasileira, braços dados o indivíduo e seu entorno social.

Nesta reedição, Antonio Torres prefacia a história explicando em que contexto foi escrita, como foi recebida, por gente que ele nem conhecia na época, como Jorge Amado, Marques Rebelo, escritores, críticos e editores, que saudaram como, apesar de trabalho de estréia, obra de um autor maduro. Um cão uivando para a Lua tem como base a loucura. Depois que o escritor, então um jovem jornalista e publicitário baiano à procura de emprego no Rio de Janeiro, visitou um amigo num manicômio, surgiu-lhe a idéia de escrever sobre o processo  de enlouquecimento.

Ao longo do romance, no entanto, o que era para ser o registro de uma viagem ao inferno particular de uma mente em sofrimento profundo assume outras proporções. A deterioração da política nos momentos mais negros da história do Brasil, o recrudescimento da ditadura militar, está na origem dos problemas gigantescos que se seguiram, como concentração de renda, violência, corrupção e tantos outros, que Antonio Torres aponta, sem proselitismo nem didatismo, na trajetória do herói.

Este, por sinal, não é exatamente um personagem principal, mas dois. O jornalista em crise internado no hospício tem no amigo que o visita um duplo em todos os sentidos. Ambos enfrentam conflitos profissionais: o primeiro, desempregado e surtado; o segundo, agora trabalhando na maior rede de televisão do Pais, mercado que, naquela época, significava vilipêndio a quem sucumbisse ao seu canto de sereia. Os dois transitam entre o jornalismo e a publicidade, entre a seriedade profissional e a vida boêmia, entre a fidelidade a princípios e as concessões ao mercado. Um pira, se interna, sai do ar, toma eletrochoques, mergulha no inferno, refaz, internamente, o road movie que vem sendo sua vida. O outro se espelha no amigo para buscar saídas, deficientes saídas para seus impasses.

Com uma escrita que namora referencias cultas – mas sem pedantismo – e uma visão jornalística do País que se desenhava naquele início de anos 70, Antonio Torres viaja pela Transamazônica, Belém-Brasília, sertão cearense, interior da Bahia, centro do Rio ou periferia de São Paulo com críticas e simpatia. O povo que encontrava ainda não havia se adaptado, de todo, à falta de valores e referências que tomaria lugar de tudo. Os choques muitas vezes são inevitáveis. O que surgirá do futuro ainda não podia ser visto em sua totalidade. O que Um cão uivando para Lua deixava entrever, no entanto, e embora o final do romance fosse otimista, era que se gestava um mostro. Profético.

Além do prefácio do autor, o volume contém também cartas enviadas a ele por gente como Audálio Dantas, a orelha da primeira edição, as primeiras resenhas e críticas publicadas na imprensa nacional e internacional.

Ni Condena ni Absolución

Montevidéu, Uruguai – El Dia, 15/09/1979
Enrique Estrázulas

Un Perro Aullandole a la Luna — por Antônio Torres. Editorial Sudamericana. Buenos Aires, 1979.

Com Guimarães a la cabeza, el propio Jorge Amado y su famo­so mito bahiano, Clarice Lispector, Erico Veríssimo, Drum­mond­ de Andrade y otros, la literatura brasileña está con­­­­siderada, por más de una opinión autorizada como clave dentro de las letras latinoamericanas. Al respecto, el mexicano Juan Rulfo fue explícito en sus declaraciones recogidas recientemente por la prensa argentina, durante su bravo estadía en Buenos Aires. De modo que la literatura del subcontinente escrita originalmente en portugués, no es ni tan “relegada” ni tan poco difundida internacionalmente como han pretendido denunciar algunos criticos brasileños, más precisamente en la última Feria de Frankfurt, durante los extensos-coloquios. Esa situación de estéril competencia entre los que escriben en castellano y los que dominan el portugués, comienza a desaparecer en América Latina. Brasil ha abundado en ejemplos nuevos, de nuevos escritores, como Piroli en su novela “Los rios se mueron de sed”, Ary Quintella en su nou­velle “Sandra Sandrinha” etc. Ahora tenemos a Antônio Torres: es, en si mismo, el escritor de la generación perdida, no como rótulo a una generación lite­raria, sino como de­nominación de una situación social vivida por los jóvenes de la última década en el exótico país del norte.

Lo más importante de esta novela, se encuentra en su trasfondo social, en su tono de desesperación, contenido por el sobrio procedimiento do composición del escritor. La carga emocional de cada uno de los personajes es evidentemente­ un descubrimiento dejado libremente a la captación sen­­­sible del Iector. Antônio Torres presenta a los personajes fun­da­mentales mediante signos, iniciales que se encargan de indicar que el narrador voluntariamente se niega a iden­tificarlos. Pero tras esse anonimato — que sin duda alguna es nada más que aparente — se encuentran varios hombres, hay una pluralidad humana notoria, a la vista o latiendo en la tónica del enjundioso texto. Es una generación enganada por una escala de valores falsos. Y se divide en núcleos de diferente problemática social: cada núcleo es un personaje.

“La sorpresa que causó esta revelación — dice a propósito de Torres el critico Celso Japiassú en el prólogo — trajo apare­jado el deseo de encontrar una salida, reflejándose en la búsqueda caótica y desesperada que llevó, inclusive, al consumo de drogas y a una perplejidad no sólo mal comprendida sino hasta reprimida con violencia.” El libro no critica lo que capta y pone ante el lector a veces con la fuerza de un punetazo. No condena ni absuelve. Muestra, nada más, y emociona, con un lenguaje claro y agresivo, pero literalmente creativo. El perro que le aúlla a la luna está solo y busca algo distante, que no sabe muy bien qué es, pero que, sin duda, tiene que ser mejor que las ataduras que lo sujetan. El camino que puede llevar a la libertad transforma a los personajes en viajeros enrolados en una peregrinación intensa y angustiante, dentro y fuera de si mismos, que sólo podría completarse con la comprensión, de la grandeza, de la violencia y la miseria que están presentes en T. y en A., dos de los personajes que Antônio Torres pone ante nosotros y que se transforman en un, espejo para reflejar nuestras propias caras.”

El estilo de este joven narrador norteño, subraya con ferocidad casi morbosa la realidad, mientras que el lector tiene a su frente — a raiz de ese procedimiento literario — la posi­bilidad de opinar y juzgar. Cuando un narrador no abre juicio y pinta tan admirablemente un panorama social, cuando queda todo liberado a los ojos anónimos de los lectores, a la con­ciencia de esos seres desconocidos, no hace más que mostrar un cuadro. Y, además, su talento indudable cuando Ias conclusiones son ajenas y la sugerencia es suya. A Torres le pertenece el gran fresco psicológico de esta obra que no es deliberadamente social, ni comprometida al estilo de los que en su compromiso alimentan su propia vanidad. Ante todo, quien escribió esta novela es un narrador de primera línea. Y dentro del panorama de la moderna literatura brasileña, con esta obra de aliento medio, pero de fortaleza subrepticia, Torres ya tiene un sitio intransferible como literato, pero también como hombre hondamento preocupado por su tiempo, por su país lleno de contrastes, de dolor y de vida.

Uma questão de coragem

Visão — 14/05/1973
Carlos Nelson Coutinho

(…) Exatamente pela sua temática, pela sua recusa obstinada em aceitar as seduções “neutralistas” de um vanguardismo estéril, é que o pequeno romance Um cão uivando para a Lua, do estreante Antônio Torres, destaca-se como o mais importante lançamento literário dos últimos tempos no país. Não há dúvida de que Torres parte de sua experiência pessoal: da experiência de um jovem intelectual provinciano que vem tentar a realização humana na grande cidade, sobretudo através do jornalismo, mas que termina paulatinamente esmagado pelas engrenagens de um mundo alienado, corrupto e hipócrita. Torres consegue criar alguns importantes tipos humanos, capazes de expressar adequadamente alternativas essenciais da jovem intelectualidade brasileira: basta lembrar aqui a significativa e plástica contraposição entre a loucura como forma de conservar o núcleo humano (simbolizada no personagem indicado pela letra A) e a paulatina e melancólica corrupção desse núcleo na figura de T. Pela sua temática, mas também pela sua coragem realista e pelo seu profundo espírito crítico, Um cão uivando para a Lua lembra o Isaías Caminha: sem ser a melhor obra de Lima Barreto, esse romance inaugurou — apesar dos seus defeitos estéticos — uma nova etapa na literatura brasileira de crítica social realista. O romance de Torres talvez desempenhe, guardadas as proporções históricas, um papel similar na difícil época que estamos atravessando.

Contra a corrente

É certo que Um cão uivando para a Lua nem sempre escapa do documentarismo, nem sempre encontra as melhores soluções formais para os importantes problemas que aborda. É também certo que esse documentarismo, identificando-se tendencialmente com o naturalismo, leva o autor a uma posição marcadamente pessimista, que nem sempre faz justiça às possibilidades de renovação que, ape­sar­ de tudo, conti­nuam a existir na realidade brasileira­ de hoje. Mas o decisivo é destacar que esse romance, marchando contra a corrente, propõe-se trilhar o difícil caminho de um reencontro da literatura brasileira com a realidade concreta.

Após tantos anos de predomínio do experimentalismo, de um “vanguardismo” neutralizador e estéril, não causa surpre­sas que esse caminho se apresente tão áspero: seria insensato exigir que, já num primeiro momento, se produzissem realistas da estatura de um Machado de Assis ou de um Graciliano Ramos. Isso implica não apenas no paulatino reaprendizado da arte (hoje em grande desfavor) de narrar uma experiência humana significativa, mas também — e talvez em primeiro lugar — na coragem de escolher e tratar até o fundo os problemas concretos da concreta realidade brasileira de hoje. Preenchendo o segundo requisito, é de supor que Torres não tarde em realizar também o primeiro. No quadro da jovem ficção brasileira, seu romance é um evento: uma confirmação de que o “vazio cultural”, suas causas e seus efeitos, não podem ser tomados como alibi para escapar ao cumprimento das reais tarefas sociais da literatura.

DUAS CARTAS

Audálio Dantas
Lisboa, 25 de janeiro de 1973

São Paulo, dezembro de 1972

Tonho Torres, meu querido A.:

Agarrei o cão pelo rabo, num pedaço de madrugada sem lua e sem muita esperança. O bicho latiu forte cá pra dentro, uivou todos os desencantos, desencontros, machucados de vida, entregas, refregas, lembranças, lembranças, saudades. Fiquei acuado, rabo entre as pernas como vive quase toda a gente, sem coragem de latir para os cachorrões fortes que estão no outro lado do muro, prontos para avançar.

Olha, cara, tu latiste por nós.

Te digo, minha surpresa não foi pela tua capacidade de gritar as coisas. Sempre acreditei na tua pureza juncal (jun­quense, junquesa?) — esse toque sagrado que têm os homens dos lugares humildes. Gostei de ver foi a maneira de gritar. Se tu não tivesse saído do Junco, que gritarias? Aboio de boiada? Canção de trabalho no eito? Serenata pras meninas? De uma coisa tenho certeza: seria sempre bem entoado, como nesse cão uivante, costurado com a perfeição de um velho e honesto artesão de couro, ponto por ponto, recorte por recorte, até a obra de arte.

O cão é o que é — uma obra de arte. Tu costura bem, Tonho. E o importante é que o resultado do trabalho não é simplesmente o do artista que o exibe orgulhoso pela perfeição atingida e depois se refugia na glória da arte pura. O resultado é uma peça da qual o artesão se orgulha por haver cumprido o dever de trabalhador. E a certeza de que vai servir.­

O cão serve. Primeiro, como lição. Ele vem dizendo o que muitos silenciam. Fala, inclusive, pelo meu silêncio. Ousa, arreganha os dentes que outros têm e se esquecem que podem acertar pelo menos uma mordida.

Morde a vida que anda a passar sem muita glória, morde quem quer e está podendo controlar a vida dos outros. Tem importância não que um dia a gente se renda ao chamado dos Ts da vida (há muitos Ts por aí, nós somos um pouco ele, não é?). T. tá engrenado, mas ainda tem algo de puro. Talvez seja isto que nos socorre — a nós, os Ts.

Mas pô! Até quando vamos ser T. na vida?

Enquanto não nos for possível sair dessa condição, uivemos, irmão. Nem que seja para um luar inexistente.

Viva o cão!

José Cardoso Pires

Camarada Antônio Torres,

Muito obrigado pelo seu livro que só agora me foi possível ler. Tenho estado ausente de Portugal em longos períodos, foi por isso. Mas agora que li de uma só tirada Um cão uivando para a Lua acho meu dever inadiável felicitá-lo.

É que, para além do mais, ambiência, quadro social, etc., o que me surpreendeu foi a atitude interior de contestação literária que está subjacente ao texto e que lhe dá essa dinâmica de crise polêmica que, a meu ver, é bem mais valiosa do que a descrição do conflito. Só por isto as cento e tantas páginas do seu livro justificariam muito bater de máquina… muita apreensão com que nos debatemos, todos nós, dian­te duma estória a contar.­

Você contou a sua e bem: por dentro; pela sua atitude em relação a própria frase da acção. Parabéns, por isso.

Escolher a dor

Jornal do Brasil — 03/01/1973
Hélio Pólvora

Com uma frase de William Faulkner — “entre a dor e o nada eu escolho a dor” — Antônio Torres ilustra e também define seu romance de estréia, Um cão uivando para a Lua. “Between nothing and grief I take grief.” Esta frase, que sempre me impressionou desde a primeira leitura de Wild Palms, é o fecho do monólogo final de Wilbourne, que continua a sofrer na memória uma bela e trágica história de amor. Wilbourne é um dos vários personagens faulknerianos que não teme o abismo. Arrastado até as bordas, deixa-se cair, enquanto decide, com uma selvagem alegria, perscrutar o fundo. São heróis da resistência pessoal. Heróis por dentro.

Esta opção pela dor me leva a ler o romance de Antônio Torres e vejo que ele, mesmo querendo chocar, produzir impacto, escreve com muita convicção. É desses escritores que têm o que dizer, porque, antes de tudo, viveram, tiraram conclusões de uma experiência própria. No caso de Antônio Torres, essa experiência, que gerou o depoimento, parece ligada ao jornalismo. A história se repete: o moço chega à cidade grande do Sul, atraído por luzes que julgava humanistas, e não tarda a descobrir que ali apenas o espaço é maior. Nele cabem, além de angústias pessoais, o desespero que vem de fora, dos acontecimentos e situações de um mundo só.

A contaminação é fatal. E como as personagens de Antônio Torres, que ele designa com iniciais, são pessoas sensíveis, lidas e instruídas, a fuga se torna mais difícil. Como evitar os golpes diários desfechados na sensibilidade? É possível cultivar a sensibilidade em meio a tantas agonias? Os jornais refletem o mundo caótico de hoje varrido pelo vento da violência. O cadáver de uma mulher atropelada em Botafogo é reduzido a uma posta de carne pelos automóveis que passam e não podem parar: o trânsito tem de fluir. Em São Paulo, um homem que dedicou sua vida inteira à firma é despedido e apresenta seu advogado: Mr. Smith, o revólver. Por toda parte, assassinatos, suicídios, assaltos, mendicância, prostituição. Sobreviver é a coisa mais importante. O menino que engraxa sapatos no calçadão da avenida Atlântica e mora em Parada de Lucas sabe disso. O operário que trabalha no Aterro sonha com o momento de tomar seu gole de aguardente.

A sobrevivência exige nervos fortes, uma estrutura de aço. O progresso tem um custo social altíssimo que, em alguns casos, é reembolsado sob forma de contestação, e, em outros, leva forçados contribuintes à loucura. “O progresso é o desencanto contínuo”, lembra uma das personagens insones de Antônio Torres, citando Scott Fitzgerald. Um cão uivando para a Lua é, portanto, o romance da fossa generalizada. Parte da angústia individual, “aquele negócio horrível por dentro”, e atinge um sentimento coletivo de paranóia frenética. Sob este aspecto, Antônio Torres situa seu livro na órbita da agonia e da procura que tem servido de tema à ficção e poesia de todos os tempos, mas parece envolver cada vez mais o homem contemporâneo.

“Meus heróis estão mortos”, raciocina uma das personagens, em meio àquele “monte de caixotes empilhados, os engradados onde 8 milhões (seriam mesmo 8?) se engarrafavam”, isto é, a cidade de São Paulo. “Meus heróis estão armazenados nas prateleiras da minha estante ou amarelecidos pelo tempo num recorte de jornal, enquanto o herói moderno se angustia nos divãs e eu não entendo mais nada.” No derradeiro monólogo do romance, sentindo-se velho aos 31 anos, o homem-multidão faz um exame de consciência  — e o que vê é a paisagem sombria da desesperança acomodada: “Vejo uma porção de homens de pés redondos — e eu no meio deles — rodando, rodando, rodando pelo mesmo quarteirão, comendo pipoca e engolindo em seco com a vista baixa, um passo aqui, outro não sei quando, como se não existisse mais nenhum horizonte, como se o mundo começasse aqui e terminasse aqui mesmo, neste banheiro, neste bairro — e sempre ligado a um aparelho de televisão.”

O romance de Antônio Torres, a mais significativa dentre as poucas estréias de 1972, é vitorioso na medida em que consegue transmitir um poderoso sentimento de solitude, desespero, frustração e ânsia. Literariamente deixa, no entanto, a desejar. Há trechos — principalmente o de uma personagem diante do espelho, a interrogar-se — muito bem realizados, e que por isso mesmo desautorizam outros, escritos, ao que parece, com arrebatamento e pressa.

O romancista faz lembrar, de certo modo, Henry Miller, quando mistura depoimento, reportagem e crônica, numa espécie de diário intemporal, e abusa dos coloquialismos, não se detendo diante de um palavrão. Mas possui em relação a Miller o sentimento de unidade, de condensação. Embora não sendo um escritor surrealista, a prosa nervosa, aos arrancos, e a visão pessimista, profética, aproximam-no também das melhores denúncias de Norman Mailer, especialmente o Mailer de An American Dream e Barbary Shore.

De Antônio Torres é possível esperar uma ficção maior, mais amadurecida  — romances construídos com preocupação de estrutura e maior empenho artesanal. Um cão uivando para a Lua fica como amostra, e boa, de suas possibilidades. Ele leva sobre outros jovens escritores brasileiros do momento a vantagem de não negar o seu depoimento, que é, sem dúvida, o de um homem sofrido. Seu romance terá vários defeitos, mas não o de anemia orgânica que leva o ficcionismo a exercícios em torno do nada.

O eletrochoque

Veja — 07/12/72
Leo Gilson Ribeiro

Diante deste livro de estréia não há uma terceira opção: ou se aceita ou se interrompe a leitura. O romancista, desde as primeiras linhas, desde o primeiro capítulo, não esconde nada do leitor. Envereda por um tipo de literatura emotiva, visceral, profunda e autenticamente sincera. Mais articulado do que The Crack Up, de Scott Fitzgerald, é como ele um sismógrafo interior, o gráfico diário de uma neurose urbana. O escritor, o homem sensível que raciocina, é devorado pela máquina da televisão e da publicidade, esta Hollywood da década de 70 no Brasil. Assim como Fitzgerald foi consumido pelo comercialismo das fitas da Metro (cujo lema ainda é: “Ars gratia artis”, a arte pela arte, mas gravado em ouro de 18 quilates) e trocou seu fascínio pela riqueza com uma obsessão pela miséria, esta história parte do colapso que leva a uma “clínica nervosa”. Quem preferir uma literatura inventiva, sem testemunhos pessoais, sem aquele desvendamento brutal que um Dostoievski faz em Recordações da casa dos mortos, ou Jean Genet em O diário de um ladrão, nem deve ler o desigual estreante brasileiro.

Imaturo em vários pontos, com desigualdades de estilo e hesitações de quem tateia o seu próprio caminho de auto-preservação, Antônio Torres é um talento explosivo. Suas armas são a angústia, a busca do raciocínio lúcido, a revolta às vezes ingênua, às vezes adolescente, mas sempre moral de quem constata que é a mera peça de uma engrenagem desumana.

A loucura é tratada por Antônio Torres como o retrovisor da realidade, como um espelho interno que revelasse as entranhas de uma estrutura social em que o absurdo é a norma e na qual quem divergir é trancafiado em manicômios como os cientistas, poetas e romancistas russos de hoje que contestaram a invasão da Checoslováquia de Dubcek pelos tanques de Brezhnev. “Toda a minha vida foi uma luta idiota pela percepção, apreensão e aceitação da realidade. Ao lutador, seu justo prêmio: uma camisa-de-força.” Não é um personagem de Machado de Assis que exclama “ao vencedor, as batatas!” É o eu perscrutador de Antônio Torres na era do Ibope, da televisão líder, do “palmas para ela, que ela merece” e de “nossos comerciais, por favor” ao lado de inacessíveis baús da felicidade. O personagem de Antônio Torres ingênua mas comovedoramente constata que o direito à felicidade, que integra a Constituição dos Estados Unidos, não faz parte da estatística do produto nacional bruto de nenhum país do mundo. Oral, a sua literatura capta a gíria, as incorreções gramaticais, a linguagem sincopada e abreviada de quem fala. Usa monólogos interiores, pesadelos, flash backs de diálogos recordados como numa montagem cinematográfica. Mas, coincidindo com o teatro do absurdo de um Ionesco ou um Beckett, não há conversas entre duas pessoas — o médico e o cliente, o amigo que visita o doente na clínica, o doente e a mulher, Lila, que é o amor lembrado. Há desníveis de conversação como dois estrangeiros que não soubessem decifrar uma língua que o outro fala.

Antônio Torres frequentemente incorre em certa presunção ao atribuir ao seu quase monólogo a dilaceração estética de um intelectual solitário, incapaz de achar tempo para escrever sua obra-prima. Os pensamentos, as frases do narrador brasileiro não têm a profundidade da especulação filosófica e ética dos personagens do escritor Saul Bellow que cita:

“Saul Bellow é um bom escritor. A moça que estudou nos Estados Unidos e que me emprestou Herzog me disse: ‘Este livro fala da solidão do intelectual americano.’ E eu respondi: ‘Ah, é? Então está falando de mim.’ Essa mera formulação deixa concluir que se tratam de solidões diferentes. A do escritor amarrado pela televisão brasileira nada tem a ver com a solidão do homem de negócios americano que em Hen­derson, the Rain King vai à África para renascer espiritualmente. Em certo trecho de seu livro vozes de homem e de mulher discutem se a carne de boi é melhor que a de homem. Para Saul Bellow e Scott Fitzgerald há graduações infinitamente mais sutis e no Brasil atual também.

A não ser por essas incongruências, Antônio Torres, que luta menos com palavras e idéias do que com percepções e um corpo maciçamente físico (o coração, o fígado, o estômago etc.), é um talento muito importante e ainda vacilante que surge com o valor e o impacto de um flash tirado do interior de um cérebro humano no exato momento em que é sacudido por um violento eletrochoque.