Trabalho sobre Essa Terra produzido na Comunicação da UFBa

Capas de Essa Terra

MINHA TERRA

Análise da representação da cidade natal na obra de dois artistas baianos: Junco, na literatura de Antonio Torres e Santo Amaro da Purificação, na obra de Caetano Veloso.

Elizabeth Ponte de Freitas

Introdução: As narrativas das Cidades

“Estamos na cidade. Não podemos sair dela sem cair em outra, idêntica mesmo quando diferente”.
Octávio Paz, poeta mexicano e prêmio Nobel de Literatura.

Toda boa obra literária ambiciona a ser uma transposição poética da realidade. Porém, antes de constituir uma transposição, poética ou não da realidade, a literatura é produto de um meio sóciotécnico e, eminentemente a partir do século XIX, urbano. A literatura européia desta época, assim como a nascente produção literária brasileira, trazia em si uma ambiência urbana, fruto da Revolução Industrial e do crescente desenvolvimento técnico das cidades. A metrópole, a urbe imensa, tornou-se então palco para os enredos, e as linhas escritas não apenas contam histórias mas denunciam as desigualdade prementes e reconfiguram o imaginário do espaço urbano.
No campo da literatura, as discussões acerca das relações entre o espaço urbano e a ficção já estão muito avançadas. Para muitos teóricos, a representação do espaço surge como característica inerente à literatura, que passa então a contribuir para construção da narrativa histórica urbana e para o processo de “desvendamento” das cidades, pois:

A literatura possibilita conhecer espaços e lugares porque é da realidade concreta que o escritor resgata os elementos para a construção do universo ficcional de sua obra literária, um processo de re-criação no qual evidencia a relação entre o espaço e literatura. Desafiando o escritor a decifrá-la, a cidade exige dele uma percepção que penetra além das aparências e desvenda a verdadeira essência das ruas.”  

A cidade passa a ser frequentemente representada na literatura, que, por sua vez, também sofre transformações ao incorporar a temática urbana. Para compreender esta relação, é necessário compreender a cidade, o espaço urbano, para muito além de sua dimensão meramente espacial. A cidade não é apenas o cenário mutável do desenvolvimento. É preciso enxergá-la como parte de uma ambiência e de um modo de vida urbanos, como local de construção de referências afetivas e de memórias individuais e coletivas. É importante também ressaltar que porespaços urbanos não nos referimos apenas às grandes cidades, mas a qualquer cidade, pois todas são locais de sociabilidade e interação com o ambiente. Os modos de vida podem ser distintos, mas a ambiência urbana, o “estar na cidade” permanece.
Assim, procuraremos neste trabalho analisar o papel que a cidade natal desempenha nas obras de artistas, como ela se apresenta e a que noções ou sentimentos está mais frequentemente associada. A idéia deste trabalho foi concebida inicialmente tendo em vista apenas a relação entre e a literatura e as cidades. O viés foi posteriormente ampliado para que contemplasse outras expressões artísticas que não somente a literária, sendo escolhida a linguagem musical para o complemento das idéias desenvolvidas. Enfocaremos a representação, ou a transposição poética, das cidades de Junco (atual Sátiro Dias), na obra do escritor baiano Antônio Torres, e Santo Amaro da Purificação, na obra do músico Caetano Veloso. Ressaltaremos também a importância do fato de ambas serem cidades interioranas e seu reflexo na obra dos artistas, exposto nos ritmos, musical e narrativo, e no constante saudosismo sensível nas obras.

Eis aqui tudo de novo

Onde eu nasci passa um rio
Que passa no igual sem fim
Igual, sem fim, minha terra
Passava dentro de mim
.”

Caetano Veloso

Se este trabalho fosse uma ficção, diríamos que seu eixo narrativo possui quatro personagens principais: dois homens e duas cidades.
Antônio Torres nasceu em 13 de setembro de 1940 na pequena cidade de Junco (atual Sátiro Dias), no sertão baiano. Ainda novo foi estudar em Alagoinhas e de lá foi para Salvador, onde se formou jornalista e reside atualmente na cidade do Rio de Janeiro.
Foi apenas aos 32 anos que Antônio Torres encontrou aquela que seria sua profissão e que mudaria o rumo de sua vida e de sua cidade. Em 1973 é lançado seu primeiro romance, “Um cão uivando para a lua”, um livro que obteve boa repercussão na literatura nacional, sendo classificado pela crítica como “a revelação do ano”. Mas é do ano de 1976 que data o terceiro e mais importante livro da carreira deste autor, com um total de 13 livros publicados. “Essa Terra” é o romance mais conhecido de Antônio Torres e por sua narrativa fluida, sensível e em muito autobiográfica proporcionou ao autor reconhecimento nacional e internacional.
Muitas vezes comparado a obras-primas como Vidas Secas, de Graciliano Ramos, “Essa Terra”  problematiza em seu enredo questões relacionadas à seca, ao êxodo, à inadequação às mudanças e às raízes humanas na cidade.  O livroganhou uma edição francesa em 1984, abrindo o caminho para a carreira internacional do escritor baiano, que hoje tem seus livros publicados em Cuba, na Argentina, França, Alemanha, Itália, Inglaterra, Estados Unidos, Israel e Holanda, onde foram muito bem recebidos.  De acordo com Luciano Trigo, do Jornal O Estado de São Paulo: “Ele é sucesso na Europa. No setor de línguas estrangeiras da Universidade de Nantes, França, há três livros brasileiros de leitura obrigatória: o primeiro é Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Os outros dois são de Antônio Torres”.
Todo este reconhecimento rendeu ao autor diversas homenagens, entre elas a condecoração de Cavaleiro da Cultura e das Artes (“Chevalier des Arts et des Lettres”), concedida pelo Ministério da Cultura da França, em 1998. Em 2000 recebeu o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da sua obra. E em 2001, com o romance “Meu querido Canibal” ganhou o Zaffari & Bourbon,maior prêmio literário do país.
Dois anos após o nascimento de Antônio Torres, nascia Caetano Emanuel Viana Telles Veloso, em 07 de agosto de 1942, na pequena cidade de Santo Amaro da Purificação, na região do Recôncavo Baiano. Caetano Veloso, como posteriormente passou a ser reconhecido, mudou-se para Salvador aos 18 anos e a partir de então trilhou o caminho que viria a torná-lo um dos mais importantes, se não o mais importante, nome da MPB.
Ainda sem muita vocação para a carreira artística, Caetano foi morar o Rio de Janeiro em 1966, para acompanhar a carreira da irmã mais nova, Maria Bethânia, outra importante personagem da história da música nacional. No mesmo ano, Bethânia gravou a canção “É de Manhã”, de Caetano, e a música marcou sua estréia com um compacto simples. O primeiro disco, “Domingo”, veio apenas em 1967, no qual cantava ao lado de Gal Costa. Foi um dos fundadores do Tropicalismo, o movimento marcante da contracultura e da vanguarda brasileira, nos de 1967 e 1968, auge do período ditatorial brasileiro, o que ocasionou sua prisão e exílio em Londres juntamente com o parceiro artístico Gilberto Gil.
Cantor e compositor de raro talento e figura polêmica no cenário cultural brasileiro, Caetano Veloso conta hoje em dia com mais de 40 cds lançados. Conquistou o Grammy na categoria World Music, em 2000, com o disco “Livro”, e foi o primeiro brasileiro a se apresentar na entrega do Oscar, na edição de 2002.  Caetano também se aventurou em outras expressões artísticas, dirigindo em 1986 o filme “Cinema Falado” e lançando dois livros de críticas e textos, Alegria, Alegria (1977) e O mundo não é chato (2005), além de uma “autobiografia artística”,  Verdade Tropical (1997).
É dentro, e também fora, da obra destes dois artistas baianos que se encontram os outros dois personagens centrais deste trabalho. As cidades de Junco e Santo Amaro da Purificaçãosão presenças constantes na obra de Antônio Torres e Caetano Veloso.
O município de Junco (Sátiro Dias) localiza-se no sertão baiano, a 230 quilômetros de Salvador. Com um total de 17 mil habitantes, é uma das cidades brasileiras com menor índice de urbanização do país, com apenas 19%. Junco, antes chamada de Malhada da Pedra e Amparo do Junco, foi fundada na metade do século XIX pelo vaqueiro João da Cruz e sua família. Em 1927, Inhambupe, município ao qual Junco era ligado, a elevou à condição de distrito e mudou-lhe o nome, para homenagear Sátiro Dias, um filho ilustre daquela cidade, falecido em 1913. Em 1958 o lugar se emancipou, adquirindo a condição de cidade.
Santo Amaro da Purificação, por sua vez, localiza-se no Recôncavo Baiano, a 85 quilômetros da capital e possui cerca de 53 mil habitantes. O primeiro núcleo de povoamento data de 1557 e a região foi importante produtora de cana-de-açúcar, fumo e mandioca, surgindo engenhos, casas de farinha e pequenos beneficiamentos de fumo. O nome Santo Amaro é devido aos monges beneditinos aos quais foram doadas grandes áreas, e em uma delas se erigiu uma Capela, sob a invocação de Santo Amaro, ficando esse Santo como padroeiro local. Com a criação da freguesia de Nossa Senhora da Purificação, a localidade passou a se chamar Santo Amaro da Purificação. Foi elevada à categoria de vila em 5 de janeiro de 1727 e em 13 de março de 1837 transforma-se em cidade, com o nome oficial de Leal Cidade de Santo Amaro.
Estas duas cidades se assemelham por sua condição interiorana, mas representam ambiências muito distintas de uma mesma Bahia, uma localizada no sertão e outra na região do Recôncavo baiano. Elas são ao mesmo tempo ponto de partida e de chegada na obra de Antônio Torres e Caetano Veloso, mostrando suas influências, mesmo que latentes, no decorrer das produções destes artistas. Descrevendo suas paisagens e personagens, romancista e músico reescrevem e concretizam, pelo lirismo da canção e da literatura, suas terras.

“Essa é a terra que me pariu”: a descrição do espaço e personagens que o compõem.

A representação da cidade dentro da literatura e das outras expressões artísticas acontece primeiramente na forma de caracterização do espaço. Acontece através da descrição literal – ou imagética, como no caso do cinema ou das artes plásticas – das paisagens naturais e do próprio espaço urbano. Este fenômeno ocorre da mesma maneira, guardadas as proporções, tanto na representação das pequenas cidades quanto de grandes metrópoles.
Outra forma de caracterização da cidade é a descrição de seus personagens, pois é através da utilização de figuras arquetípicas do local que se inscreve também a descrição do modo de viver característico e completa-se o sentido de ambiência, ambicionado pela obra. Ambos os recursos são encontrados tanto nos livros de Antônio Torres, como nas canções de Caetano Veloso sobre Santo Amaro.
Na canção “Trilhos Urbanos” temos a descrição de uma sucessão de imagens, em semelhança a um passeio pelas ruas de Santo Amaro em um dos bondes puxados a burro, que serviram a cidade até a década de sessenta, como explica o próprio músico:

Os saveiros atracavam junto da ponte sobre o rio Subaé, no local em que atualmente se chega quando se vem pela estrada de rodagem, onde também fica a estação de trem. Mais para baixo passava o bonde, que era puxado a burro. Por isso a canção fala de Trilhos Urbanos, porque esse era o nome da companhia. Esses bondes eu usei até os 19 anos, mais ou menos. Noutras cidades maiores, aquilo era uma coisa do século XIX, mas permaneceu em Santo Amaro, pois eram lucrativos e atendiam bem à população, não foram eletrificados e se mantiveram até meados dos anos 60.”

Nesta canção encontramos um retrato de Santo Amaro, uma descrição do espaço geográfico explicitada nos versos, aludindo claramente a um passeio pelas ruas da cidade : “Rua da Matriz ao Conde / No trole ou no bonde/ Tudo é bom de ver / São Popó do Maculelê / Mas aquela curva aberta / Aquela coisa certa / Não dá pra entender / O Apolo e o Rio Subaé”.
Esta referência altamente imagética da cidade acontece de uma forma quase “fotográfica” durante a primeira citação de Junco no livro “Essa Terra”:

O Junco: (…) a barra do dia mais bonita do mundo e o pôr-de-sol mais longo do mundo. O cheiro de alecrim e a palavra açucena. E eu, que nunca vi uma açucena. Os cacos: de telha, de vidro. Sons de martelo amolando as enxadas, aboio nas estradas, homens cavando o leite da terra. O cuspe do fumo mascado de minha mãe, a queixa muda do meu pai, as rosas vermelhas e brancas  da minha avó. As rosas do bem-querer:

  1. Hei de te amar até morrer.

Essa é a terra que me pariu.

O geógrafo Milton Santos define o espaço como “um conjunto de formas, contendo cada qual frações da sociedade em movimento”, ou seja, o espaço é constantemente renovado pelas modificações realizadas pela sociedade que sobre ele age. Da mesma forma em que não é possível a existência do espaço sem seus agentes, também é inviável, na construção narrativa, a descrição de uma cidade que não contemple seus habitantes. Paralela à caracterização do espaço está a caracterização das pessoas que o habitam e transformam, sendo isso visível também nas obras analisadas.
Neste caso, a aparição dos personagens que habitam Junco e Santo Amaro acontece de forma profundamente autobiográfica, como explica Caetano Velosocom a afirmação: “Minhas letras são todas autobiográficas. Até as que não são, são”.
Essa relação reflexiva sobre as experiências pessoais e relacionamentos familiares é explicitada em versos como o da canção “Jenipapo Absoluto”: “Onde e quando é jenipapo absoluto? / Meu pai, seu tanino, seu mel / Prensa, esperança, sofrer prazeria / Promessa, poesia, Mabel”. As memórias e experiências pessoais afloram em vários elementos compõem a letra desta canção. Nas palavras do próprio Caetano a letra:

Fala de Santo Amaro, como tantas outras. (…) Essa canção me emociona pelo modo como aparece meu pai: “ Meu pai, seu tanino, seu mel”. A letra também fala de “prensa”, porque meu pai me chamava para ajuda-lo a prensar o jenipapo numa prensa de madeira para fazer o licor. Ele tinha uma cumplicidade comigo numas coisinhas assim. E algumas eram cruciais, como essa, espremer o jenipapo. Outro dado que me emociona é que essa canção fala da minha identificação com meu pai mas declara, em seguida, que “minha mãe é minha voz.

Ao passo que Caetano traz à tona os elementos autobiográficos através da descrição de seus familiares, como suas irmãs Irene, Nicinha, Clara e Mabel, citadas em muitas outras canções, Antônio Torres revela antes de tudo a si mesmo nos protagonistas de seus enredos. Tal como Nelo, personagem principal do romance “Essa Terra”, o escritor também veio de uma família numerosa, teve de deixar sua terra natal com alguns de seus irmãos para fazer o ginásio em uma cidade maior (Alagoinhas, que no romance é representada por Feira de Santana) e, uma vez em São Paulo, freqüentou o bairro de São Miguel Paulista e outros predominantemente habitados por nordestinos. Foi daí que partiu a inspiração para o personagem Nelo, como explica o autor:

Eu nunca me esqueço de quando eu cheguei lá na primeira vez, em São Miguel Paulista, e a primeira pergunta que me fizeram (os conterrâneos) foi: “Você sabe se está chovendo por lá?”. Eu sabia qual era o resultado da minha resposta. Se eu dissesse: “Tá chovendo”,  nego voltava (para o Junco). E é nesta piração de ir e vir que acabei, ao longo do tempo, tendo o insight para criar o personagem Nelo de “Essa Terra”, o que vai, vem, e se mata.

Assim como alguns lugares de Junco são recorrentes em suas obras, como a Ladeira do Cruzeiro ou o Tanque Velho, alguns personagens marcantes na infância do autor estão presentes em suas obras, como a figura do “Mestre Fogueteiro”. Ao retornar a Junco na festa dos 40 anos de emancipação da cidade e em comemoração ao prêmio recebido na França, Antônio Torres afirmou que já não poderia escrever sobre os personagens locais: “Conheci novos e admiráveis personagens. Mas, com toda certeza, daqui pra frente não dá mais para escrever sobre eles. Ficaram reais. Reais demais.”

Essa terra me enxota….

“Muitos pastos e poucos rastos.
Casas fechadas, terras abandonadas. Agora o verdadeiro dono de tudo era o mata-pasto, que crescia desembestado entre as ruas dos cactos de palmas verdes e pendões secos, por falta de braços para a estrovenga. Onde esses braços se encontravam? Dentro do ônibus, em cima dos caminhões. Descendo. Para o sul de Alagoinhas, para o sul de Feira de Santana, para o sul da cidade da Bahia, para o sul de Itabuna e Ilhéus, para o sul de São Paulo – Paraná, para o sul de Marília, para o sul de Londrina, para o sul do Brasil. A sorte estava no sul, para onde todos iam, para onde ele estava indo.”

A sorte está onde a ‘civilização’ está. Este é o pensamento (e a esperança) de quem abandona sua terra, como descrito acima no trecho de “Essa Terra”. A segunda parte do romance descreve duas histórias de êxodo, de pai e filho. Os motivos são distintos, mas tocam-se na medida em que ambos refletem o descontentamento e a impossibilidade de uma melhoria de vida.
Nelo, personagem central, parte para São Paulo por vontade própria e torna-se desde então o símbolo, o exemplo a ser seguido em sua família. Contudo, depois de 20 anos na capital paulista, ele volta para sua terra e se mata, surpreendendo toda a cidade que acreditava em sua riqueza e sucesso pessoal. A trajetória de Nelo simboliza toda uma história do êxodo que marca o sertão brasileiro: a procura por uma vida melhor na grande metrópole que não raro encontra as barreiras da miséria, da violência, do subemprego e do preconceito. A migração representa para o personagem também a perda de suas raízes, condenando-o à condição estrangeira onde quer que estivesse: sua casa nunca seria a grande São Paulo, mas também já não poderia mais ser a pequena Junco.

Eles estão me matando. Devem ser uma dúzia de homens, fardados e armados. Aqui, no meio da rua. Na grande capital.
Dinheiro, dinheiro, dinheiro.
Cresce logo menino, pra você ir pra São Paulo.
Aqui vivi e morri um pouco todos os dias.
No meio da fumaça, no meio do dinheiro.
Não sei se fico ou se volto.
Não sei se estou em São Paulo ou no Junco.

Por sua vez, o pai de Nelo se vê forçado a abandonar Junco, depois de endividar-se com banqueiros que se ofereceram a financiar o cultivo de sisal e ter de vender suas terras. Suas raízes estavam mais fortemente presas à sua cidade, opondo a vontade que motivou seu filho a ir para São Paulo à necessidade que o forçava a ir morar com a mulher e os outros filhos, que estudavam em Feira de Santana. Interessante notarmos como apesar do suicídio de Nelo, o mito e a ilusão se mantêm e são encorajados pelo próprio pai de Totonhim – narrador e irmão do personagem principal. Ao anunciar ao pai que irá para “o sul”, escuta um lacônico: “Você faz bem – disse -Siga o exemplo.”
Mostrando o abandono de sua terra por um outro viés, tanto Antônio Torres quanto Caetano Veloso saíram de suas cidades ainda jovens, quase na mesma época, mas com o propósito de estudarem em Salvador. Ambos eram motivados por sonhos de crescimento pessoal e profissional, que não poderiam ser concretizados nas pequenas cidades de Junco ou Santo Amaro. A cada dia eles “amanheciam mais compridos, para verem as coisas mais curtas” das cercas ou janelas de suas casas interioranas. Porém a temática do “desenraizamento” é uma constante em suas obras, como canta Caetano Veloso na canção “No dia em que eu vim-me embora”, um de seus primeiros sucessos: “E quando eu me vi sozinho/ Vi que não entendia nada/ Nem de pro que eu ia indo / Nem dos sonhos que eu sonhava / Afora isto ia indo, atravessando, seguindo / Nem chorando, nem sorrindo / Sozinho pra Capital.”

Impressões sobre a distância

Podemos perceber nas obras dos artistas analisados duas formas de representação de suas cidades natal: através de um caráter saudosista em relação ao passado e através de um caráter crítico que permeia a descrição atual de Junco e de Santo Amaro.
O fato de ambos terem passado sua infância (e adolescência, no caso de Caetano Veloso) em suas cidades é bastante representativo para a compreensão da primeira forma de abordagem. A cidade natal é largamente associada ao período da infância, da época de boas lembranças e descoberta do mundo, como resume a Caetano Veloso na brilhante expressão adolescidade, na canção “Acrílico”: “Tudo ido e lido e lindo e vindo do vivido / Na minha adolescidade / Idade de pedra e paz”.
Antônio Torres também revela claros sinais de nostalgia ao descrever Junco, seus locais e personagens. Lembremos da primeira descrição de Junco no romance “Essa Terra”, na ênfase dada à menção de pequenos elementos: “O cuspe do fumo mascado de minha mãe, a queixa muda do meu pai, as rosas vermelhas e brancas da minha avó”. Assim como Caetano Veloso, na letra da canção “Reino Antigo” (ver letra em anexo), confirmam o estereótipo da vida no interior.
A importância dada a esses detalhes ressalta ainda mais a diferença entre a cidade pequena e a metrópole. O efeito do tempo e da distância, assim como o convívio com as novas formas de sociabilidade “diluídas na grandicidade” alteram os modos de ver, e conseqüentemente de representar, suas pequenas cidades. Este é um resultado natural de mudanças de perspectiva ocasionadas pela mudança para uma cidade maior. Passe-se a admirar a calma e tranqüilidade que o interior oferece, sem contudo desejar, ou mesmo suportar, a volta à “tristeza de ter paz”, como podemos perceber no trecho da canção “Adeus meu Santo Amaro” (um refrão popular de samba de roda ao qual Caetano Veloso acrescentou uma composição própria):

Adeus meu Santo Amaro
Adeus meu tempo de chorar
E não saber porque chorar
Adeus, minha cidade
Adeus, felicidade
Adeus, tristeza de ter paz
Adeus, não volto nunca mais
Adeus, eu vou me embora.

Paralela a essa descrição podemos notar uma visão bastante crítica em relação à condição atual da cidade, no discurso de Caetano Veloso ao caracterizar Santo Amaro com uma “cidadezinha culturalmente semi-destruída mas resistente e encantada.”

Santo Amaro era uma cidade bonita à primeira vista. Quando eu era menino, a unidade arquitetônica e cultural se apresentava logo a quem chegasse, impondo-se sem deixar dúvidas. Hoje, só um espírito profundo e sensível pode flagrar essa em estado puro por trás das transfigurações (algumas inevitáveis e nem tão maléficas, mas algumas imperdoavelmente inúteis e estúpidas) sofridas por essa Vila de Nossa Senhora da Purificação.

Se esta era a visão do músico há 20 anos atrás, não se alterou muito com o passar do tempo. Ao passo em que reformas e campanhas pela preservação do patrimônio histórico e arquitetônico da cidade eram realizadas, Santo Amaro sofria com a contaminação do Rio Subaé, que atravessa a cidade, pela Mineradora de Chumbo Plumbum. Este também foi o tema de uma das canções de Caetano Veloso, intitulada “Purificar o Subaé”.
Esta reflexão crítica em relação às duas cidades é marcante também em ironias encontradas em adaptações de seus nomes, como “Acrílico Santo Amargo da Putrificação”, na canção “Acrílico” e no verso do poeta sergipano Ivo Mariano, que em visita a Junco o batizou com o novo nome de “Sátira de Antigos Dias”.
O saudosismo em relação ao tempo que já passou pode ser enfatizado e ao mesmo tempo minimizado através da música e da literatura, no resgate e na construção narrativas sobre a cidade.
Mesmo quando a demolição / desconstrução, gerada pela ambiciosa fúria do progresso, determina o apagamento da memória urbana traçada na escrita das pedras e tijolos de suas construções, é possível resgatar essa memória através do livro, lugar de inscrição do passado, frente ao que se vai transformando em ruínas.

Mais que uma mera contraluz

A influência das cidades de Junco e Santo Amaro se estendeu para muito além do início da carreira de dois de seus ilustres filhos. Ao longo dos anos e do sucesso alcançado por Antônio Torres e Caetano Veloso, a presença de suas cidades natal aos poucos deixa de realizar apenas uma função de referência, de forma a marcar suas origens, para tornar-se uma característica constante e significativa em suas obras. Ilustrando o verso da canção “Jenipapo Absoluto”, podemos dizer que os artistas consideram suas cidades e experiências vividas lá como muito mais que “uma mera contraluz que vem do ficou para trás”.
Junco esteve presente não apenas no romance “Essa Terra”, mas também em “Um cão uivando para a lua”, cujo personagem principal, um jornalista vindo de uma cidade do sertão baiano, trazia também traços autobiográficos. Em 1997, Torres decidiu retornar ao tema e aos personagens do consagrado “Essa Terra”. Vinte anos depois, ele volta à pequena Junco no romance “O cachorro e o lobo”, para encontrar uma cidade já transformada pela chegada do progresso.  O autor considera este livro como “apaziguador em relação ao seu passado de retirante”. Junco, mesmo quando não era o cenário de suas histórias, estava presente na construção dos personagens de outros romances, na sensação de deslocamento da terra natal que sempre os acompanhava. Quase dez anos depois, o autor completa a trilogia com “Pelo fundo da agulha” (Record, 2006), também ambientada na pequena cidade.
Da mesma forma Santo Amaro exerce sua influência na vasta obra de Caetano Veloso. Tão marcante quanto a menção feita à sua cidade em diversas letras, é a presença das raízes musicais do Recôncavo Baiano que define a produção musical de Caetano Veloso. Vemos constantemente em sua obra os reflexos desta ligação forte com a cultura local. Como exemplos podemos citar a inserção de cantigas populares e sambas de roda característicos da região do Recôncavo ou a gravação de marchinhas de carnaval e outras canções tradicionais (a exemplo de “Muitos Carnavais”, disco lançado em 1977.) Sobre o Lp “Araçá Azul” (1972) Caetano Veloso afirma que ele traz “muito do clima de Santo Amaro, da minha cidade, muito clima da minha infância.”E mesmo que de forma sutil, Santo Amaro também se encontra presente no cd “Fina Estampa” (1994), uma compilação de canções cantadas em espanhol – os boleros, tangos e canções argentinas, caribenhas ou mexicanas que faziam sucesso durante a infância do cantor em Santo Amaro e que iniciaram sua formação musical.

Conclusão: Tudo ido e lido e lindo e vindo do vivido

A cidade natal é sempre nosso ponto de partida e por isso sempre nos acompanhará, não importa quão distantes sejam nossos caminhos futuros. Esta relação torna-se ainda mais forte quando as relações com o ambiente urbano são próximas e íntimas, o que é característico das cidades de pequeno porte, onde todos se conhecem, se freqüentam, onde a natureza faz parte da descoberta cotidiana e onde a ausência da violência comum aos grandes centros urbanos traz a sensação de liberdade mais presente. A análise das obras destes dois artistas baianos, hoje artistas do mundo, nos mostram que mesmo distantes de suas cidades e vivendo em um espaço e em uma realidade completamente distintas das quais foram criados, os artistas mantém raízes presas a sua terra e expressam uma relação de gratidão e respeito por ela. Ao serem cantadas em versos ou contadas em livros, através dos olhos da saudade ou do desencanto, Santo Amaro e Junco tiveram a oportunidade de marcar seu lugar no mapa do mundo e fazerem-se reais para uma infinidade de ouvintes e leitores em todas as terras.                                                                                                        

Jenipapo absoluto
Caetano Veloso

Como será pois se ardiam fogueiras?
Com olhos de areia quem viu?
Praias, paixões fevereiras
Não dizem o que junhos de fumaça e frio

Onde e quando é jenipapo absoluto?
Meu pai, seu tanino, seu mel
Prensa, esperança, sofrer prazeria
Promessa, poesia, Mabel

Cantar é mais do que lembrar
É mais do que ter tido aquilo então
Mais do que viver, do que sonhar
É ter o coração daquilo

Tudo são trechos que escuto: vêm dela
Pois minha mãe é minha voz
Como será que isso era, este som
Que hoje sim, gera sóis, dói em dós?

“Aquele que considera” a saudade
Uma mera contraluz que vem
Do que deixou pra trás
Não, esse só desfaz o signo
E a “rosa também”

Trilhos urbanos
Caetano Veloso


O melhor o tempo esconde
Longe muito longe
Mas bem dentro aqui
Quando o bonde dava volta ali
No cais de Araújo Pinho
Tamarindeirinho
Nunca me esqueci
Onde o imperador fez xixi

Cana doce, Santo Amaro
Gosto muito raro
Trago em mim por ti
E uma estrela sempre a luzir
Bonde da Trilhos Urbanos
Vão passando os anos
E eu não te perdi
Meu trabalho é te traduzir

Rua da Matriz ao Conde
No trole ou no bonde
Tudo é bom de ver
São Popó do Maculelê
Mas aquela curva aberta
Aquela coisa certa
Não dá pra entender
O Apolo e o Rio Subaé

Pena de pavão de Krishna
Maravilha vixe Maria mãe de Deus
Será que esses olhos são meus?
Cinema transcendental
Trilhos Urbanos
Gal cantando o Balancê
Como eu sei lembrar de você

No dia em que eu vim-me embora
Caetano Veloso
Gilberto Gil


No dia em que eu vim-me embora
Minha mãe chorava em ai
Minha irmã chorava em ui
E eu nem olhava pra trás
No dia que eu vim-me embora
Não teve nada de mais

Mala de couro forrada com pano forte, brim cáqui
Minha avó já quase morta
Minha mãe até a porta
Minha irmã até a rua
E até o porto meu pai
O qual não disse palavra durante todo o caminho
E quando eu me vi sozinho
Vi que não entendia nada
Nem de pro que eu ia indo
Nem dos sonhos que eu sonhava
Senti apenas que a mala de couro que eu carregava
Embora estando forrada
Fedia, cheirava mal

Afora isto ia indo, atravessando, seguindo
Nem chorando, nem sorrindo
Sozinho pra Capital
Nem chorando nem sorrindo
Sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital

Onde Eu Nasci  Passa Um Rio

Caetano Veloso

Composição: Desconhecido
Onde eu nasci passa um rio
Que passa no igual sem fim
Igual, sem fim, minha terra
Passava dentro de mim

Passava como se o tempo
Nada pudesse mudar
Passava como se o rio
Não desaguasse no mar

O rio deságua no mar
Já tanta coisa aprendi
Mas o que é mais meu cantar
É isso que eu canto aqui

Hoje eu sei que o mundo é grande
E o mar de ondas se faz
Mas nasceu junto com o rio
O canto que eu canto mais

O rio só chega no mar
Depois de andar pelo chão
O rio da minha terra
Deságua em meu coração

Reino Antigo/ Adeus, meu Santo Amaro
Caetano Veloso

Meu doce reino antigo
Onde araçás de mel me enchiam de prazer
No alto de galhos verdes perto de folhas tenras
Olhava o tempo e o mundo sentindo a vida passar suave
Tocando de leve como brisa a minha pele
Meu doce reino encantado
Onde sonhos, canções, gargalhadas brincavam dentro de mim
Te lembro sempre assim
Às sombras serenas em tardes quentes e lentas
Com leve cheiro de jasmim
Meu doce reino dourado
Te guardo só pra mim
Teus tesouros segredados
Teus mistérios encantados
Doce reino já passado
Onde certamente fui rainha
E naturalmente …. fui rei
………………………………………………………..
Adeus, meu Santo Amaro
Que eu dessa terra vou me ausentar
Eu vou para Bahia
Eu vou viver, eu vou morar
Eu vou viver, eu vou morar
Adeus meu tempo de chorar
E não saber porque chorar
Adeus, tristeza de ter paz
Adeus, minha cidade
Adeus, felicidade
 

Acrilírico
Caetano Veloso
Rogério Duprat


Olhar colírico
Lirios plásticos do campo e do contracampo
Telástico cinemascope teu sorriso tudo isso
Tudo ido e lido e lindo e vindo do vivido
Na minha adolescidade
Idade de pedra e paz

Teu sorriso quieto no meu canto

Ainda canto o ido o tido o dito
O dado o consumido
O consumado
Ato
Do amor morto motor da saudade

Diluído na grandicidade
Idade de pedra ainda
Canto quieto o que conheço
Quero o que não mereço
O começo
Quero canto de vinda
Divindade do duro totem futuro total
Tal qual quero canto
Por enquanto apenas mino o campo ver-te
Acre e lírico o sorvete
Acrilíco Santo Amargo da Putrificação

Adeus e canto agora
O que eu cantava sem chorar
Adeus, não volto nunca mais
Adeus, eu vou me embora

Bibliografia

BATISTA, José Marcelo Torres. “Cruz e Estrada”. (Monografia de conclusão do curso de Jornalismo – Faculdade de Comunicação da Ufba – 2001.1)

CHAVES, Vânia Pinheiro. “Um novo sertão na literatura brasileira: “Essa Terra”, de Antônio Torres” (posfácio que acompanha a 15a edição do romance “Essa Terra”). Rio de Janeiro, Editora Record, 2001.

FERRAZ, Délio José e SILVA, Maria Auxiliadora da (orgs). Visões Imaginária da cidade da Bahia: diálogos entre a Geografia e a Literatura. Salvador: EDUFBA. 2004. 184 p.

VELOSO, Caetano. Sobre as letras. (Org. Eucanaã Ferraz.). São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

VELOSO, Caetano. Letra Só. (Org. Eucanaã Ferraz.). São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. (Org. Eucanaã Ferraz.). São Paulo, Companhia das Letras, 1997.

REVISTA IARARANA n° 6, de Salvador, BA.

SANTOS, Milton..Metamorfoses do espaço habitado. (p. 26-27) São Paulo, Hucitec, 1994.

TORRES, Antônio. “Essa Terra”. São Paulo, Ática, 1996.

Sites pesquisados

www.antoniotorres.com.br

www.caetanoveloso.com.br

FERRAZ, Délio José e SILVA, Maria Auxiliadora da (orgs). Visões Imaginária da cidade da Bahia: diálogos entre a Geografia e a Literatura. Salvador: EDUFBA. 2004. 184 p.

Ibid.
* Este artigo foi apresentado como trabalho final da disciplina “Cultura e Contemporaneidade”, na Faculdade de Comunicação da UFBA, ministrada pela Profa. Dra. Gisele M. Nussbaumer, no semestre 2005.1.

Letra de Caetano Veloso. Gravação original do disco “Domingo” (1967). Ver letra em anexo.

Disponível no endereço  https://www.antoniotorres.com.br/biografia.htm

TRIGO, Luciano. Antônio Torres: sucesso no exterior é mistério. O Estado de São Paulo.

Dados do censo brasileiro realizado em 2000. (Fonte: IBGE)

Ibdem

Letra e composição de Caetano Veloso. Gravação original do disco “Cinema Transcendental” (1979). Ver letra em anexo.

VELOSO, Caetano. Sobre as letras. (Org. Eucanaã Ferraz.). São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

TORRES, Antônio. “Essa Terra”. São Paulo, Ática, 1996. p. 13-14.

Santos, M. (1994)..Metamorfoses do espaço habitado. (p. 26-27) São Paulo: Hucitec.

VELOSO, Caetano. Sobre as letras. (Org. Eucanaã Ferraz.). São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

Letra e composição de Caetano Veloso. Gravação original do disco “Estrangeiro” (1989). Ver letra em anexo.

VELOSO, Caetano. Sobre as letras. (Org. Eucanaã Ferraz.). São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

  Antônio Torres em entrevista à Revista Iararana n° 6, de Salvador, BA.

TORRES, Jornal do Brasil, 07.09.98, B-1

TORRES, op. cit.pág. 89-90

O romance “Essa Terra” é dividido em quatro partes, respectivamente nomeadas: “Essa terra me chama”; “Essa terra me enxota”; “Essa terra me enlouquece” e “Essa terra me ama”.

TORRES, op. Cit., pág.62-63

Este trecho refere-se a uma bonita passagem do romance “Essa Terra”, que descreve o processo de mudança interna que leva Nelo a sair e depois retornar a Junco:
“Ficou apenas um irmão, (…) um irmão que não guardou o seu velho chapéu de palha, que o pai comprou na feira, para que ele nunca andasse com a cabeça no tempo.
Esse tempo começou com uma enxada no ombro, a caminho da roça.
Era um caminho muito comprido, que ia ficando mais curto, à medida que ia crescendo, para vê-lo mais curto.
Depois foi o caminho da escola, de lá para a cancela. Parecia não acabar mais, até virar uma simples vereda: a cada dia ele amanhecia mais comprido, para ver as coisas mais curtas, embora o sol continuasse muito alto, nascendo no oriente e se pondo no poente, mas nunca era o mesmo sol. Ele nascia e morria para nascer de novo, então não era o mesmo sol.
E este sol ia secando tudo, secando o coração dos homens, secando suas carnes até os ossos, secando-os até sumirem – e lá se vai o tempo, manso e selvagem, monótono como uma praça velha que faz força para não ir abaixo, como se isso não fosse inevitável, como se depois de um dia não viesse outro com seus dentes afiados, para abocanhar um pedaço de nossas vidas, deixando em cada mordida os germes de nossa morte. E essa é a pior das secas. A pior das viagens. (…)

  1. É por isso que não sei se volto ou se fico. Acho que agora tanto faz. Porque o tempo que comeu meu chapéu de palha, está comendo o lugar que deixei em São Paulo. Deu pra você entender, Totonhim?” (pág. 123-124)

Letra e composição de Caetano Veloso. Gravação original do disco “Caetano Veloso” (1967). Ver letra em anexo.

Trecho de crítica escrita por Caetano Veloso ao ensaio fotográfico “Recôncavo – Santo Amaro” de Maria Sampaio. (1985)

Ibid.

Não inserimos esta música no anexo contendo as letras e no cd que acompanha este trabalho por considerarmos seu tema principal bastante pontual em relação ao nosso foco de análise.

BATISTA, José Marcelo Torres. “Cruz e Estrada” (Monografia de conclusão do curso de Jornalismo, Faculdade de Comunicação da Ufba – 2001.1)

FERRAZ, Ibid. 2004. 184 p.

“”Aquele que considera” a saudade / Uma mera contraluz que vem / Do que deixou pra trás / Não, esse só desfaz o signo / E a “rosa também” (Letra e composição de Caetano Veloso. Gravação original do disco “Estrangeiro” (1989). Ver letra em anexo.)

Disponível no endereço: https://www.antoniotorres.com.br/vida&obra.htm

Caetano Veloso em Depoimento à Luiz Tenório de Lima. Disponível no endereço: “www.caetanoveloso.com.br/ sec_discogra_textos”

Análise sobre Essa Terra para o vestibular da UNEB.

Capas de Essa Terra

Artigo original no PasseiWeb

Essa terra, obra de Antônio Torres, primeiramente publicado em 1976, é uma obra quase autobiográfica. Um relato emocionante do impacto da “cidade grande” sobre o retirante, o imigrante nordestino. O próprio autor – nascido na pequena cidade de Junco, interior da Bahia – percorreu os mesmos caminhos dos seus personagens, deixando o Nordeste para procurar a sorte nas metrópoles do Sudeste.

A caracterização sertaneja do Junco não é um mero retorno à temática regional. O autor salienta que o romance Essa Terra está em confronto com o regionalismo considerado como espaço da tradição, problematizando o regionalismo também enquanto tradição estética. O que poderia ser uma volta ao regionalismo tradicionalista, é na verdade um discurso narrativo de desinvenção, de desconstrução de um espaço regional identitário, coloca-se assim em questão o próprio mito de autenticidade regional. Desse modo, o romance rompe com a vertente mítico-nostálgica do regionalismo para retomar e atualizar sua vertente mais crítica.

Desde o início da narrativa de Essa Terra, pode-se verificar como o processo de duplicação da identidade influencia tanto o autor, que também viveu a experiência diaspórica – como já citado, como os personagens criados por ele. Essa Terra poderia perfeitamente ser considerado um romance de autoficção por narrar a precariedade e o desconforto do autor, que coincide, em certo sentido, com o desconforto do personagem submerso na parafernália apresentada pela modernidade da cidade paulistana. Torres traduz de forma instigante as inquietações ligadas aos problemas de natureza identitária, surgidos pela convivência do eu com o estranho outro.

Nesse sentido, o sujeito (autor/personagem) se expõe para o outro em busca de afirmação e de reconhecimento identitário. A maneira como o autor descreve a condição em que surge as primeiras linhas do romance nos fornece as pistas para verificar o quanto a narrativa acaba sendo orientada através da política do reconhecimento.

Se estiver vivo um dia ele aparece, foi o que eu sempre disse”. (TORRES, 1976, p. 7 ) Com a criação dessa frase está iniciada a narrativa do romance Essa Terra.

Essa Terra narra a história de Nelo, um sujeito que trilha o caminho de volta da grande São Paulo (uma cidade devoradora), para o antigo lar, no povoado do Junco, situado no interior da Bahia. Contrariando as expectativas depositadas pela família, a trajetória vivida por Nelo traça o percurso dos fracassos e dos dilemas que lhe acompanharam desde a partida da terra natal à cidade grande, culminando com o suicídio por enforcamento.

Nelo, ao deixar o povoado do Junco leva consigo o sonho de uma vida melhor. A esperança por melhores roupas, maior desempenho linguístico-cultural e de um grande sucesso com as mulheres. Sonhos projetados a partir do contato com os “estrangeiros”, e de um olhar que pretende se reconhecer através da leitura do “outro”.

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Nelo descobriu que queria ir embora no dia em que viu os homens do jipe. Estava com 17 anos. Ele iria passar mais três anos para se despregar do cós das calças de papai. Três anos sonhando todas as noites com a fala e as roupas daqueles bancários ? a fala e a roupa de quem, com toda certeza, dava muita sorte com mulheres. (TORRES, 1976, p. 11)

Já o narrador-personagem Totonhim, na tentativa de avaliar a causa da migração do irmão Nelo, do Junco rumo à cidade de São Paulo, faz ao mesmo tempo, uma retrospectiva da partida como uma espécie de justificativa:

(…) um dia pegou um caminhão e sumiu no mundo para se transformar, como que por encantamento, num homem belo e rico, com seus dentes de ouro, seu terno folgado e diferente de casimira, seus raybans, seu rádio de pilha?faladorzinho como um corno?e um relógio que brilha mais do que a luz do dia. Um monumento, em carne e osso. O exemplo vivo de que a nossa terra também podia gerar grandes homens. (TORRES, 1976, p.14)

O fragmento textual mostra como a projeção de uma vida bem sucedida encontra-se no romance apropriada pela efetivação do poder de aquisição de bens materiais. A narrativa coloca em evidência a relação do sujeito, da sua construção identitária, a partir da realização do consumo desses bens, a exemplo da identificação do próprio indivíduo com “um monumento, em carne e osso”, que seria “reconhecido” e valorizado como grande homem.

A relação dos indivíduos com os bens materiais, com o consumo desses bens, orientam a vida das personagens do romance e justificam suas atividades no decorrer da narrativa. Nesse sentido, a projeção está voltada mais para a noção de identidade (da construção da identidade através do olhar do outro), do que a uma política de reconhecimento que integra a alteridade, ou seja, que possibilite a dialética do mesmo e do outro, o que permitiria entender as razões de cada um e a estrutura dos conflitos e das negociações.

Nelo é descrito como um filho maravilhoso pelo olhar da mãe, a qual lembra-se dos envelopes gordos, que chegavam todo “mês com dinheiro vivo, paulista, rico”. Totonhim, o pai e toda a parentada do Junco também viam em Nelo a personificação de um indivíduo bem sucedido na vida. E a projeção da identidade de Nelo segue na narrativa sendo formada a partir do julgamento do meio exterior.

Enquanto Nelo é visto como aquele que migra para se salvar, como aquele que fugiu das limitações impostas pelo lugarejo interiorano, a experiência da migração vivida pela personagem é narrada mostrando o intenso sentimento de estranhamento da experiência diaspórica enfrentada pelo sujeito, que parte de um ambiente interiorano miserável, mas ainda conservador de certos valores humanos, “para uma São Paulo sem rosto e sem forma”. É esse sentimento de estranheza, experimentado pelo personagem principal do romance Essa Terra, o grande responsável pelo conflito existencial vivido pelo indivíduo. Ao investir num descentramento do sujeito, que não consegue mais se identificar com a cidade grande, muito menos com o ex-familiar espaço nordestino/ interiorano, a narrativa acaba produzindo no personagem a sensação de não pertencimento a lugar algum. Nelo conheceu e viveu no Junco e em São Paulo, mas não se sente pertencente a estes lugares. São Paulo representa ao mesmo tempo o exílio e a perda:

Dinheiro, dinheiro, dinheiro.
Cresce logo, menino, pra você ir para São Paulo.

Aqui vivi e morri um pouco todos os dias.
No meio da fumaça, no meio do dinheiro.
Não sei se fico ou se volto.
Não sei se estou em São Paulo ou no Junco
”. (TORRES,1976, p. 63)

Na experiência vivida por Nelo coexiste o enigma de uma “chegada” sempre adiada, como se fosse uma espécie de pressentimento, uma consciência de que o seu desenraizamento já não lhe permitiria a re-integração à terra natal.

A fragmentação da estrutura do romance igualmente refrata e reflete a identidade fragmentada dos personagens e a relação que eles estabelecem entre eles e a terra: o romance está dividido em quatro partes: “Essa Terra Me Chama”, “Essa Terra Me Enxota”, “Essa Terra Me Enlouquece” e “Essa Terra Me Ama”, cada parte subdividida em capítulos.

O estar “entre-lugares” é também uma expressão viva nas linhas do romance Essa Terra. Os personagens principais vivenciam a relação consigo próprios, com os outros e com a terra de certa forma transculturamente: as relações possuem um movimento de “síntese e simbiose”, “um diálogo (uma harmonia) incômodo” entre a “continuidade e a ruptura”, “a coerência e a fragmentação”. Observe:

— Qualquer pessoa deste lugar pode servir de testemunha. Qualquer pessoa com memória na cabeça e vergonha na cara. Eu vivia dizendo: um dia ele vem. Pois não foi que ele veio?
— O senhor está com razão.
— Ele mudou muito? Espero que ao menos não tenha esquecido o caminho lá de casa. Somos do mesmo sangue.
— Não esqueceu, não, tio — respondi, convencido de que estava fazendo um esclarecimento necessário não apenas a um homem, mas a uma população inteira, para quem a volta do meu irmão parecia ter mais significado do que quando dr. Dantas Júnior veio anunciar que havíamos entrado no mapa do mundo, graças a seu empenho e à sua palavra de deputado federal bem votado.
(ET, p. 10)

No trecho acima, retirado do primeiro capítulo da primeira parte do romance — “Essa Terra Me Chama”, o narrador-personagem Totonhim leva o tio ao encontro do sobrinho Nelo, que retorna após vinte anos. Interessante notar que a volta dele é esperada não só pelo parente, mas também pela população da cidade. Espera compreendida entendendo-se que a figura de Nelo está relacionada a um monumento valorativo da cidade, ou melhor, das próprias pessoas do Junco. Ao comparar a peculiaridade do significado da vinda do irmão com o dia em que a cidade festejou seu ingresso no mapa do mundo, fica claro que a ida de Nelo para São Paulo não foi esquecida, no decorrer dos anos, ela estava ativa na memória dos familiares e da comunidade do lugarejo como retorno triunfal. O dia em que o deputado discursou foi, embora o povo tenha festejado, apagando-se de suas memórias, diz Totonhim, “apesar de nada mais ter acontecido daí por diante” (ET, p. 10). A saída de Nelo do Junco, entretanto, não foi apagada, tornou-se uma expectativa de retorno, um acontecimento sempre em suspenso, à beira de uma efetivação:

Quem não mudou em nada mesmo foi um lugarejo de sopapo, caibro, telha e cal, mas a questão agora é saber se meu irmão ainda lembra de cada parente que deixou nestas brenhas, um a um, ele que, não tendo herdado um único palmo de terra onde cair morto, um dia pegou um caminhão e sumiu no mundo para se transformar, como que por encantamento, num homem belo e rico, com seus dentes de ouro, seu terno folgado e quente de casimira, seus Ray-bans, seu rádio de pilha — faladorzinho como um corno — e um relógio que brilha mais do que a luz do dia. Um monumento, em carne e osso. O exemplo vivo de que a nossa terra também podia gerar grandes homens — e eu, que nem havia nascido quando ele foi embora, ia ver se acordava o grande homem de duas décadas de sono, porque o grande homem parecia ter voltado apenas para dormir. (ET, p.10)

Se a cidade não mudou, a chegada de Nelo é sinal de mudança para os habitantes da cidade. O esperado retorno concretiza-se, fica-se então sabendo que o homem que deixou sua terra natal foi em busca de fortuna e melhores condições de vida. São Paulo transformaria Nelo num monumento vivo, em carne e osso, com dentes de ouro e óculos Ray-bans. Todavia, o irmão, segundo Totonhim, retornara apenas para dormir, pois duas décadas de sono (leia-se: de ausência) não foram suficientes para realizar um desfastio pela cidade. Junco o faz adormecer, o sono de Nelo é mórbido e Totonhim o pressente. O narrador-personagem continua caminhando com o tio em direção à casa onde Nelo se encontra, sentindo que algo de ruim estaria acontecendo.

A alpercata esmaga minha sombra, enquanto avanço num tempo parado e calado, como se não existisse mais vento no mundo. Talvez fosse um agouro. Alguma coisa ruim, muito ruim, podia estar acontecendo.
—Nelo — gritei da calçada. […]
Não ouvi o que ele respondeu, quer dizer, não houve resposta. Não houve e houve. Na roça me falavam de um pássaro mal-assombrado, que vinha perturbar uma moça, toda vez que ela saía ao terreiro, a qualquer hora da noite. Podia ser meu irmão quem acabava de piar no meu ouvido, pelo bico daquele pássaro noturno e invisível, no qual eu nunca acreditei. Atordoado, me apressei e bati na porta e bastou uma única batida para que ela se abrisse — e para que eu fosse o primeiro a ver o pescoço do meu irmão pendurado na corda, no armador da rede.
(ET, p. 12)

O tempo parado e calado, uma voz que não responde, o piar da morte, a porta que revela o monumento pendurado por uma corda, monumento que não transmitirá à posteridade a memória de uma pessoa notável, a volta triunfal era uma fantasia. Nelo retorna para fincar definitivamente suas raízes na cidade onde nasceu — do Junco saiu, ao Junco em pó retorna. A morte de Nelo é o fecho do primeiro capítulo, e o acordar de uma cidade: “E foi assim que um lugar esquecido nos confins do tempo despertou de sua velha preguiça para fazer o sinal-da-cruz” (ET, p.13); diz Totonhim no inicio do segundo capítulo, revelando-nos uma cidade que despertada pela morte evidencia sua vida sem pulso.

Junco, cidade preguiçosa de sopapo, caibro, telha e cal é ainda desnudada nos seus mais íntimos sofrimentos: no segundo capítulo, temos um panorama do lugarejo esquecido pelo tempo e castigado pela natureza do sertão baiano. Terra sofrida que faz sofrer seus filhos.

O Junco: um pássaro vermelho chamado Sofrê, que aprendeu a cantar o Hino Nacional. Uma galinha pintada chamada Sofraco, que aprendeu a esconder os seus ninhos. Um boi de canga, o Sofrido. De canga: entra inverno, sai verão. A barra do dia mais bonita do mundo e o pôr-de-sol mais longo do mundo. O cheiro de alecrim e a palavra açucena. E eu, que nunca vi uma açucena. Os cacos: de telha, de vidro. Sons de martelo amolando as enxadas, aboio nas estradas, homens cavando o leite da terra. O cuspe do fumo mascado da minha mãe, a queixa muda do meu pai, as rosas vermelhas e brancas da minha avó. As rosas do bem-querer:
— Hei de te amar até morrer.
Essa é a terra que me pariu.
— Lampião passou por aqui.
— Não, não passou. Mandou recado, dizendo que vinha, mas não veio.
— Por que Lampião não passou por aqui?
— Ora, ele lá ia ter tempo de passar neste fim de mundo?
(ET, p. 14)

Se a morte do irmão faz Totonhim descrever sua terra, é, na verdade, para ele próprio e para família que se volta. O Junco é o fumo de sua mãe, a queixa de seu pai, as rosas de sua avó… a terra — lembranças, memória que envolve Totonhim. Entretanto, Junco é uma cidade esquecida. Na venda de Pedro Infante, alguém profere amor eterno a terra, outro revela que a cidade é um fim de mundo, nem Lampião teve tempo de visitá-la. A morte de Nelo desperta Junco e atiça Totonhim a caminhar pelos contornos de sua cidade. O narrador-personagem continua ainda a falar sobre o seu lugar natal, fica-se sabendo que Junco é uma terra em que seus filhos não fincam raízes profundas, a pobreza do lugarejo é sinal de abandono:

Moças na janela, olhando para a estrada, parecem concordar: isto aqui é o fim do mundo. Estão sonhando com os rapazes que foram para São Paulo e nunca mais vieram buscá-las. Estão esperando os bancários de Alagoinhas e os homens da Petrobrás. Estão esperando. Tabaréu, não: rapazes da cidade. […]
— Até as casadas enlouqueceram, e arrastaram os seus homens e suas filhas para as cidades — reclama-se na venda de Pedro Infante, o abrigo de todas as queixas. — Muitos maridos vão e voltam, sozinhos, com uma mão adiante e outra atrás. Sina de roceiro é roça.
Vagaroso e solitário, o Junco sobrevive às suas próprias mágoas, com a certeza de quem já conheceu dias piores, e ainda assim continua de pé, para contar como foi.
(ET, p. 14)

A migração é fato comum em Junco. A cidade grande torna-se a panaceia das moléstias de uma terra situada nos confins do mundo. Os habitantes do Junco aventuram-se em busca de melhores condições de vida, entretanto, sua sina de roceiro já está traçada e possui mão de via única — a roça. Vão embora com as mãos vazias e da mesma maneira retornam.

A descrição do Junco, a morte do irmão e o processo migratório narrados nos trechos acima pelo narrador-personagem, não iniciam apenas uma história a ser desenvolvida, mas revelam o olhar de quem ao se encontrar num lugarejo situado nos confins do mundo, vê na realidade que o circunda um espaço de desolação, pobreza e esquecimento. Um lugar em que o tempo parado e sem vento permite que se escute o piar da morte. A cidade não mudou, nos diz Totonhim, uma terra que acorda de sua preguiça para fazer o sinal da cruz e que vagarosa e solitária sobrevive. A personificação do Junco parece ser um correlato das pessoas da própria cidade. Entretanto, há algo mais nas palavras proferidas por Totonhim, São Paulo é o lado inverso do lugarejo. Se verá mais adiante como a relação entre as duas cidades é estabelecida. Apenas observe-se aqui que a descrição do lugar feita pelo narrador-personagem poderia ser vista apenas como mais uma paisagem sertaneja da seca, da miséria que, de certo modo, justificaria a ida dos “rapazes” para São Paulo. O panorama do lugar, contudo, vai além da imagem de uma terra nordestina, mais que uma simples descrição, o olhar de Totonhim sobre sua terra é de crítica e distanciamento.

Se os habitantes insistem em sair dos limites do Junco, este continua sobrevivendo para contar os sofrimentos pelos quais já passou. Fica-se então sabendo por Totonhim que o Junco havia passado, em 1932, pela pior seca que já havia vivenciado, o lugar “esteve para ser trocado do Estado da Bahia para o mapa do inferno” (ET, p.15). Porém, continuou em pé assim como seus habitantes. Em 1933, as primeiras chuvas pareciam anunciar dias melhores, mas a morte parecia não querer deixar a terra: “O que se viu mais tarde foi o dilúvio, a sezão e o impaludismo: desta vez o povo caía e morria tremendo, de frio” (ET, p. 15).

Ao lado da seca e do dilúvio, o narrador-personagem passa então a falar de um cidadão do Junco. É-nos apresentado então Caetano Jabá, que lutou junto com Antônio Conselheiro, o único sobrevivente da guerra pela qual, em vez de uma medalha, deram-lhe um apelido e uma enxada: instrumento de seu sustento. Caetano Jabá profere que no ano dois mil o velho mundo será queimado por uma bola de fogo, restando apenas o “dia do juízo”, ensinando as Sagradas Profecias, ele nos revela um Junco bíblico. Totonhim parece entender o que significaria na realidade esse juízo final:

— E eu sei que esse dia está perto. Ora vejam bem: nossos avós tinham muitos pastos, nossos pais tinham poucos pastos e nós não temos nenhum […] Isso também está nas Sagradas Escrituras. Muitos pastos e poucos rastos. Poucas cabeças, muitos chapéus. Um só rebanho para um só pastor.
[…]
— Qualquer dia o Anticristo aparece. Será o primeiro aviso. Depois o sol vai crescer, vai virar uma bola do tamanho de uma roda de carro de boi e aí — dizia papai, dizia mamãe, dizia todo mundo.
Ninguém disse, porém, se a vinda da Ancar estava nas Sagradas Escrituras. Ancar: o banco que chegou de jipe, num domingo de missa, para emprestar dinheiro a quem tivesse umas poucas braças de terra.
(ET, p. 16-17)

Se a escassez dos pastos estava profetizada nas Sagradas Escrituras, Totonhim indaga porque então a vinda da Ancar não foi prevista. Banco que foi a ruína do pai, acreditando nos bancários, fez o empréstimo e ainda acatou a sugestão deles: plantou sisal. O investimento foi negativo e as dívidas cobradas. O pai perde tudo. Foi nesta época que Nelo, aos dezessete anos, decide ir embora, mas espera mais três anos para efetivar sua decisão de deixar o Junco, três anos “sonhando todas as noites com a fala e as roupas daqueles bancários — a fala e roupa de quem, com toda certeza, dava muita sorte com as mulheres” (ET, p. 18).

Pode-se então dizer que o Junco é, assim, desnudado pelo narrador-personagem. O curioso de seu relato não é o desnudamento em si do lugar, mas o que esse desnudamento afeta e revela de Totonhim e dos outros personagens principais. O distanciamento do olhar de Totonhim é de alguém que vê através da própria narração as deficiências de um lugar esquecido nos confins do mundo. Ora, totonhim salienta que ninguém previu nas Sagradas Escrituras que a Ancar viria, desse modo, o olhar crítico do narrador personagem vai além, repetimos, de uma simples descrição. É preciso, então, observar nas palavras de Totonhim o distanciamento que ele próprio opera na representação do lugar que descreve e a que pertence.

Totonhim, na verdade, firma-se como narrador-personagem ou como o autor prefere utilizar — narrador-protagonista, desde do início do romance, com paralelo valor expressivo. O fato de Totonhim narrar a volta e morte do irmão, de delinear sua cidade, assim como falar dos outros personagens ou destes tomarem a voz narrativa etc., não torna menor, evidentemente, sua expressividade. Além de que, é preciso salientar, o romance apresenta diferentes nuances de narrador.

Vê-se que a migração é um fato comum em Junco. A miséria do lugar abala as raízes de seus habitantes que lançam um olhar para as grandes cidades e enxergam nelas o solo que acreditam ser mais nutritivo para suas necessidades e sonhos. Nelo vai em busca dessa nova terra — São Paulo —, mas lá ele encontrará do mesmo modo um terreno seco e arenoso. A metrópole, a cidade urbana é sempre imaginada como modelo de progresso, desenvolvimento: “[…] gente se amontoando na janela do sargento, para ver a novela das oito, na televisão — esse milagre que só um homem da capital poderia nos ter revelado” (ET, p. 53). O Sul é o arcabouço da modernidade, da tecnologia, do avanço, as metrópoles são atrativas e cobiçadas pela miséria da vida sertaneja que é representada como pobreza, desolação, isolamento. E da cidade grande vem os bancários, os homens da Petrobrás, e o homem da capital traz milagres tecnológicos (a televisão) para o Junco, como não se deixar seduzir? Nelo caiu nas malhas da sedução metropolitana. Entretanto, ele não consegue a vida que desejava e nem se torna um paulista rico. Primeiro neto e primeiro filho, o preferido da mãe:

A mala me fez pensar no correio e nos envelopes gordos de antigamente, que chegava de mês em mês. Dinheiro vivo, paulista, rico. Também me lembrei de mamãe: — Tomara eu tivesse mais um filho igual a ele. Bastava um.
Nelo, Nelo, Nelo.
Um acalanto, uma toada, uma canção.
Nelo, Nelo, Nelo.
Miragens sobre o poente, nosso sol atrás da montanha, sumindo no fim do mundo.
Nelo, Nelo, Nelo.
São Paulo está lá para trás da montanha, siga o exemplo do seu irmão.
Nelo, Nelo, Nelo.
Éramos doze, contando uma irmã que já morreu. Só ele contava.
Nelo, Nelo, Nelo. — Bastava mais um
. (ET, p. 20)

No trecho acima, retirado do terceiro capítulo da primeira parte do romance, Totonhim relata o seu encontro com Nelo, no dia em que este chega ao Junco. A presença da mala do irmão o faz relembrar das cartas que Nelo enviava para a mãe. É interessante notar que os “envelopes gordos” foram recebidos apenas num determinado período, o “antigamente” revela a perda de peso dos envelopes com o passar do tempo. Havia uma ilusão de que o primogênito era um paulista rico, mesmo quando o dinheiro diminui, a ilusão persiste, mas ela é ferida quando Nelo se mata. Ele também é um exemplo a ser seguido, para a mãe, diz Totonhim, apenas o irmão contava. Nelo tinha ido atrás do sol atrás da montanha, São Paulo.

A linguagem da obra chama atenção por sua singularidade. O que envolve Essa Terra de um valor estético-literário. A personificação do lugar que acorda e é vagaroso e solitário, o pássaro Sofrê, a galinha Sofraco, o boi Sofrido — o desnudamento do lugar é envolto numa metaforicidade. São Paulo transforma-se num elemento natural, Nelo em música que acalma, tranquiliza — imagens são criadas. O que poderia ser apenas um simples relato, configura-se numa nova dimensão de sentido.

Nelo vai embora, entretanto, o sol não foi generoso com ele, pois retorna sem riqueza: “— Não se esqueça que eu dei conselho a seu pai, para ele deixar você ir embora — o primeiro visitante vinha cobrar os juros de um empréstimo a longo prazo” (ET, p. 24); Totonhim salienta a cobrança de um conhecido, a ilusão da riqueza de Nelo continua viva na esperança do povo. O primogênito é cercado pelos familiares e conhecidos que desejam ver concretamente o dinheiro da metrópole, o lugarejo recebe Nelo com cobranças que há vinte anos esperam por quitação: “— Paga uma? Quero ver a cor do dinheiro de São Paulo — parentes afoitos correm os olhos em busca da mala” (ET, p. 25); procuram por “lembrancinhas”, não há nada para ninguém. A imagem do monumento vivo começa a apresentar rasuras: “— Ah, Nelo. Tu tá rico como o cão, não é? — Dá para ir vivendo — ele disse —, mas suas palavras não destruíam toda a nossa ilusão” (ET, p. 25). Ilusão ainda em parte mantida, até o momento que a morte do irmão se concretiza. Totonhim então percebe que, na verdade, Nelo não ficara rico, os bilhetes de loteria vencidos encontrados em sua carteira, depois do suicídio, evidenciam a busca da fortuna pela sorte.

São Paulo não foi realmente generoso com Nelo, na cidade grande ele também encontrou terreno sertanejo para seus objetivos, uma vida melhor não conseguiu vivenciar. A sua ida a São Paulo significava também o seu oposto — a volta, imaginada como retorno triunfal, libertador da pobreza. Todavia, seu retorno não foi redentor, mas conflituoso. Ao chegar em Junco, Nelo vivencia uma experiência transcultural: ele parece estar ao mesmo tempo em Junco e em São Paulo.

No quinto capítulo de — “Essa Terra Me Chama”, o narrador-personagem Totonhim relata o momento em que ele e o irmão caminham juntos em direção à casa onde haviam nascido. Nelo, Totonhim salienta, estava bêbado. Em determinado momento da caminhada, Nelo quer ir à casa da sua mulher, pede que o irmão mude de rumo e o leve até ela. Totonhim admira-se, pois não sabia que o irmão era casado. Explica que não sabe onde fica, mas Nelo insiste: “— Deve ser um Itaquera. Ou no Itaim. — Onde diabo fica isso? — Perto de São Miguel Paulista” (ET, p. 35). Nelo pensa estar em São Paulo. O narrador-personagem descobre ainda que o irmão tem dois filhos, Nelo diz estar com saudades deles, pois não os vê faz mais de um ano. Totonhim responde que ele só está ali há três semanas, não sabe que a mulher havia deixado o irmão por um conterrâneo e levado consigo os filhos. O narrador-personagem tenta situá-lo: “— Nós estamos no Junco, homem. Quantas vezes na vida você passou por essa estrada? Lembra?” (ET, p. 35). Nelo então recorda das vezes que passava por aquele caminho com uma lata de leite na cabeça e os sapatos no pescoço. Mas, em seguida, pede novamente ao irmão que o leve até a mulher. Voltar ao lugar onde nasceu, às ruínas da casa natalícia, o remete à ruína da casa paulista: a perda da mulher e dos filhos. Nos dois lugares fracassou.

Ora, Nelo está em Junco, porém pensa estar em São Paulo. Poderíamos pensar que a sua confusão se deve ao fato de Nelo estar bêbado. Entretanto, num determinado momento ele recorda do caminho que percorre. Na verdade, os dois lugares passam a ser vivenciados de forma transcultural. A destruição de uma casa evoca a ruína da outra: há um “diálogo (uma harmonia) incômodo” entre a casa natalícia e a casa paulista, entre sentimentos de perda e de encontro. Os dois lugares, dessa forma, parecem semelhantes, embora sejam diferentes.

A caminhada dos irmãos continua. Nelo pede a Totonhim para se esconderem numa moita, pois estava chovendo e a chuva era verde. Totonhim responde dizendo que, na verdade, estava fazendo um sol muito forte. Nelo insiste e diz que chove verde em seus olhos. Totonhim então olha entre o olho e a lente verde dos óculos do irmão, fala que ele tinha razão, mas que era uma chuva fininha. Chuva no sertão, em terra seca, é sinal de esperança, de colheita, de matar a sede. Entretanto, a chuva é escassa, fininha, não é o bastante para acarretar uma mudança. Totonhim, então, aponta a casa. Nelo pára, dá alguns passos à frente para que o irmão não o visse limpando os óculos e diz:

— Você está certo Totonhim. Não teve chuva nenhuma.
Ele agora contemplava a casa e os pastos como se estivesse diante do túmulo de alguém que tivesse amado muito — e o efeito do que estava vendo devia ser muito forte, porque já não parecia tão bêbado como antes.
— Vamos voltar?
(ET, p. 38)

Nelo não quer ir mais adiante e volta, como salienta o narrador-personagem, “calado, fechado, trancado”. A sobriedade repentina de Nelo é a consciência de seu fracasso: o túmulo — a casa, é ele próprio e a família que não conseguiu ajudar. A chuva verde não é suficiente para reverter a situação.

Junco e São Paulo estão adornados na memória de Nelo e ligados entre si pela desilusão, pelo fracasso e sofrimento. As duas cidades tornam-se uma terceira: de configuração sertaneja-metropolitana:

Eles me agarraram pelas orelhas e pelo pescoço e bateram a minha cabeça no meio-fio da calçada. Berrei. Que meu berro enchesse a rua deserta, subisse pelas paredes dos edifícios […], rachassem as nuvens pesadas e negras da cidade de São Paulo e fosse infernizar o sono de Deus: — Socorro. Estão me matando.
Uma luz se acendeu ao meu terceiro grito e um homem chegou à janela. Ficou olhando. Eles continuaram batendo minha cabeça no meio-fio. A luz entrou no meu olho, dura e penetrante, como a dor. […]. Foi nesse momento que a mão de papai apareceu, me oferecendo um chapéu. — Cubra a cabeça. Assim dói menos.Tentei esticar o braço mas, quando a minha mão já estava quase agarrando o chapéu levei nova pancada.
— Você me denunciou, Totonhim. Olhe o resultado. Fuxiqueiro de merda.
[…]
Papai desapareceu sob as águas. O chapéu boiava na correnteza.
Às margens plácidas, águas turvas.
Tietetânicas.
[…]
Eles estão mijando na minha cara e eu estou tomando banho no riacho lá de casa, as águas do riacho lá de casa vão para o rio de Inhambupe que vai para o rio Tietê, seguro um tronco de mulungu, para não me afogar, bato com as pernas na água, devagar, sem pressa, para não me afogar, o tronco escorrega e escapole, desço ao fundo, enfio a cara na lama, volto à tona, estou me afogando: — socorro
.(ET, p. 55-60)

Confundido com um ladrão, Nelo sofre uma surra da polícia de São Paulo. Neste décimo capítulo, ainda da primeira parte — “Essa Terra Me Ama”, é o próprio Nelo que passa a narrar o evento. O capítulo já inicia com a descrição da sova, mas é interessante observar que a rememoração do fato se faz provavelmente em Junco, pois Nelo não sabia da existência de Totonhim até voltar ao lugarejo onde nasceu. Como então acusá-lo pelo mal que estava sofrendo? Subjetivamente Nelo interliga pessoas a fatos de espaço–tempo diferentes. As duas cidades e a família passam a co-existir nas suas lembranças de forma simbiótica. A confusão de Nelo denuncia o estado de quem viveu a experiência de estar “entre-lugares”, de vivenciar o contanto intercultural. A confusão entre as duas cidades é a fragmentação da sua própria identidade.

Durante a agressão Nelo vê o pai tentando dar a ele um chapéu, que representa a sanidade. O pai já havia ensinado que o chapéu fora inventado “nos tempos de Deus Nosso Senhor” (ET, p. 122), para que o homem não andasse com a cabeça no tempo, já que assim perderia o juízo. O pai, no passado, havia lhe dado um chapéu que Nelo esquecera ao sair de casa. E naquele momento tentava novamente dar outro, mas não para salvá-lo de perder o juízo, pois já era tarde. O tempo em São Paulo andava perdido no juízo de Nelo.

O pai também ensinou Nelo a nadar utilizando um tronco de mulungu, que nas águas do rio Tietê reaparece como ponto de apoio, de salvação. O riacho onde aprendera a nadar em Junco é o mesmo que deságua nas margens plácidas, turvas, “tietetânicas” do rio em São Paulo. Todavia, de suas margens não se escuta “o brado retumbante” de um “povo heróico”, e sim o grito de um homem fracassado e sendo torturado ao ser confundido com um ladrão.

A surra de Nelo não é apenas uma tortura física, mas também de conflito psicológico. O momento da agressão é lembrança confusa da terra natal:

O mijo corre quente e fedido, é a chuva que Deus mandou na hora certa, viram como foi bom a gente plantar no dia de São José? Ajudei papai a plantar o feijão e o milho, eu, mamãe, as meninas e os trabalhadores, e todo dia eu acordava mais cedo, para ver se a plantação nascia […]
— Aonde você escondeu o dinheiro, ladrão?
Não, não, não.
Papai, tomara que tudo melhore, eu penso nisso o tempo todo, tomara que tudo melhore.
Nossos pastos já foram verdes, eu sei. Já não temos mais pastos.
Preciso mandar um dinheiro para o senhor comprar de novo a roça e a casa que o senhor vendeu, tomara que tudo melhore.
Faço fé na loteria, toda semana. Jogo, perco, jogo, perco, nunca acerto.
Trabalho duro, tento me regenerar, até parei de roubar, digo, parei de beber.
[…]
Zé está me matando. Eles estão me matando. Devem ser uma dúzia de homens, fardados e armados. Aqui no meio da rua. Na grande capital.
Dinheiro, dinheiro, dinheiro.
Cresce logo, menino, pra você ir para são Paulo.
Aqui vivi e morri um pouco todos os dias.
No meio da fumaça, no meio do dinheiro.
Não sei se fico ou se volto.
Não sei se estou em São Paulo ou no Junco.
(ET, p. 61-62)

Nelo recorda-se da família, do Junco. Denuncia seu fracasso, a loteria seria sua salvação e de seus familiares. Confunde-se, por um momento, parecia acreditar que de fato era um ladrão, e assim fica-se sabendo do seu problema com a bebida. Zé do Pistom é o seu agressor, conterrâneo a quem ajudou conseguir um emprego em São Paulo, e que, como gratidão, roubou sua mulher e seus filhos. Nelo relembra em suas palavras a vontade da mãe, realizou seu desejo e agora confuso não sabe o que fazer: vai embora, retorna, é São Paulo ou Junco?

No quarto capítulo da terceira parte do romance — “Essa Terra Me Enlouquece”, Nelo expressa a mesma dúvida. Neste pequeno capítulo, a casa do avô, onde fica hospedado quando volta ao Junco, o faz refletir sobre o passado numa noite de insônia. O avô retorna para reclamar de sua fraqueza que antes já havia delatado: “— o pai vendeu a roça, para seguir a cabeça da mulher. O filho é um fraco igual ao pai” (ET, p. 121). Lembra também do conselho do pai: usar o chapéu, pois quem anda com a cabeça no tempo perde o juízo. Sonhava quase todas as noites com o pai lhe dizendo o mesmo conselho, mas Nelo foi embora e esqueceu de levar o seu chapéu. Ele passa então a achar que passara a vida com a cabeça no tempo porque esquecera de levá-lo. E a saudade invade Nelo, a mulher encena em seus desejos, ele a deseja de volta junto com os filhos: “Uma confusão de desejos, arrependimentos e dúvidas. Estragado pelos anos, esbagaçado pelo álcool, já não via por onde recomeçar” (ET, p. 121); o narrador-personagem Totonhim resume o estado do irmão. Noite de insônia reveladora, Nelo continua pensando sobre sua terra, terra que diz ser selvagem, onde tudo já está condenado desde do começo. Terra de sol e chuva selvagens, sol que queima o juízo e chuva que arranca as cercas “deixando apenas o arame farpado, para que os homens tenham de novo todo o trabalho de fazer outra cerca, no mesmo arame farpado. E mal acabam de fazer a cerca têm de arrancar o mata-pasto, desde a raiz. A erva daninha que nasceu com a chuva, que eles tanto pediram a Deus” (ET, p. 124). Junco está condenado ao ciclo da erva daninha, entretanto, ela não é aqui apenas a representação da miséria de um lugar, mas é também a erva daninha da lembrança que invade Nelo arrancando-lhe também a cerca de sua estabilidade subjetiva. A insônia é o balanço de sua vida.

Junco e São Paulo possuem a mesma medida de conflito, o tempo devorou o lugar de Nelo em ambas as cidades, fincar raízes parece ser agora utopia. Na verdade, as raízes de Nelo estavam no ar, no terceiro espaço entre São Paulo e Junco: “— É por isso que não sei se volto ou se fico. Acho que tanto faz. Porque o tempo que comeu o meu chapéu de palha, agora está comendo o lugar que deixei em São Paulo” (ET, p. 124). O “parentesco” entre Junco e São Paulo não é uma identificação arbitrária. A semelhança entre os dois lugares coloca em suspenso suas diferenças: entre uma cidade considerada como o cerne do progresso e a outra como atraso, uma ponte interseciona a metrópole e o sertão: a pobreza, a desilusão, o sofrimento, a falta de oportunidades.

Em ambas as partes “Essa Terra Me chama” e “Essa Terra Me enlouquece”, a dúvida de Nelo é expressa da mesma forma, porém gerando uma ambiguidade: não sabe se fica (em Junco, São Paulo?) ou vai embora (de Junco, São Paulo?). Essa terra que chama e enlouquece é Junco, é São Paulo. O demonstrativo “Essa”, neste caso, mais do que indicar um distanciamento de Nelo em relação as duas terras, marca a ambiguidade de referência.

Citou-se aqui que a confusão de Nelo no que concerne as duas cidades é a fragmentação da sua própria identidade. Ora, se o contato intercultural propicia viver processos de identificação num sentido transcultural, Nelo não foge ao padrão. Ele retorna com “costumes de outras terras”, como observa Totonhim, ao vê-lo pela primeira vez: “Chego e interrompo a velha e sincera conversa do hoteleiro. Também foi sincero o sorriso do recém-chegado, ao apertar a minha mão. — Muito prazer — ele diz. Costumes de outras terras, eu penso, balançando a cabeça de um lado para o outro abismado” (ET, p 19). No mesmo capítulo em que estão indo juntos rever a casa onde haviam nascido, o narrador-personagem ainda ressalta a fala paulista do irmão: “— Totonhim… você não é o Totonhim? Maneiras paulistas: o fulano, a fulana. Tive vontade de lhe dizer que povo daqui não gosta de quem fala assim. Na frente, louva-se o sotaque novo do cidadão. Por trás —“ (ET, p. 34). É evidente que morando vinte anos em São Paulo, Nelo teve que se adaptar, que renegociar seus valores e costumes. Em suma, o processo de transculturação se fez presente em sua vida. Contudo, tal processo, como viu-se, não envolve um movimento linear, tranquilo; mas um “diálogo (uma harmonia) incômodo” entre “fragmentação e coerência”, “construção e desconstrução”, “síntese e simbiose”. Isto é, torna evidente as semelhanças e diferenças de forma a problematizar as relações entre forças antagônicas que se entrelaçam e ao mesmo tempo são justapostas e contestadas, sem que de fato haja uma hierarquização absoluta.

Desenvolvimento e subdesenvolvimento são os dois lados do mesmo Brasil, o sul não é o redentor e o nordeste a simples vítima de uma natureza devastadora. Nelo é a representação dessas duas faces, ele evidencia a contradição de um espaço nacional pensado em termos dicotômicos, como se a “falta de sorte” que viveu não estivesse relacionada aos aspectos sócio-econômicos mais amplos do país. Todavia, as faces que ele revela não estão apenas ligadas a uma questão material, a dúvida de “ir ou ficar” revela uma identidade fragmentada. Não estar em Junco ou em São Paulo significa que não tornou-se nem paulista, nem baiano: o que se tornou então? E aqui amplia-se a questão para além de uma problemática de pertencimento: tornou-se um baiano-paulista pobre? Tornou-se uma desilusão? O suicídio de Nelo é indício de confusão subjetiva, desilusão de retorno triunfal, não alcançado, o desconforto de saber que fracassou, é a demonstração da trajetória de alguém que viveu “entre-lugares”.

A migração da família tinha se tornado fato corriqueiro, Nelo foi o primeiro, os outros seguiram seu exemplo, embora não tenham ido como ele além das fronteiras do estado. Nelo continua a fazer perguntas sobre a família, indaga se o pai não ajuda em nada e Totonhim silenciosamente pensa dizer-lhe “— Me fale de coisas boas. Chegue à frente e me fale de você. Conte tudo de bom, todas as belas aventuras que você já viveu: palha e lenha dos meus sonhos. Mas ele insistia e perguntava e remoía, enquanto estalava os dedos e se agitava, me agitando. — E os outros? Também não dão nada?” (ET, p. 23). Totonhim não queria falar sobre a família, sobre o passado. Ele estava interessado na história de Nelo, queria mais lenha e palha para seus sonhos, agora com a presença do irmão estes poderiam ser concretos. Passa-se a observar, então, que Nelo seria para Totonhim a personificação de São Paulo, ou melhor, do diferente, da novidade. Mas Nelo insiste nas perguntas, Totonhim só tem desilusão para contar. Totonhim pensa em dizer que de fato os irmãos não dão nada, eles mal conseguem ter o que comer, e ele próprio abandonara a casa em Feira de Santana, pois não aguentava mais a vida que levava, a sua insignificância perante a mãe:
Entre nós só uma estrela brilhou. Está tudo gravado na minha memória. Ouça:

— Ninguém faz nada por mim. Ninguém me ajuda em nada.
Reconhece esta voz? Continue ouvindo. Continue:
— Tenho doze filhos e me sinto tão sozinha. Se não fosse Nelo.
Espere mais um pouco:
— Não vou passar sua roupa. Não sou sua empregada.
E agora atenção:
— Os incomodados que se retirem.
Eis porque me retirei. Quer um conselho? Vá lá. Viva uns tempos com eles. Assim você não precisará de minhas explicações. Tente saber o que é passar a vida dentro de um saco de gatos, com um rombo no fundo. Os gatos entram, se arranham e vão descendo pelo fundo do saco. Comi os farelos enquanto pude suportar, agora…
(ET, p. 24)

Totonhim pensa em dizer ao irmão tudo o que havia registrado em sua memória. Para a mãe, só Nelo importava. A casa, porém, se enche de gente atrás do monumento vivo, e as palavras de Totonhim ficam mais uma vez reservadas na memória. A fala dele ainda revela sua relação conflituosa com a família, enquanto o irmão estava longe e sendo venerado pelos parentes, ele suportou comer os poucos farelos de vida que lhe ofereciam. Nelo estava longe e nem sabia da atual situação da família, perdido da manada, a realidade das respostas de Totonhim o incomodava. Entretanto, Totonhim estava perto da manada, vivenciou os problemas da família, cresceu escutando a mãe venerando o irmão. A presença e morte de Nelo, portanto, significam a rememoração e reflexão de Totonhim sobre sua história, família e Junco.

Através do narrador-personagem Totonhim observa-se Junco como figura de crise, instabilidade, de pobreza; por ele, vê-se também uma família em crise, instável, pobre. Seriam Junco e família a mesma coisa? Parece que sim, ambas sofrem pela seca, em ambas a migração se faz presente. Não há como separar bem o sofrimento da terra do sofrimento das pessoas. Totonhim é o narrador-personagem que evidencia uma distância crítica em relação aos problemas do Junco, que se posiciona de modo reflexivo em relação à terra e aos outros.

Totonhim projeta-se em Nelo, palha e lenha dos seus sonhos, o irmão é também o entendimento de si mesmo. Ora, Totonhim era abafado pela imagem modelo do irmão, a mãe só conseguia enxergar Nelo, embora este estivesse longe. Quando o irmão morre, entre o rádio, o relógio e os óculos do irmão, Totonhim prefere ficar com o último. A escolha suscita algumas questões: com os óculos ele poderia então ver as coisas como Nelo, ou ser como ele? Vendo o mundo como Nelo, a mãe passaria a enxergá-lo? A escolha talvez tenha sido inconsciente, mas ela revela uma crise identitária.

Em relação ao pai e à mãe, ambos representam de um certo modo o próprio Junco. A mãe é a terra que faz os filhos irem embora de casa; o pai é a terra no sentido de territorialidade, ele é o único a querer ficar em seu espaço e foi o único a não concordar que Nelo fosse para São Paulo. A mãe queria que os filhos estudassem, via na cidade a resolução de seus problemas, não desejava que o passado dela se repetisse com as filhas, então deixa a roça e vai para Feira de Santana:

— Meu pai me tirou da escola quando escrevi o primeiro bilhete da minha vida para um namorado. Não posso deixar que aconteça a mesma coisa com as minhas filhas. De fato não deixou. Justiça se lhe faça. Acabamos todos nos arranchando numa casinha pobre de uma rua pobre de um bairro pobre, sem luz, sem água, sem esgoto, sem banheiro. Mamãe alugou a casa fiando-se no dinheiro que mandavas todo mês e, quando atrasavas a remessa, era um deus-nos-acuda. Vivíamos permanentemente debaixo do medo de sermos postos da rua. Ela passou a se desdobrar em trinta numa máquina de costura, enquanto esperava o feijão e a farinha que o velho mandava da roça. De vez em quando ele vinha, para reclamar de tudo (ET, p. 156).

Entretanto, a ida da família para a cidade de Feira de Santana não trouxe grandes transformações, pelo contrário, a pobreza era ainda mais significativa. A própria roça abandonada era ainda uma ajuda. Nesse trecho da última parte do romance — “Essa Terra Me Ama”, Totonhim leva a mãe para o hospital, que após ver o filho morto, passa por um surto de loucura, no caminho, ela fala de fatos passados, a loucura é a rememoração de sua vida.

No romance, a mãe é uma figura importante da história. Há na relação que ela estabelece com os filhos e o marido questões que perpassam pelo papel da mulher na família, na sociedade. Verificar, por exemplo, a posição que ela exerce no romance, talvez revele sua função como mãe, esposa e mulher numa outra ordem representativa.

O pai havia relutado, por um tempo, em sair do seu lugar. Até resolver ir também para Feira de Santana, onde sua mulher e filhos já estavam. Ele culpava a mulher por sua ruína. Se ela não tivesse a ideia fixa de ir para cidade, os filhos teriam ficado e ele não teria tido a necessidade de contratar trabalhadores, nem fazer o empréstimo no banco. Para ele, escola não enchia barriga de ninguém, mal sabia assinar seu nome, pois sua “Escrita era outra e essa ele tinha orgulho de fazer bem: riscos amarronzados sobre a terra arada, a terra bonita e macia, generosa o ano inteiro, desde que Deus mandasse chuva o ano inteiro. A melhor caneta do mundo é o cabo da enxada” (ET, p. 68). A melhor caneta do mundo, entretanto, havia produzido uma dívida no banco. O pai então decide vender tudo para saldar a dívida e ir embora. Antes de ir para Feira de Santana, pensa, por um momento, em ir para São Paulo ou Paraná, acha que em um desses lugares encontraria uma roça para cuidar, como se fosse o dono. A ideia do pai foi muitas vezes recebida por Nelo que, também repetidas vezes, não respondeu. Até o dia em que a mãe recebeu uma carta em que o primogênito avisa que a metrópole não era lugar para o velho pai, ele não ia se acostumar com a cidade, e que, portanto, desistisse da ideia. O pai compreende a atitude do filho como vergonha, Nelo não o queria “no meio das suas civilidades. Eu sou da roça e não tenho as novidades dele. É por isso” (ET, p. 69). Em suma, o pai é o sentimento de territorialidade, de pertencimento, de fincar raízes, de continuidade do passado; a mãe de desterritorialidade, de dispersão, de soltar as raízes, de ruptura com o passado; ambos são Junco, ambos tornam ambígua a terra.

Há no romance Essa Terra uma visão problematizadora e crítica não só da vida, do lugar — das condições da região, como também das relações que os personagens estabelecem entre si e com a terra, relações que estão ligadas a um contexto sócio-econômico mais amplo. Por isso, o romance atualiza a vertente critica e rompe com a vertente mítico-nostálgica, uma vez que o espaço regional em Essa Terra é dilacerado no que ele tem de “crise”, é colocada à vista a “espoliação econômica” que se escondia num discurso que buscava num espaço nordestino a expressão de uma identidade nacional. Além de que o romance não possui, como veremos adiante, um “caráter pitoresco e folclorizante”. A abordagem da temática sertaneja em Essa Terra se afasta seja de uma metonímica glorificação do País, característica do Romantismo, seja de uma crítica externa de raízes sulinas ou litorâneas e de bases positivistas e deterministas, que, expressa sobretudo nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras do século XX, atribuía a miséria da região às condições mesológicas e/ou à formação étnica da sua população.

De fato, no romance a miséria da região não advém de “condições mesológicas” ou da “formação étnica” dos habitantes do Junco, nem os elementos que representam um espaço nordestino, e que estão presentes no regionalismo tradicional (a seca, a religiosidade etc.), não estão em primeiro plano no romance, mas são secundários e circunstanciais: o foco de interesse, agora, é o processo político e sua repercussão na atividade e na consciência do indivíduo; é o processo econômico e sua interferência na vida familiar e comunitária. O processo migratório que ocorre em Junco, a ruína do pai, a ida de Nelo para São Paulo, o desejo e a luta da mãe para que os filhos estudassem estão, de fato, relacionados e abarcados por um processo econômico (que passa a ter outras configurações, é o que veremos também no próximo tópico) que afeta suas vidas e relações.

A relação entre Totonhim e a mãe parece refratar bem essa ambiguidade do processo de identificação. Ambos têm entre si a “expressão de um laço emocional”, todavia, um laço emocional expresso pelo afastamento. Ao contrário da relação de aproximação entre a mãe e Nelo, havia entre os dois um certo tipo de identificação, a mãe uma vez disse a Totonhim: “Eu queria ser homem para poder mandar no meu destino. Ir para onde bem entendesse, sem ter que dar satisfações a ninguém” (ET, p. 152). A partir desta fala, se pode observar que Nelo, na verdade, é ela própria, isto é, ele representa aquilo que ela desejava para si, pois o primogênito foi embora para onde queria, tornou-se dono de seu destino. Entendemos então a predileção da mãe pelo filho mais velho. Totonhim, de modo diferente, aos olhos da mãe é a imagem inversa de Nelo, Totonhim é o “ficar”, é a terra de vida difícil, ele representa o que a mãe não deseja. Há, entretanto, uma identificação da mãe com Totonhim, visto que ele torna visível aquilo que a mãe não queria para ela. É possível então compreender porque a relação de Totonhim com a mãe é de afastamento, era como se ele não existisse, apenas Nelo importava. Diz-se, desse modo, que Totonhim era invisível perante a mãe, sua invisibilidade, porém, será paradoxalmente sua reapresentação diante dela.

Quem sou eu?” (ET, p. 105); assim inicia o primeiro capítulo da terceira parte — “Essa Terra Me Enlouquece”. A mãe que não suportando ver o filho Nelo morto, passa a vivenciar um surto de loucura, a sua pergunta é direcionada a Totonhim e feita corpo a corpo:

Uma coisa eu acabava de descobrir: éramos do mesmo tamanho. Eu e ela, ali, corpo a corpo. Como dois namorados que se reencontram depois de uma longa ausência e se apertam, se apalpam, antes de um longo e apaixonado abraço. Pela primeira vez na vida tive vontade de abraçá-la. Só não o fiz porque não pude. Ela estava apertando o meu pescoço com toda a força que ainda restava em suas duas calejadas e ásperas mãos […]
— Você se lembra de mim? Quem sou eu?
Ia dizendo: — A senhora é a filha mais velha daquele homem que está ali, pregado na parede. E a mãe daquele outro que está ali, estirado no chão dormindo pra sempre. Eu queria falar mas não conseguia. Enquanto el

Uma Leitura no calor da hora

 Celso Japiassú, poeta e publicitário – Rio, 21/06/76.

Capas de Essa Terra

Velho Torres:

Tracei Essa Terra neste prolongado fim de semana que passou. Ou melhor, fui envolvido pelo livro a partir do primeiro parágrafo. Os dois ou três capítulos que eu já conhecia antes de publicado o livro não me tinham dado a idéia do romance inteiro, como vi agora nesta primeira leitura. Pretendo outras leituras, porque a riqueza do livro não será nunca apreendida integralmente lendo-se uma vez só. E esta é uma carecterística dos grandes livros.

A densidade impressiona e as personagens estão construídas com uma precisão maravilhosa. Nelo e o pai principalmente. Totonhim, como narrador, vai crescendo no desenrolar da história até chegar na sua estatura, em que se misturam o arauto e o vivente. Cada uma das personagens me pareceu ser um universo dramático à parte, independente das outras. Não é apenas a história do Junco e sua sina. É tambem e muito mais a tragédia pessoal das personagens que desfilam pelo livro, marcantes e exemplares. História dramática e subjetiva de uma pequena cidade nordestina, é a saga de uma família, é a triste história de nós todos emigrados, é uma bela teia de destinos cruzados que não se ligam.

Queria te dizer também da minha discordância de uma crítica que li não me lembro aonde. O cara elogia o livro mas faz discretas alusões à técnica do autor, que desconheceria certos macetes de narração. Acho o livro muito bom, inclusive tecnicamente. Ou o cara está querendo que você escreva tendo como modelo o romance do século XIX? Era muito bom, mas Stendhal quebraria a cara escrevendo sobre o Junco. Tenho a impressão de que Essa Terra está escrito montado em narrativa tecnicamente correta, usando com segurança as inversões espaço-temporais, não confunde o leitor com pedantismo idiota, nem quer dar “uma porrada na literatura brasileira”.

Enfim, o que eu queria te dizer é que gostei do livro. Quando acabei de ler, no sábado de manhã, fechei o volume, olhei mais uma vez a capa e pensei para mim mesmo – não é que esse puto escreveu uma obra prima?

Receba um abraço, com carinho. Votos de boa carreira para Essa Terra. Para você, muitos e muitos anos de vida produtiva, porque ainda hás de escrever muito para ajudar os teus leitores a viver com mais dignidade, ou seja: viver sem esquecer a grandeza e a miséria da condição humana.

“Ponteiros parados” Ou a gênese do cão

Prefácio da 1ª à 14ª edição – 1976/2000
Lígia Chiappini Moraes Leite

Capas de Essa Terra

Quando a matéria é o sertão

“Produto Nacional Bruto; gente se alimentando de farinha de telha, sopa de farrapos e carne de rato”. Assim Antônio Torres definiu recentemente sua obra, firme na opção de tematizar um Brasil subdesenvolvido e temporalmente descontínuo. Tais palavras, como ele próprio esclarece, são ditas ainda sob o impacto de uma viagem pelo sertão da Bahia, recomeçada de certo modo nas páginas deste seu novo livro, onde o Junco aparece como um paradigma dos lugarejos nordestinos de “sopapo, caibro, telha e cal”, feios e secos como a gente que ai teima em sobreviver.

Para o autor, o simples fato de existirem muitos juncos pelo Brasil afora justificaria o livro. Embora possamos aceitar esse tipo de argumento, enteressa-me ressaltar alguns aspectos que ele poderia injustamente obliterar. Trate-se de elementos tipicamente ficcionais que, neste livro, alargam o documento, transfigurando a realidade para fornecer dela (paradoxo aparente de toda a arte) uma imagem mais profunda. Interessa mostrar sobretudo que fazer da ficção uma forma de conhecimento da realidade social leva a pôr em jogo um complexo de relações pelo qual autor e leitor também acabam na berlinda, porque são envolvidos pela rede dialógica do discurso ficcional, convite à auto-análise e à participação.

Não há dúvidas de que a estória de Nelo e Totonhim é exemplar. Nesse sentido caberia aqui uma análise que buscasse homologias entre esse mundo de palavras e a sociedade aí representada, através de situações e personagens típicos.

Seria possível mostrar, então, como são generalizáveis a muitas outras regiões brasileiras elementos como estes: a decadência do Junco, com a modernização representada pela chegada do banco por outras inovações que acabam acarretando a ruína dos plantadores e o êxodo para a cidade; nesta, o desemprego, as dificuldades da família numerosa para manter os filhos na escola ou mesmo conseguir o mínimo para a subsistência; a prostituição das mulheres (duplamente descriminadas numa sociedade eminentemente machista) ou a perpetuação de um estado miserável no casamento com indivíduos em condições econômicas igualmente precárias; o sonho da grande cidade como última esperança e, por fim, o esfacelamento desse sonho, diante da evidência de que a “mina de ouro” não é patrimônio comum.

No Junco e sua gente, reconhecemos tipos e situações que já constituem verdadeira obsessão nos romances de Antônio Torres. Em Um Cão Uivando para a Lua, encontramos um repórter como personagem principal, vivendo em São Paulo, mas cuja infância se passa no Junco, em condições muito semelhantes a do protagonista narrador de Essa Terra e de seu irmão, Nelo. Há um momento em que isso fica bem claro. Referindo-se aos meninos subnutridos da Amazônia, o personagem sugestivamente denominado A (o que reforça o seu caráter exemplar), diz: “Mas não era apenas neles que eu estava pensando. Isso também era outra coisa que eu já tinha visto antes, no Junco. Eu já tinha sido um daqueles meninos, eu era a soma deles todos”.

No livro seguinte, Os Homens dos Pés Redondos há igualmente um personagem denominado O Estrangeiro que também veio do Junco, para a grande cidade, onde trabalha como publicitário. Essa presença obsessiva de alusões à vida no Junco, principalmente ligadas à infância, apontam até mesmo para um certo cunho autobiográfico das estórias de Antônio Torres, como sugerem certas passagens do prefácio de Essa Terra, onde reaparecem esses elementos obsessivos que também vão entrar na composição deste romance. Entre outros, a família numerosa; a dificuldade em fazer o ginásio; a modernização do Junco contra o desenvolvimento do trabalho na lavoura; os amigos e conhecidos que emigram para as grandes cidades; os tipos reais que inspiram os seres ficcionais, embora não se confundam com eles, como o velho Giese, Lela de Tote, Humberto Vieira… Pode-se levar mais longe a analogia, se notarmos as semelhanças de certos nomes ou iniciais: Lela – Nelo; Antônio Torres – A e T (personagens de Um Cão…); Antônio Torres – Totonhim. Mas tudo isso ainda é o mais óbvio e o mais exterior no texto. Para alcançar uma dimensão mais profunda de leitura é preciso verificar como tipos e situações se refletem na consciência dos personagens neste romance e quais as relações entre uma certa consciência coletiva difusa e culpada da gente do Junco, com a consciência mais crítica, mas igualmente culpada, do narrador-protagonista.

Pela sondagem das idas e vindas dessa consciência a que o leitor tem acesso mais diretamente, porque grande parte da estória é narrada em primeira pessoa, é que se estabelecerá uma ponte entre o personagem, o autor e o leitor, rumo a uma representativa mais interna ao texto.

Quando a culpa faz crer no Apocalipse

Perpassa o livro todo uma culpa coletiva da qual participam em menor ou maior intensidade todos os moradores do Junco. E o pecado parece ter sido o abandono da terra, a entrega à sedução do progresso, a fidelidade concedida ao Anticristo, representado pelo banco, cujos empréstimos precipitam a decadência da lavoura com a imposição de plantar cizal. O banco e o sargento são os principais agentes estranhos que vêm disseminar o mal no pequeno lugarejo; com eles vem a televisão, as idéias extravagantes, as novidades citadinas, o palavreado enganoso, para roubar os braços fortes do cabo da enxada e enfraquecê-los no uso da caneta. As pessoas enlouquecem para purgar essa culpa coletiva: como Alcino, Pedro Infante, o prefeito, a mãe de Nelo.

A loucura vai-se alastrando à medida que a narração progride e a fala profética do doido Alcino dá coerência às alusões dispersas ao Apocalipse e às pragas de ilustres antepassados, como Antônio Conselheiro. A terra irada fala pela boca de Alcino uma linguagem bíblica. Sua voz é um pano de fundo constante contra o qual os acontecimentos do presente (que giram em torno da morte de Nelo) ganham uma dimensão trágica. A loucura põe a nu a culpa e a clama pela expiação.

E a culpa se configura cada vez mais na vitória da caneta contra a enxada, duas forças em conflito, personificadas em dois personagens-chaves: o pai e a mãe de Nelo. Esta, defendendo a ida para a cidade, a compra da televisão, a escola; o pai, sustentando a permanência na terra, o plantio, a união da família no trabalho da lavoura. Essa luta, por vezes, se interioriza num só personagem, como em Nelo que, embora nada possa esperar de São Paulo, onde perdeu tudo, não se adapta mais no Junco, à sua vida primitiva e seu conforto.

Mas a culpa de ter abandonado o pai, a lavoura e a velha casa o persegue e é retomada simbolicamente no remorso por ter perdido o chapéu. Este é símbolo dos tempos primordiais, “é do tempo de Deus nosso Senhor”. Imagem da proteção e de uma vida sem culpa, o chapéu aparece na cena em que Nelo está sendo agredido pelo primo e rival, numa noite indiferente da grande cidade. Nesse momento, o pai aparece-lhe estendendo o chapéu e cruzam-se em sua mente perturbada cenas do presente com cenas do passado: lembranças desconexas de uma vida telúrica, onde encontra refrigério para o sofrimento da hora. Mas a culpa de ter perdido o chapéu é inseparável da consciência da impossibilidade de voltar a usá-lo. É aliás, essa ambivalência que impede o livro de cair num tom excessivamente saudosista, pois sob a culpa há sempre a desconfiança de que ela é também uma força repressiva que se exerce sobre o homem miserável do sertão. Aliás, essa desconfiança já se insinuara anteriormente, quando A recordava as explicações supersticiosas que, em criança, ouvia para o fenômeno das chuvas e das secas: “o mesmo Deus que dava chuva, também dava sol e o sol era castigo dos céus, diziam os mais velhos, citando fanáticos e profetas”.

Mas a ambivalência entre a aceitação e a negação da terra, de suas crenças e de sua gente, por parte e Nelo e de outros personagens dos romances anteriores, também existe no narrador-protagonista de Essa Terra. E, embora a profecia seja contrabalançada pela explicitação das causas econômicas e sociais da decadência do Junco, ela continua a enformar a narração, ora diretamente, ora através de símbolos de danação, como o sol ou o mata-pasto. Aceitar a profecia é aceitar a culpa. E, de fato, esta é introjetada no personagem narrador desde o início da narrativa.

Quando o homem se faz em pedacinhos

Como o narrador é também protagonista, a narração se faz, de maneira descontínua, desenrolando-se ao sabor das lembranças mais ou menos imediatas e mais ou menos intensas. Misturam-se, assim, aos acontecimentos do presente (que são poucos e giram em torno do fato central: o enforcamento de Nelo) os do passado, que aparecem sempre envoltos no tom magoado do narrador (tom de menino preterido pela mãe e abafado pela imagem de um irmão perfeito, quase lendário). Assim, à medida que a narrativa avança, o narrador se transforma em narrado, porque sua palavra nos diz menos sobre os outros do que sobre si mesmo. Analisar o seu passado e o de sua família é também realizar um esforço de auto-entendimento e, em todo esse processo, avulta um traço no seu relacionamento com o pai, a mãe, o irmão e o lugar de origem: a ambivalência entre o amor e o ódio. A uns e outros repele e deseja ao mesmo tempo. Odeia a mãe por discriminar os filhos em favor do mais velho, por atormentar o pai e por representar a mulher escrava do consumo; mas admira-lhe a tenacidade, a coragem e ama-a como amante não correspondido, deixando transparecer às vezes fantasias incestuosas: “Minha mãe vai virar sereia. Eu sempre achei que ela tinha corpo de sereia”. Por outro lado, o pai aparece envolvido em grande ternura, como o homem da terra, o artesão, familiarizado com os bichos e a morte; homem bom, incapaz de bater num filho, vítima de uma mulher mais astuta e ambiciosa.

Deslocado para a cidade, porém, ele aparece bêbado e fraco, incapaz de sustentar a família e de assumir as responsabilidades de chefe, quando então avulta, por contraste, a figura quase heróica da mãe. A ambivalência se resume freqüentemente numa frase: “Todos têm razão. Essa é que é a verdade, todos têm razão”. E ambivalente é também a relação do narrador com a terra, como já indicam os próprios subtítulos, nessa síntese de contrários que é a terra-mãe chamando, mas ao mesmo tempo, enxotando; fazendo enlouquecer, mas também amando.

A mesma culpa do personagem-narrador transparecendo no final, ao perceber que o desejo de libertar-se da família, para “não morrer atolado em problemas” é a mola mestra da sua partida, (mal escamoteada pela necessidade de ganhar mais e auxiliar o pai e irmãos menores) aparecia naquele momento em que A lembrava a visita feita aos pais, visto então como dois estranhos; momento em que a acusação se explicita: “Pensa que mandar um dinheirinho todo mês para sua gente já resolve tudo, pensa? Você é um assassino”.

Na verdade, o narrador-personagem Totonhim é o ante-Nelo, o ante-A e o ante-Estrangeiro; ou é todos eles no seu nascedouro. Nesse sentido, é um duplo de Nelo, em Essa Terra.

Nelo traz para dentro desse romance a figura dos outros personagens desencontrados de si mesmos, porque se perderam na cidade, e os confronta com um passado vivido no Junco. Totonhim identifica-se com Nelo, embora mantenha também em relação a ele, a atitude ambivalente: ama-o, admira-o, faz dele a “palha de lenha dos seus (meus) sonhos”, mas odeia-o e sente ciúmes pelo que ele sempre representou para os pais; e sobretudo não o perdoa por haver, com sua morte, revelado a sua verdadeira face, desfazendo o mito ao expor-se em toda a sua miséria material e moral.

A ambivalência explica porque encontram-se lado a lado cenas de extremo carinho de sua parte para com Nelo, e cenas violentas como aquela em que tenta esbofetear o cadáver. Mas a complexa relação do narrador com Nelo se revela através de uma imagem central – dos ponteiros parados: “vinte anos para a frente, vinte anos para trás. E eu no meio, com 2 ponteiros eternamente parados, marcando sempre a metade de alguma coisa – um velho relógio de pêndulo que há muito perdeu o ritmo e o rumo das horas”.

Essa imagem torna evidente que a vida de Totonhim é um simulacro. Ele tem 20 anos que desviveu identificando-se com o irmão, projetando o desejo de ser outro. Os próximos 20 anos estão condicionados igualmente pela vida do irmão que tem 40. Relógio sem corda, ponteiros parados – conotando uma vida desvivida por antecipação, morte na repetição padronizada, vida de forno – a imagem é mais ampla, transcendendo o caso específico do narrador-protagonista e adequando-se a toda uma gama de indivíduos – classe média, indecisos entre o apego a um passado de miséria e a identificação com uma classe superior a que buscam ascender. Totonhim prefigura (embora seja criação posterior), o intelectual-classe média que os personagens principais dos outros dois romances representam. A inversão explica-se porque as origens parecem mais claras à luz do vivido.

O espelhamento de um personagem em outro que existe aqui entre Nelo e Totonhim já existia entre A e T e entre De Jesus, o Estrangeiro e Alves. De um livro para outro há uma fragmentação crescente do homem, figurando a desestruturação da personalidade na luta cega pela ascensão, no trabalho sem prazer e sem dignidade, no sufocamento do indivíduo progressivamente retificado.

Se em Os Homens dos Pés Redondos a esquizofrenia chega ao máximo, com a explosão de um personagem em três, refletida na própria explosão do arcabouço lógico da narrativa que caminha por direções desencontradas (e se isso já acontecia de certa forma com a patética figura de A, perplexo ante a necessidade de conviver com dois seres diferentes dentro dele) Essa Terra parece buscar a unidade perdida, mas o que encontra são já os germes da esquizofrenia. Totonhim já não é mais Totonhim; Nelo é quem tinha razão: ele já traz as marcas do homem dividido.

Por isso, uma análise mais profunda deste livro mostra que não se trata somente da representação da miséria do Junco ou do Sertão Brasileiro, mas sobretudo de uma sondagem que se inicia (ou prossegue): a sondagem de uma condição social, através do mergulho no caso individual que acaba nos conduzindo às origens mais gerais da culpa, onde se encontram o autor, o personagem e o leitor, sofrendo na pele a fragmentação do homem, desde que a civilização criou o abismo entre a enxada e a caneta.

In ESCRITA. Ano I, n° 1, 1975. p.19.

Cf.: LUKÁCS, Georg. “La categoria de La particularidad.” In: Estética. Barcelona, Ed. Grijalbo, 1972. v. 3.

TORRES, Antônio. Um Cão Uivando para a Lua. Rio de Janeiro, Ed. Gernasa, 1972.

Id. ibid., p.45. (Sobre o caráter exemplar de A e T ver a orelha do livro, escrita por Celso Japiassu.)

TORRES, Antônio. Os Homens dos Pés Redondos. Rio de Janeiro, Liv. Francisco Alves Ed., 1973.

TORRES, Antônio. Um Cão Uivando para a Lua. Rio de Janeiro, Ed. Gernasa, 1972. p. 45.

TORRES, Antônio. Um Cão Uivando para a Lua. Rio de Janeiro, Ed. Gernasa, 1972. p. 100.


” Essa Terra marca nitidamente o contraste entre o interior – de estrutura feudal, miserável, mas de valores e feições humanamente reconhecíveis – e São Paulo, sem rosto nem forma, um falso Eldorado onde ganhar a vida significa perder o seu sentido.” Leo Gilson Ribeiro/Jornal da Tarde (SP)

O suicídio do herói

Revista Veja, 30 de Junho, 1976.
Affonso Romano de Sant’Anna.

Capas de Essa Terra

Poderia se chamar também “a volta do herói” esse romance em que Antônio Torres conta como o baiano Nelo larga sua família, vai para São Paulo e regressa, vinte anos depois, para se enforcar aos olhos do irmão mais novo e dos parentes, que o julgavam um indivíduo bem sucedido.

O livro – ilustrado por Elifas Andreato – retrata o herói, ou melhor, o anti-herói como o são também o repórter de “Um Cão Uivando para a Lua” (1972) e o publicitário de “Os Homens dos Pés Redondos” (1973), livros anteriores com os quais Torres marcou seu lugar entre os novos ficcionistas. Unindo os três livros, aparece não apenas a temática da loucura e da miséria social, mas a referência à cidade baiana de Junco, que assume um destaque maior em “Essa Terra” (Junco é a cidade natal do próprio Torres).

Tragédias – A história é contada pelo irmão mais novo Totonhim, e narra a decomposição de um mito. Assim, Nelo, que era “um homem belo e rico, com seus dentes de outro, seu terno folgado e quente de casimira, seus raybans, seu rádio de pilha e um relógio que brilha mais do que a luz do dia”, vai se convertendo num bêbado incapaz de criar uma família. Cheio de doenças, encontra no suicídio o gesto capaz de libertá-lo da falsa imagem que a família nele cultivava.

A história, contudo, não se reduz a esse eixo dramático. Além do lado psicológico ou individual, interessa ao romancista o contexto social onde isto se gera. Daí que a tragédia do individuo e a tragédia da comunidade estejam interligadas neste livro. E ao intitulá-lo “Essa Terra” e ao situá-lo no nordeste. Antônio Torres está se filiando a uma tradição literária que tem um de seus melhores momentos no romance social de 1930.

Mas poderia surgir a pergunta: não estaria o autor entrando perigosamente numa terra exaurida já pela ficção de um Graciliano Ramos especialmente com seu “Vidas Secas” (1937)?

Outro nordeste – A melhor resposta poderia ser encontrada no própria Graciliano, a quem Otávio de Faria advertiria de que o sertão, esgotado, não dava mais romance. Ao que o escritor alagoano retrucou: “Santo Deus! Como se pode estabelecer limitações para essas coisas” – e fez a obra que fez. Torres, como Graciliano, optou pelo mais honesto: escrever sobre o seu nordeste. E assim como Graciliano em carta a José Condé identificava as personagens de “Vidas Secas”, mostrando que saíram de sua família, “Essa Terra” tem no lastro biográfico a sua força original.

Tecnicamente o livro de Torres (e de muitos ficcionistas jovens brasileiros) mostra um avanço em relação à montagem dos romances sociais de 1930. à narrativa linear e cronológica ele prefere um desencadeamento em que passado, presente e futuro se cruzam oferecendo uma estória às vezes de acompanhar. Em torno da tragédia central, pequenas outras narrações reafirmam a tensão patética das personagens.

Cabe, no entanto, a cada época, educar os seus bons leitores. O publico de 1930 teve também que aprender a re-ler o Brasil. No caso específico deste livro, existe toda uma leitura acompanhada por uma introdução e um “suplemento de trabalho” endereçado a alunos e professores. E através de uma aliança com a escola procurar formar um público novo que se deixe transformar por uma linguagem também nova.


Uma análise mais profunda deste livro mostra que não se trata somente da representação da miséria do Junco ou do Sertão Brasileiro, mas sobretudo de uma sondagem que se inicia (ou prossegue): a sondagem de uma condição social, através do mergulho no caos individual que acaba nos conduzindo às origens mais gerais da culpa, onde se encontram o autor, o personagem e o leitor, sofrendo na pela a fragmentação do homem, desde que a civilização criou o abismo entre a enxada e a caneta”.

Lígia Chiapinni Moraes Leite, da Universidade de São Paulo, no prefácio à primeira edição do “Essa Terra” (1976).

A terra foi lavrada. Brotaram palavras

O Estado de São Paulo, 9 de dezembro de 1984
Cremilda Medina

Capas de Essa Terra

Qual escritor – ainda mais se vier dos confins da terra brasileira – que não se emocionaria ao ver um livro seu, em francês, com destaque numa boa livraria de paris? Antônio Torres, que começou a publicar nos anos 70 e ficou mais conhecido depois do sucesso de “Essa Terra”, passou agora por essa experiência quando compareceu ao lançamento do mesmo livro (Cette Terre) na França. Já se vai acostumando às edições estrangeiras: a Editorial Sudamérica lançou Un perro aullándole a la luna, “Essa Terra” está também traduzido para o inglês e seus contos figuram em antologias no Canadá, México, Polônia e Argentina.

Não que se embriague com a expansão além da fronteira brasileira. Ele, como a generalidade dos autores nacionais, sabe que este é o autêntico espaço de difusão para a literatura brasileira. Mas seu lado ingênuo (adolescente, por que não?) sente um certo frisson diante de um vitrina parisiense, mesmo que a voz do Brasil se dilua no meio de um mar de outras vozes internacionais. Talvez porque o menino Antônio não esqueça nunca que saiu da terra, da enxada, no interior mais remoto da Bahia, e conseguiu chegar, quase por milagre de sobrevivência, ao domínio da máquina de escrever.

Junco, Bahia, 1953. Antônio Torres, filho de agricultores assolados pelas intermitentes secas do Nordeste, teve a grande chance de aprender a ler e escrever com a professorinha abnegada que por lá peregrinou. Eram 11 filhos e Antônio devorou as seletas emprestadas pela professora, adquiriu o dom mágico de saber ler e a comunidade o consagrou: foi uma criança muito especial que percebeu o significado e o serviço a que se presta a escrita e a alfabetização. Era requisitado para ler e escrever cartas, único vínculo de tanta gente que saiu das agruras do sertão para nunca mais voltar. Viúvas de maridos vivos ou namoradas que perdiam seus companheiros, obrigados a partir. Era ele quem escrevia as declarações de amor e de dor. Segunda-feira, chegava o correio no lombo do burro e, com ele, a esperança de vida que fatalmente teria de passar pelos olhos abertos, atentos, de Antônio. Nos outros dias da semana, nas horas de descanso do campo, era os ouvidos do menino que se perfilavam para captar os romances, as estórias de pavão misterioso da fabulação popular.

Os auditórios de Paris, por ocasião do lançamento de Cette Terre, deliraram quando o escritor brasileiro falou dessas raízes. Nada de realismo fantástico, mas sim fantástica realidade. Disse mais para europeus estupefatos: desde sempre valorizou a palavra como serviço muito importante. Na hora em que morria alguém no Junco, chamavam-no para ler o missal. O compromisso com a escrita pesa sobre sua cabeça até hoje, mas foi só em 1975, em um debate público, que se conscientizou: é um escritor fatalmente engajado com a palavra escrita. Tudo o resto veio por acréscimo: conseguiu ir estudar no ginásio em Alagoinhas, descobriu as bibliotecas e suas almas – Tolstói, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Monteiro Lobato e tudo que caísse na rede. Trabalhava numa sorveteria e, sempre que dava, corria para o cinema, com programa duplo, os filmes mexicanos da Pelmex, as chanchadas brasileiras, os musicais de Hollywood; vieram também James Dean e Elvis Presley…

Já em Alagoinhas, menino metido, escrevia para o jornal local. Quase foi expulso do ginásio, porque tratou da escola sob o titulo – “A Casa Grande de Cunha”. Foi difícil tentar convencer Cunha, o dono da escola, que esse titulo não tinha nenhuma intenção… O jornal do ginásio também lhe serviu de prática na profissão que logo se impôs. Paralelamente, lia muito poesia. Como bom baiano, não fugia ao império de Castro Alves, mas também se deliciava com Gonçalves Dias e Augusto dos Anjos. Até aí, pura vivência de um mundo interiorano. Com o serviço militar, porém, deslocou-se para Salvador, a primeira grande capital em sua vida.

Jogou alto. Sempre. Um borracheiro de Alagoinhas, que veio a Salvador pelo trem Marta Rocha (não havia asfalto), o apresentou ao editor-chefe do Jornal da Bahia. Quase morreu de emoção, as pernas tremendo. Pois ficou no jornal e caiu na realidade imediatamente. Mandaram-no para o cais do porto fazer matéria, não viu nada acontecendo e morreu de desgosto quando, no outro dia, os jornais de Salvador falavam de contrabando naquele mesmo cais em que não descobrira notícia. Essa dura experiência jornalística só é compatível a outra, no mundo da intelectualidade, quando, no aniversário do patrão, as pessoas só comentavam Proust. Ele, homem da roça, guardou um trauma que o empurrou a vida toda à procura de uma permanente atualização nas leituras.

O jornalismo, tirou de letra. A literatura, descascou-a e descasca-a até hoje com empenho e paixão. De Salvador para São Paulo, para trabalhar na Última Hora, muitos quilômetros rodados. A reportagem de rua e a linguagem dos paulistas, de início, o assustaram, não entendia bem o que escreviam, mas prestou muita atenção e se desempenhou. Saiu da era da reportagem de bonde para a frota de jipe. O que sempre se ressaltava era o pulso verbal desse baiano treinado em cartas, missais, pavões misteriosos, poemas, crônicas, reportagens e outros desafios do cotidiano. Por isso, não foi difícil ele, da enxada em Junco nos anos 40, passar para a publicidade, em São Paulo, nos anos 60. Em 1965, já então um redator muito bem pago com perigo de se escravizar para sempre à publicidade, fugiu. Foi para Portugal conhecer outros mundos, provas de outra aventura. Desempregado, sem eira nem beira, um anjo bom veio em socorro, o recolheu à sua casa e alimentou-o da mais pura literatura.

Antônio Torres deve ao poeta português Alexandre O’Neill não um mecenato, porque o poeta é pobre em toda parte, mas uma amizade e uma bagagem de leitura. Nos quatro meses em que ficou desempregado foi plantado às margens de Guimarães Rosa, entre outros pelas mãos de O’Neill. Por incrível que pareça, o poeta português o levou para Mário de Andrade, João Cabral de Melo Neto, entre muitos autores de todas as latitudes. Enquanto seus companheiros de ofício ou afinidades procuravam os Estados Unidos para se aperfeiçoarem, Torres se achou em Portugal. Se achou e achou seu texto. Mais uma vez O’Neill teve um papel fundamental. Dizia ele, vocês, brasileiros, sofrem de um complexo de inferioridade cultural. Então ele percebeu e agarrou seu texto, um texto mergulhado no Brasil, sem traumas de Proust na consciência.

Deve também ao romance de 30 – Jorge Amado, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz –, de quem é eterno aprendiz, a inspiração ficcional, Transpira muito até dar forma ao texto. Terminar um romance representa muita morte. Persegue, no fundo, a auto-superação: só se dá por atacado se uma pagina o surpreende, se sente uma nova dicção. O primeiro livro – “Um Cão Uivando para a Lua” (1972) – marchou em compasso de espera muito tempo. Não achava a primeira frase, para ele essencial. Dois anos sem encontrá-la. Um dia, numa clínica psiquiátrica do Rio de Janeiro, diante do amigo alienado, ficou sob o impacto da cena Só se acalmou quando jogou no papel um conto em que uma pessoa, alucinada, fala consigo mesma. Daí parar o romance, se passaram oito meses, Mas Torres adverte: por trás desses oito meses, o período mais curto em que escreveu um livro, estavam 30 anos de vida.

O segundo livro – “Os homens de Pés Redondos” – nasceu ainda quando vivia em Portugal. Sentado na Praça de Londres, no primeiro dia de Lisboa, viu a gente que passava, sentiu como que os pés redondos, cansados de tanto rodar. Ao escrever seus primeiros romances, nos anos 70, sentia-se assim de pés redondos, a literatura saindo como quem arranca uma espinha da garganta. Para uma geração de direta convivência com o Cinema Novo com o Teatro de Arena e com a Oficina de São Paulo, cm a descoberta de Oduvaldo Vianna Filho (Vianninha) e com ele, o conhecimento do homem brasileiro, a construção de personagem, foi como que uma compulsão expressar algumas das estórias que se acumulavam no baú. O romance é o espaço preferido, justamente porque é uma estória cheia de estórias, uma base de conflito e tensão. Nunca abandonou o mundo de Junco, a infância cheia de narrativas, os casos da cultura oral. À medida em que entrou nas vísceras da cidade grande, pressentiu que este é um mundo sem fábulas. As fábulas vivem com seu pai, seu avô. Ele, no entanto, assumiu as conseqüências urbanas. O conflito básico, em ternos estéticos – também um grande desafio -, é plasmar a fabulação tradicional com a narrativa urbana, a toada com o rock’d roll.

Malcolm Silverman, estudioso norte-americano, ao analisar a ficção moderna brasileira (em livro editado pela Ed. Civilização Brasileira), cita essa variação de Torres a partir mesmo dos dois primeiros romances que seriam urbanos, e o terceiro (e mais bem-sucedido_, que seria rural: “As revoltantes realidades contidas nas limitações geográficas de Essa Terra variam somente em contexto, se comparadas às de Os homens dos pés redondos e Um Cão Uivando para Lua. O pandemônio urbano, embora menos de molde a produzir um trauma psicológico imediato (como uma seca ou uma enchente), submete a resistência humana a uma prova igualmente dura”. Silverman que estuda, neste trabalho, até o quarto romance (“Cartas ao Bispo”), concluiu que “Antônio Torres emprega a figura onipresente de Gil como uma espécie de trampolim para o tema esterno das vicissitudes da vida, e também como um espelho passivo das iniqüidades sociais (por exemplo, a pobreza endêmica nordestina)”. O que quer dizer, no fundo, é que Antônio Torres, não importa onde se localiza geograficamente – se no campo ou na cidade -, está do lado dessas vicissitudes. “A linguagem reforça esta temática, sendo espontânea, despretensiosa e repleta de imagens populares,” O Crítico norte-americano arrisca uma certa fórmula, percebida no quarto livro, que seria uma mistura da tese neonaturalista com a introspecção modernista: “O autor demonstra senso de objetividade na escolha dos seus temas e um calculado refinamento de linguagem”.

Foi exatamente essa linguagem de transfiguração da realidade sofrida do sertão ou da metrópole que levou os franceses a saudades Gette Terre como “um testemunho e porta-voz de uma população que se esforça obstinadamente por sobreviver em meio ao barulho e à fúria de uma terra e, transe” e, por outro lado, um testemunho traçado pelas mãos de “um poeta e pintor”. Torres, modestamente, se alia aos ficcionistas brasileiros e aponta para o esforço dos anos 70: beber das águas do mais modernos escritores, Machado de Assis, percorrer a ética e a estética do romance dos anos 30, entrar no grande rio de unidade nacional, Guimarães Rosa, prestar atenção a duas diferentes contribuições –  Antônio Callado ( em “Quarup”) e Clarice Lispector –  e dar as mãos a todos os da ativa (presentes neta série), cada um com seu sotaque, e solidificar a identidade nacional, unindo os séculos que convivem neste território, sem esquecer a grande modernidade literária do continente e do mundo.

Um novo romance sairá, se tudo der certo, em 84. O estímulo de Paris valeu. Há um ano e meio não daí das 30 páginas iniciais, vai trabalhando no pão nosso de cada dia (a publicidade) e acredita que agora o livro deslanche. A cada novo parto as exigências de auto-superação são maiores. “Essa Terra” ficou marcado tanto no âmbito do público (grande audiência em São Paulo, Nordeste, da Bahia para cima) quanto na sua esfera emocional. Confessa que o sente como mais abrangente. Talvez o que lhe deu maior resposta como escrita a serviço do outro. Os olhos se enternecem ao lembrar que foi chamado para ir a São Paulo, convidado por baianos anônimos do ABC, seus conterrâneos de Junco, que queriam abraçar esse escritor da terra.

Bilhete a Antônio Torres

Jornal Folha da Tarde – São Paulo, 06/09/1976.
Torrieri Guimarães

Capas de Essa Terra

Eis aqui uma antiparábola. Não é o filho pródigo que está voltando à sua casa farta, rica, para uma festa de reencontro que deverá durar muitos dias – “porque estava perdido e foi encontrado”; nem é o filho mais novo, no ardor de sua juventude, que tivesse desejado conhecer o mundo e tudo quanto ele oferece de oportunidades para a recriação da vida, pelo contrário é o irmão mais velho que esteve fora, que lutou e sofreu, e agora volta; nem é o filho que regressa depois de ter perdido toda a sua fortuna, de ter esbanjado a sua parte da herança paterna, e ter comido a mesma comida disputada aos porcos – em vez disso se vê um homem no caminho da completa maturidade, cercado de um halo de heroísmo, que venceu a Grande Capital e volta para trazer aos seus as esperanças de uma redenção.

É o anti-herói, da antiparábola. E entretanto todo o romance de Antônio Torres acaba constituindo-se numa extraordinária parábola, densa de ensinamentos, que se precisa colher devagar, sem pressa, na dinâmica dos diálogos e no estudo sereno das situações, no confronto dos personagens e nos quadros de decadência física e moral que ele apresenta. A parábola de um homem que retorna a sua terra e sua gente para acionar velhos mecanismos de lembranças e permitir, a partir da frustração de sua imagem, que se deteriora e se destrói, uma apreensão completa da realidade que a todos envolve e condiciona. Como se o pobre enforcado, com seus despojos gloriosos, o relógio de pulso e os óculos rayban, ligado à história de todos e de cada um, como produto do meio, deflagrasse um processo de tomada de consciência.

Agora  que ele esta morto, e com ele o mito e as esperança, quebrada a imagem da grandeza sonhada, destruída a ponto entre a realidade e o sonho, é preciso que cada um, na medida de suas forças, aceite a sua derrota ou a sua miséria, ou se insurja contra eles, tentando fugir ao circulo vicioso das tradições. Da cultura cristalizada, do conformismo, da aceitação passiva dos desníveis sociais, refazendo a frágil ponte entre a Grande Ilusão (São Paulo) e a Dura Realidade (Junco). Apesar do nome da cidade e de seus personagens, o romance pode situar-se no universal, porque a situação que encena afeta a muitos grupos sociais, diz respeito a coletividades inteiras, que tanto podem ser a dos insulados no sertão, com seus costumes centenários e seus condicionamentos, despertados por estímulos que não compreendem e por isso também incapazes de um comportamento adequado – isto é, o pouco preparo para as técnicas novas de cultivo e de financiamento bancário, que resulta em um conflito eterno entre o moderno e o antigo – como também a luta de quaisquer comunidades pobres, com os sonhos dourados da sociedade de consumo (o automóvel, o televisor, os gastos facilitados) e a miséria sabiamente controlada por computadores. Antônio Torres dá um grande salto de “Um Cão Uivando para a Lua” para este “ESSA TERRA”. Menos discursivo, contido e sóbrio em sua linguagem, ele sabe agora conter-se no essencial de sua narrativa, reproduzindo com mais verdade e menos demagogia (no sentido clássico, irmão) a realidade social resultante do entrelaçamento daquelas vidas do Junco. O mesmo que dizer que os tipos não são aqui vistos por uma perspectiva ideal, mas reproduzidos em toda a sua grandeza e suas misérias; como se o autor tivesse melhor dosado as suas emoções, sem deixar se dominar por elas, mas conduzindo-as no sentido de uma recomposição de momentos básicos para uma montagem a mais exata dos quadros de sua denúncia.

E ai esta a palavra: Antônio Torres não escreve por diletantismo, nem por simples e utilitária profissão. E um pesquisador atento. Na raiz de seus trabalhos esta a ansiedade do artista que busca decifrar-se e decifrar aos seus iguais (para não ser devorado). Depois de ter esperado e sonhado, como Totonhim, ele compreende: e tendo compreendido, não pode mais ficar indiferente, acomodar-se, aceitar a velha e insustentável problemática de sua existência. Ele também precisa partir (o eu significa tentar a mudança). Para o homem comum, que é Totonhim, é imprescindível atravessar a ponte entre a Realidade e o Sonho, para reconstruir-se (ou buscar a reconstrução), definir-se.

Para o escritor resta (ainda) a palavra. Ele compreendeu, ele denuncia essa problemática social: a dissolução da família, pela miséria, pelo desamor, pela prostituição; a exploração da ignorância, o abismo entre gerações e entre pólos culturais e econômicos; a violência e o esfacelamento do homem que perdeu as raízes e despersonalizou-se. E denuncia. Como quem enxerga além dos véus das aparências.


“Desde João Guimarães Rosa não se apresentou nenhum escritor brasileiro que descrevesse, poeticamente e com vivência, o panorama belo-horrível do Sertão: o isolamento da noite tropical, quando o espírito dos mortos vem à superfície e os morcegos voltejam na penumbra, o revérbero do mormaço do meio-dia, o impiedoso calor causticante. Antônio Torres, que como menino escrevia cartas para os moradores da vila ou lhes lia as que raramente chegavam das distantes capitais, consegue neste curto romance uma verdadeira obra-prima.”

Wolfgang Eitel, no Süddeutsche Zeitung, Alemanha