E quando parecia que ninguém mais se lembrava desse romance, publicado pela primeira vez em 1973, eis que duas professoras comprovam que ele está vivo sim, querida leitora, caríssimo leitor. Imensos agradecimentos a Vanusia Amorim, por tê-lo incluído em sua tese de doutorado prestes a ser defendida na Universidade Federal de Alagoas, e a Vania Pinheiro Chaves, da Universidade de Lisboa, que acaba de publicar um baita ensaio sobre ele na revista acadêmica E-Letras Com Vida (“Autoritarismo, cerceamento da liberdade e tortura em Os homens dos pés redondos”), no qual realça que “a estética revolucionária do romance é uma das mais bem conseguidas da ficção brasileira da pós-modernidade”. Com madrinhas assim, estes “Homens” não morrerão pagãos.
Com os Homens dos Pés Redondos, acabei
de compreender o escritor que obriga a pensar com sua forma aberta e
flexiva. Vai traçando situações e esculpindo o humano da maneira mais
atraente. Conta, além de tudo, com um lastro de experiência que
enriquece a sua obra.”
Numa época em que os Best-sellers
indígenas refletem (salvo as exceções de regra) melancólico
conformismo literário, o aparecimento de “Os Homens dos Pés Redondos”,
segundo romance de Antônio Torres, constitui testemunho de que ainda
contamos com autores que não se resignam à letargia que ameaça nossas
letras.
Reconheça-se que o autor de “Um Cão Uivando para a Lua” ainda não
alcançou o desejável equilíbrio entre forma e espírito, estilização e
tema. Ademais ainda está influenciado pela preocupação da denúncia
social o que, de certa maneira, em certos trechos, lhe compromete o
fluxo da narrativa.
É ponto pacífico que um romancista, por mais “atualizado” que seja,
não poderá condicionar sua arte unicamente a uma concepção
sócio-política do mundo, sob pena da mesma adquirir ranço panfletário.
Comparando-se, porém, o primeiro livro de Antônio Torres com este, é
sensível a evolução sofrida. Embora o ângulo de focalização ainda seja,
basicamente, o da deshumanização do homem contemporâneo, agrilhoado à
engrenagem de arbitrária organização social, os personagens já se
movimentam com maior liberdade individual, pondo à mostra o absurdo da
condição humana, independentemente de épocas e regimens.
Situando a ação num país chamado Ibéria (nome, também, de uma das
figuras da trama), que está congregando esforços para, com
metralhadoras e “napalm”, levar o progresso às suas colônias africanas,
o autor cria um clima de “realismo mágico” (ou de “realismo Ilógico”?)
que sem incidir nas realizações de M. Scorza, de J. M. Arguedas e
outros do mesmo naipe, dá bom rendimento em suas mãos. O simbólico sapo
kafkaniano, que permanece sempre alerta para que não sejam infringidas
as leis que regem o país, passa a ter, nesse clima, personalidade de
acentuada vivência.
Digna de relevo a expressividade com que o jovem romancista
desenvolve os monólogos interiores e as descrições, numa demonstração
de notável habilidade artesanal. Um exemplo: o método pelo qual expõe a
agressão sofrida por Junior, narrada em varias versões, cada qual
correspondendo à maneira de ser respectivo narrador.
Rico em criatividade, Antônio Torres se distingue, ainda, por um
traço raro entre os novos ficcionistas brasileiros: o do senso de
humor. Veja-se por exemplo, o julgamento do pretenso criminoso e o caso
da carta-queixa ao Vaticano. Um humor negro, convenhamos, mas que
confere curioso significado ao sentimento de frustração que corrói os
personagens. Humor, aliás, comum não somente aos cidadãos de Ibéria,
mas também aos de outros países nossos conhecidos.
Cabe ressaltar, também, o meio-encabulado lirismo oculto em algumas
passagens do livro, como no da visita do “Estrangeiro” ao velho
Rodriguez, já moribundo – passagem que pela áspera beleza basta para
dar idéia das possibilidades do autor.
A critica poderá objetar que pela riqueza dos temas em contraponto,
pela diversidade de situações e de planos, pela complexidade da
concepção (com raízes, não ocultas pelo autor, em Kafka e Joyce), “Os
Homens dos Pés Redondos” lembra mais a estrutura de vasto romance do
que uma obra devidamente realizada. Tal observação poderá ser valida em
relação ao inicio do livro. No entanto, sobretudo a partir da página
96, a narrativa ganha singular consistência, a prosa se torna mais
elástica e os protagonistas adquirem dimensões mais humanas.
Há perto de um ano, por ocasião da estréia do autor, fio dito nestas
páginas que estávamos diante de uma revelação. Urge agora acrescentar
que se trata da revelação de um escritor que dificilmente deixará de
figurar na primeira fileira dos novos ficcionistas brasileiros. De um
escritor que vem trazer um jorro de ar fresco ao abafado círculo da
nossa atualidade literária.
Através de um estilo transparente, perfeito,
musical e cadenciado, Antônio Torres conta a estória dos “homens dos
pés redondos”, governados pelo todo poderoso El Rey, que nunca aparece,
habitantes de Ibéria, homens brancos ou pretos, ricos ou pobres, onde
as mulheres de todos só existem na medida que servem aos seus homens e
aos seus filhos.
Neste mundo meio fantástico e meio real, existe o Vaticano, guerras
para todas a gerações, ao mesmo tempo que pessoas e coisas se
transforma e desdobram em outras pessoas e outras coisas. Nesse
sentido, Torres tem a mesma força e criatividade de um Garcia Marques.
Só ainda mais tenso e um pouco menos livre.
O que impressiona; já nas primeiras páginas, é a atmosfera que o
autor consegue criar, fazendo com que o leitor participe, com grande
impacto, da linguagem, dos dramas e do ambiente dos personagens.
Antônio Torres não quer poupar os seus leitores nem os seus
personagens. E através de um estilo, por vezes cru e agressivo, ao
mesmo tempo altamente sofisticado, faz as suas pessoas se expressarem
por meio de sonhos e flash-back, e, sempre, todos eles, na primeira
pessoa.
Essa técnica brilhante, se possibilita uma comunicação mais direta
entre leitor e o personagem, através das nuances de linguagem e
pensamentos de cada um deles, faz o livro bastante difícil para os
leitores apressados.
A grande variedade de assuntos, característicos de cada personagem,
torna a obra muito densa. Talvez tivesse ficado mais harmônica e
explícita se os diversos pontos de vista – político, intelectual,
social e pessoal – tivessem sido tratados mais extensivamente.
Mas mesmo assim, “Os Homens dos Pés Redondos”, é um excelente livro, talvez ainda um pouco imaturo e apressado.
“Maria Helena: Sim, foi um lindo romance, um lindo romance de amor. Não o acuso de nada. Não foi ele quem inventou o mundo. Também não o acuso de ter agido apenas para satisfação própria, por motivos de vaidade pessoal. Essas coisas não se fazem sem motivo justo. Também não sou uma mulher de programas, como
muitos homens pensam. Aceitei ir com este senhor, porque ele me pareceu
disposto a tudo. Podem acusá-lo de brutalidade. É certo. A brutalidade está nele, como está em mim – e nos senhores doutores. Vivemos um tempo sem dó. A esta citação de Brecht, a acusação se inquieta: Silêncio! Maria Helena, silêncio. O acusado tem algo a declarar? O Acusado: Eu te amo, Maria Helena, flor do lodo da minha Ibéria. Me dá uma terceira oportunidade. Vai ser ainda melhor. Vozes na platéia: – Estão dizendo que ele é m agente. Um inimigo da nação. – É da CIA? – Não sei, mas parece. – Também dizem que ele se dedica ao contrabando. – É possível. – É. Não está dando mais para se confiar em ninguém.”
Jornal do Brasil – Rio de Janeiro, out/73
Norma Couri
É na sola do pé que ele sente a vida. “Foi
queimando a sola dos pés no caminho da escola, onde ficavam os pastos e
o cabo da enxada, que comecei a sentir um desejo louco de sair pelo
mundo afora”. E, para esse romancista baiano basta ficar de pé no chão,
para que a vida se irradie pelo corpo inteiro. Mãos, olhos, pele, tudo
participa do processo de criação de Antônio Torres, 33 anos, que
quando pisa no esboço de um livro “é como se na garganta”. Ele gastou
oito meses fabricando idéias no meio da noite e escrevendo-as durante o
dia, até as cinco da tarde, “quando a luz começava a fraquejar”, para
se livrar da primeira espinha, Um Cão Uivando para a Lua. E foi queimando novamente a sola dos pés que fez explodir, o segundo livro, Os Homens dos Pés Redondos, e esboçar um terceiro, e um quarto, declarando: “Meus pés estão doendo. Eu estou vivo”.
– Vejo uma porção de homens de pés redondos – e eu no meio deles –
rodando, rodando pelo mesmo quarteirão, comendo pipoca e engolindo em
seco a vista baixa, um passo aqui outro não sei quando, como se não
existisse mais nenhum horizonte, como se o mundo começasse aqui e
terminasse aqui mesmo, neste banheiro, neste bairro, e sempre ligado a
um aparelho de televisão.
Antônio Torres não viu só isso. Viu pessoas andando em redor de si
mesmas. Pessoas que se ataram e não conseguem mais desatar. E imaginou a
Ibéria, uma nação impossível, que já não está mais suportando o peso
de seu próprio passado.
É nessa nação que se passa a história. É a terra dos homens
cabisbaixos, homens “de crista baixa”. Diante de seu fracasso, só resta
à velha Ibéria a memória de tempos mais felizes, quando seus homens
podiam levantar, com uma só mão, uma espada de 80 quilos, e resolver
guerras a pedradas e azeite, porque o azeite era barato e naquela época
os americanos ainda não fabricavam armas.
– Levei um bocado de tempo para escrever este livro. Primeiro,
vivendo o assunto. Depois ruminando idéias para encontrar a forma de
atacar. Só para encontrar a primeira frase gastei dois anos. Eu sabia
que tudo dependia dela. Foi num promiscuo quarto de hotel, que mais
parecia um velho e enferrujado navio, que este começo me veio: “A
julgar por ele, todos são homens sem mulheres, porque as mães de seus
filhos não contam”. Aí eu não parei mais de rondar a máquina de
escrever.
O uivo do cão
Mas o resto do romance ficou engasgado, Antônio Torres saiu de São
Paulo, veio para o Rio, viajou para Nova Friburgo, voltou ao Rio.
Escrevia até o sol raiar, esfregava as mãos, dialogava com Faulkner
(“juro, eu falava com um cara que já morreu, numa casa vazia, onde só
tinha eu e uma máquina de escrever”), rasgou muitas folhas e então
aconteceu o romance. Não o que Torres pretendia. Mas outro. A história
de um louco batendo papo consigo próprio.
– Numa tarde de sábado eu sentei na máquina. Senti um troço na
garganta e precisava tirar. Praticamente só me levantei dela oito meses
depois. Um Cão Uivando para a Lua estava pronto. O livro fala de
desespero, apalpa as causas e as conseqüências desses cães são uma
geração que de repente se descobriu enganada por uma série de valores
que não eram verdadeiros.
Antônio Torres, homem de sertão (“melhor ainda, um homem de sertão
que pegou o matulão, enfiou a viola no saco, subiu num pau-de-arara e
rumou para o Sul – um entre 80% da população, que fez o mesmo”), viu em
pouco tempo os uivos de seu cão serem elogiados pela critica. Seu livro
já vendeu mais de 10 mil exemplares.
– Mas a espinha continuava atravessada na minha garganta. Precisava
retirá-la para continua vivendo – e sendo capaz de funcionar. Então
voltei-me para Os Homens dos Pés Redondos. Foi quando terminei de ler
Bar Dom Juan, de Antônio Callado, ainda um pouco assustado, que tudo
recomeçou normalmente, sem muito esforço. Comecei do principio,
salvando apenas a primeira frase, aquela que eu havia levado dois anos
para encontrar.
O texto da enxada
Foi no caminho da escola, que começava depois de uma cancela – e
antes da cancela ficavam os pastos e o cabo da enxada – que Antônio
Torres viu o primeiro caminhão aparecer no Junco, levantando poeira. “Eu
queria cair fora, principalmente para me livrar do cabo da enxada”.
Então passou a recitar Gonçalves Dias, Castro Alves e Olavo Bilac nas
festas da roça. Os matutos gostavam muito, mas quem ficava comovida
mesmo era a mãe, “a velha Durvalice”. Acabei no Ginásio de Alagoinhas,
Bahia. Foi lá que descobri Graciliano Ramos, Monteiro Lobato, Jorge
Amado. Aos 17 anos entrei para o Jornal da Bahia, em Salvador. Fui
levado por um homem de nome Mário Alves, que passava o dia todo
recauchutando pneus, na entrada de Alagoinhas. Ele pós um terno branco e
pagou-me a passagem do trem. Em Salvador, fui direto à sala do Dr.
João Falcão, que também estava de terno branco. João Falcão levou-me
para Florisvaldo Matos, seu redator-chefe. Ele não só me admitiu como,
mais tarde, viria a arranjar um emprego num banco. Mais: cavou nesse
banco a minha ida para São Paulo.
Nesse tempo Torres já havia deixado de estudar. E acabou “se enfiando de cara” no jornalismo.
– Agora estou em cima de um livro de contos (um desses contos já foi
publicado num jornal em São Paulo). É um livro sobre o Junco, o meu
velho Junco. Esse livro é uma questão que tenho comigo mesmo. (Pra dizer
a verdade, eu acho o conto um intervalo, uma espécie de descanso do
cara que se mete verdadeiramente a escrever. É possível que eu leve
muito tempo para publicar um livro de contos. Minha ambição pessoal é o
romance). No fundo, o que queria mesmo era escrever um grande romance
(no sentido do tamanho e do valor) sobre o Junco. Mas não encontrei um
personagem único, que servisse de médio – apoiador. Então parti para
uma série de histórias curtas, que, no fim, dão um bloco. E, apesar de
estar com a mente e a alma bastante jogadas nesse assunto, já tenho um
romance nas tripas, Metade Homem, Metade Bode.
– O que eu que mesmo é chegar aos 40 com a minha viola afiada. Essa
viola que carrego comigo desde os oito anos, quando descobri o caminho
da escola de dona Serafina, lá no Junco (não me pergunte onde fica esse
lugar. O Junco não ocupa, nem nunca vai ocupar, um espaço decente no
mapa do mundo). Agora, aos 33 anos, se olho para trás me dá vontade de
assoviar Légua Tirana, de Luis Gonzaga. Sim, foi uma estrada muito
comprida.
Anatomicamente, o romancista Antônio Torres
passou da garganta de seu livro de estréia, “Um Cão Uivando para a Lua”,
para a elementaridade dos pés, no seu segundo romance. Literalmente,
foi um passo à frente. O que o volume inicial tinha de emotivo, de
visceral e até mesmo gástrico foi habilmente extirpado numa cirurgia de
estilo mais livre e menos adiposa.
Evidentemente, a literatura de empenho político-social é a mais
difícil armadilha para um talento que germina. Nela fracassaram
incontáveis Guevaras juvenilmente esfacelados pela falsa estratégia de
um lirismo incontido, de uma solidariedade humana panfletária, de
tristezas e revoltas que se extinguem no adjetivo e na interjeição como
rajadas suicidas de metralhadoras solitárias. Neste novo livro,
Antônio Torres depurou muito a explosão de sua primeira incursão,
refinando-a e assim atingindo melhor o alvo.
Choque de raças – O naturalismo de “Um Cão Uivando
para a Lua” era um veículo válido ou pelo menos aceitável para a
sinceridade emotiva da rebelião arrebatada de um jovem – contra um
status quo hediondo que “coisifica” o homem através do Estado, da
publicidade, da massificação. Com “Os Homens dos Pés Redondos”, a
linguagem surpreende por um veio que não existia no livro anterior e
que possivelmente é a melhor tendência latente do escritor: a
inventividade ilógica, o vôo da imaginação que não chega a ser o chavão
do “realismo mágico” de um Gabriel Garcia Marquez. Sem ter afinidade
com a metáfora densa e sutil de um J. J. Veiga, Antônio Torres, no
entanto, pelo seu arrojo ainda hesitante, situa-se perto de um Arreola,
com seu “Confabulário Total”. É excelente o episódio do homem
transformado em sapo por uma organização desumana. Menos convincentes
parecem as descrições realistas de Manuel Soares de Jesus – o homem que
planeja matar seu chefe, o “intelectual Alves”. São vivos e
interessantes os recursos de um júri de televisão dar nota ao criminoso
e da carta que este envia ao papa, pedindo justiça para o povo de um
país imaginário dominado por um governo totalitário e que combate na
África uma guerra inglória.
Falta-lhe apenas, para o terceiro livro, podar a riqueza
superabundante de temas, é demasiado ambicioso querer tratar, num mesmo
romance, os problemas da alienação da classe rica, as mazelas dos
barnabés conscientes, o choque de raças como a negra e a branca que
“têm que viver juntas”, tudo cosido com flashbacks joyceanos de
recordações sentimentais da infância. Mas também é legítimo esperar
que, se o processo de depuração continuar, Antônio Torres poderá trazer
à literatura brasileira a contenção lúcida de um Graciliano Ramos em
vez de mais um grito verborrágico e folclórico, do qual, aliás, nunca
esteve próximo.
O primeiro romance de Antônio Torres, Um cão uivando para a Lua, sem dúvida a melhor estréia de 1972, transformou-se rapidamente num dos livros mais vendidos no País. E o segundo, Os homens dos pés redondos, repete o feito – tanto em êxito como em qualidade.
Torres é, visivelmente, o anti-literato. O primeiro romance, a
estória de um nordestino criado na roça que vem para a cidade grande e
acaba transformando-se num intelectual neurotizado, não só pelo choque
de culturas quanto pela sufocante atmosfera do grande centro, é um
milagre de equilíbrio entre o urbano e o regional. Além disso, por sua
própria concepção – e apesar de pequena – a obra consegue criar um
microcosmo que representa os dois Brasis já observado por Euclides da
Cunha, mas até hoje pouco explorado pelos nossos ficcionistas. Torres
consegue pular de um gênero para outro, fundi-los, interiorizar-se na
análise da psique humana, sem cair nos cacoetes de nenhum deles. Enfim,
uma obra tão equilibrada que, levando-se em conta a parcimônia de
meios do autor, mais parece um acidente.
O segundo livro, mais ambicioso, sai do plano puramente individual
para abranger uma gama mais ampla de tipos, e também aqui o escritor
mantém o seu poder de criar personagens sólidas e convincentes, embora
prossiga na vocação confissional do primeiro. A estória, se passa num
país fictício, chamado Ibéria – fora o nome, não há nenhuma tentativa de
disfarçar a identidade de Portugal –, e nela o autor funde, mais uma
vez admiravelmente, os conflitos pessoais dos personagens com as
características opressivas do regime português recentemente liquidado,
sem jamais deixar o conteúdo político passar à frente ou mesmo ameaçar o
existencial. Não se trata de um livro político, embora seja sem
dúvida, um romance de consciência.
Outro escritor, mais literato, possivelmente não conseguiria
escrever no tom confissional de Torres sem cair no diário pessoal, sem
maior interesse como literatura, sem atingir um nível universal. E é
justamente aqui que entra a vantagem – claro que apenas em casos como o
dele – do primitivismo do autor: ele é tão sincero, tão puro, tão
isento de ismos literários, que seus livros escapam de todos os perigos
do gênero confissional e impõe-se como obras acabadas, definitivas.
Claro, há aqui e ali alguns deslizes, às vezes sérios – a começar
pela linguagem –, mas que só fazem autenticar a validez das obras. No
último livro, particularmente, parece que o sucesso demasiado fácil do
autor levou-o a uma maior autocomplacência, a desleixar-se um pouco da
autodisciplina visível no primeiro. Recursos como omitir o nome de um
personagem principal, designando-o apenas de O Estrangeiro, dificilmente
funcionam numa obra realista – e Torres apesar de todas as nuances
oníricas de seus livros, é um realista, no sentido lukacsiano do termo.
No fim do romance, o escritor leva a autoindulgência a ponto de
referir-se a si mesmo como juiz supremo de um dos personagens,
interrogando-se diante do leitor se deve matá-lo ou deixá-lo continuar
vivendo.
Mas estes são pequenos senões, até certo ponto necessários – quando
apenas senões – para dar uma dimensão humana à obra. O que parece
claro, já neste segundo livro, é que Torres veio para ficar.
“Guardamos a esperança para os que se desesperam.” Patrice de La Tour du Pin
Ulisses é um romance pertencente à classe dos romances em forma de
sonata, estruturado em tema, contra-tema, encontro, desenvolvimento,
finale, segundo as palavras de Ezra Pound acerca do muito falado e
pouco lido livro de Joyce. Ressalvadas as devidas proporções, podemos
dizer o mesmo de Os Homens dos Pés Redondos, de Antônio Torres. A
narrativa de Os Homens… se desenvolve em diversos tempos, com uma
aparente desconexão entre si, num estilo que lembra vagamente o do
“Roman-fleuve”, com episódios encadeados por intrigas diversas, mas
cujo final o leitor habituado à moderna técnica narrativa, vislumbra
logo às primeiras páginas.
Antônio Torres conta uma história (se ainda é lícito aqui, o uso do
termo), em moldes nada tradicionais, usando de uma técnica romanesca
que denuncia suas origens em Joyce, Faulkner e, numa certa medida, no
“noveau-roman”, influências talvez nem sempre conscientes, mas que o
autor já prenuncia em “Um Cão Uivando Para a Lua”, seu livro de
estréia.
Em “Os Homens…” não há ação, mas sim uma persistente análise
psicológica, interessando fundamentalmente os porquês dos atos e suas
conseqüências.
Aqui e ali uma certa insistência descritiva que não dando o tom
geral da obra, nos lembra, entretanto, alguns resquícios, propositais
ou não, de uma técnica naturalística, influência antiga, talvez, que o
autor insista em conservar.
A utilização da moderna técnica ficcional entre nós não é novidade,
como de resto, em parte alguma. Muitos dos nossos autores já a
exploraram, se bem que na maioria das vezes, de maneira pouco
satisfatória. É aí que Antônio Torres supera seus pares, quase sempre
claudicantes pela desmesurada e inconseqüente preocupação de criar
obras que possam rivalizar com suas com suas afins de outras latitudes,
naufragando num formalismo amorfo, estéril e maçante. Torres maneja
com pleno conhecimento a linguagem literária, sabe até onde pode levar
os experimentos vanguardísticos na construção de um universo ficcional,
não se deixa seduzir pelo canto de sereia de um experimentalismo
gratuito.
Os Homens… apresenta alguns pontos de contato com o romance de
André de Figueiredo, Labirinto, ganhador do Prêmio Walmap 1971.
As semelhanças são visíveis na construção e linguagem que os dois romancistas utilizam.
As diferenças, entretanto, são ainda mais visíveis e favoráveis a
Antônio Torres. O Labirinto, não propriamente uma obra autobiográfica,
situa-se mais no gênero confissional, vive mais das experiências
estritamente pessoais do seu autor.
Já o livro de Torres é o depoimento de um aqui e agora nada
animador, não se perdendo num subjetivismo auto-gratificante. Ao
estabelecer esse confronto entre as duas obras, não estou advogando,
nenhum realismo objetivista (vale aqui, a redundância), com autores que
não são artistas, mas tabeliões, ou psicopatas que reprimindo suas
emoções construam uma realidade na qual não intervenham um instante
sequer. Isso é falso. O artista só merece esse título, quando, partindo
de sua experiência pessoal, constrói uma supre-realidade que se apóia
nalguns pontos de semelhança com a experiência que todos temos do mundo
objetivo, mas nunca construindo, deste, uma réplica. O novo livro de
Antônio Torres ilustra o que estou querendo dizer.
Infelizmente, não posso achar que a minha dor é a dor do mundo e
enclausurar-me num solipsismo, julgando que a realidade sou eu e nada
mais.
Manoel Soares de Jesus, o herói ou anti-herói de Os Homens… ou
suas projeções, como Emílio, são nossos conhecidos. A porta de Ibéria,
que Antônio Torres não abre, é a de saída. Sutil. Mas Ibéria está cheia
de outras sutilezas, algumas claras como a estupidez de muita gente.
Universidade de Lisboa
Vânia Pinheiro Chaves
(Conferência proferida nas seguintes universidades: 1 – Paris 10 – Nanterre -, que a publicou em 2005. 2 – Universidade do Porto. 3 – USP. 4 – UFRJ. E outras.)
O escritor brasileiro Antônio Torres não carece de
apresentação nesse Colóquio, pois, além de ter sido agraciado pelo
governo francês, em 1998, com a comenda de Chevalier dês Art set dês Lettres,
comparece com freqüência em eventos que inúmeras instituições
francesas dedicam ao Brasil e – o que é, sem dúvida, mais relevante
para nós – tem três livros editados na França: Cette Terre, Um Taxi pour Vienne d’Autriche, Chie net Loup.
No entanto, ainda não foram traduzidos dois de seus livros que têm,
certamente, um particular interesse para o público francês, pois
trabalham com episódios da História do Brasil que são também da
História da França: Meu Querido Canibal tem como pano de fundo a
tentativa de construção de uma França Antártica por Nicola Durand de
Villegagnon, que se instalou na Baía de Guanabara, em 1555; O Nobre Seqüestrador retoma a breve ocupação do Rio de Janeiro, em 1711, pelo corsário francês René Duguay-Trouin.
Não me debruçarei, contudo, sobre tais obras, mas sobre Os Homens dos Pés Redondos, cuja primeira edição é de 1973 e cuja matéria se prende, segundo o próprio autor, com as suas vivências em Portugal.
Sabendo-se que Antônio Torres residiu, em Lisboa e no Porto, de 1965 a
1968, e que trabalhou como redator de publicidade para diversas
empresas, é de relacionar com esse período os acontecimentos narrados
no romance, embora eles não se apresentem no texto situados num tempo
histórico explicitamente datado.
A idéia de que Os Homens dos Pés Redondos retoma múltiplos
aspectos da realidade portuguesa da década de 60 – os últimos anos do
governo de Antônio de Oliveira Salazar – encontra apoio também noutras
declarações do escritor, tais como:
Tiro meus livros de personagens que conheci na vida real, não planejo nada.
[República nº 40, Fevereiro de 2000].
O que eu busco é isso: fazer um texto que seja o mais contemporâneo
possível, inserindo numa realidade política, social, física e humana e
também nas geografias física e humana.
[O Popular, Goiânia, 3 de Julho de 2001].
O título do romance – espécie de cartão de visita metafórico da
humanidade cuja história está nele contada – mereceu do autor uma
explicação que, mais uma vez, vinculada a obra ao universo do Portugal
salazarista:
No meu primeiro dia lá [Lisboa, 25 de Junho de 1965],
sentado à mesa de um café, passei a observar os homens que iam e vinham
pela calçada, dando voltas no quarteirão. Achei que eles tinham os pés
redondos”. O título estava achado.
[Entrevista concedida a Heloísa Buarque de Holanda, 16 de Janeiro de 2003].
Homens e mulheres de pés redondos, as criaturas de Antônio Torres
adquirem, com tal qualificação, marcas simbólicas do << círculo
>>. Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant,
este símbolo fundamental consubstancia, entre outras, noções de
<< totalidade indivisa >>, << ausência de distinção
>>, << movimento imutável, sem começo ou fim e sem
variações >>. Tais significações ganham concretude no romance, na
medida em que as suas personagens – que, por metonímia, formam um
painel da sociedade portuguesa ficcionalizada pelo escritor baiano –
vivem num mundo fechado, sem escapatória, girando sem parar em torno
das suas frustrações, dos seus medos e da sua solidão, como adiante
será demonstrado.
A idéia da construção, em Os Homens dos Pés Redondos, de uma
imagem negativa, depreciativa da sociedade portuguesa do período
salarazista é ainda reforçada pela presença na sua abertura de duas
epígrafes extraídas de poemas de dois renomados escritores portugueses
do século XX:
Fernando Pessoa
Seus três anéis irreversíveis são
a tristeza, a desgraça, a solidão.
e Alexandre O’Neil
E cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos
Sim,
a ratos
Manifestações líricas do sujeito poético, tais textos expressam a
visão de mundo de seus criadores e se reportam, certamente, ao espaço
real das suas vivências. Postos em relação com o romance de Antônio
Torres, os versos de Fernando Pessoa parecem apontar seja para a
infelicidade dos seres que habitam o universo construído na narrativa,
seja para a imutabilidade do seu destino, ao passo que Alexandre O’Neil
podem sugerir a degradação a que eles são conduzidos.
Dentre as inúmeras concretizações das idéias formuladas nas epígrafes que é possível encontrar em Os Homens dos Pés Redondos,
vejam-se quer a história de Jorge Tunhas, um jovem médico que,
mandado, na saída da Faculdade, para a luta nas colônias do Ultramar,
recebe, no regresso, a oferta do comando dum destacamento na mesma
região e se desespera, porque sabe não poder recusar, já que o vão
“arrastar na marra” (p. 98), quer o episódio do << sapo >>
que atormenta Manuel Soares de Jesus, interrogando-o acerca das suas
opiniões sobre a guerra na Terra Negra (p. 51 e seguintes), quer ainda o
do sonho dessa personagem com uma prostituta que, transformada em
vaca, lhe dá um coice no exato momento em que deveria atingir o orgasmo
(p. 49-51).
Em Os Homens dos Pés Redondos, a história se passa num
território chamado Ibéria – disfarce que mais revela do que oculta a
sua verdadeira identidade, pois tudo na narrativa aponta para o país
real: a pequena extensão territorial, o regime ditatorial, a censura, a
tortura, o medo, o cerceamento da intelectualidade, a guerra para
guardar a posse das colônias africanas, a economia rural quase
escravocrata, o desenvolvimento do capitalismo urbano, a exploração e a
miséria do povo, a massificação produzida pela publicidade, o grande
empenho na atividade turística, a presença muito forte do catolicismo e
do clero, a mentalidade provinciana e preconceituosa, os modernos
costumes citadinos.
Sem perspectivas de futuro, os habitantes desse mundo fictício estão voltados para os tempos remotos em que a:
Ibéria produziu um homem chamado Dom Afonso, o pai da pátria
[,] que com uma única mão sustentava uma espada de 80 quilos [e]
esculhambou os mouros a pedradas e azeite quente (p. 11).
Esse mítico passado nacional não esconde minimamente figura e
episódios famosos das origens de Portugal, assim como ocultam pouco a
real ditadura de Salazar, a caricatura bem mais grotesca de El-Rey e a
cena em que ela aparece,
– embora só da cintura para cima -, não apenas para mostrar o
timbre exato da sua voz, ou a cor esmaecida de seu rosto comprido e
magro, um rosto de quem passou 84 anos enclausurado num mosteiro, sem
nunca ter visto a luz do sol (p. 171),
mas sobretudo para provar que estava vivo e que “era ainda e sempre o
rei de todos, e não um simples presidente, como estava escrito na
Constituição do Estado Novo, que ele próprio fundara havia quarenta anos
(id. ib.).
Toda a caracterização de El-Rey e os acontecimentos em que ele está
envolvido são, sem sombra de duvida, recriações inspiradas em dados e
fatos da realidade portuguesa daquela época, como bem o comprova a
seguinte passagem:
Tratava-se de um imperador antigo e antiquado, que não dava
entrevistas nem festas, não tinha mulher nem filhos e nem amigos, e
também não comparecia à inauguração de nenhuma obra pública. Para isso,
contava com seus ministros e seus deputados, todos filiados a um único
partido, o partido do rei. Eram eles quem se incubiam de enviar uma
frota de ônibus às cidades do interior, para angariar a platéia
necessária para cada manifestação pública. Iam de cidade em cidade
oferecendo transporte e comida de graça para quem quisesse fazer um
passeio até a capital, a convite de El-Rey. (p. 171-2)
Se bem que a Ibéria ganhe, com mais freqüência, formas concretas em
espaços não localizados numa geografia precisa, algumas cenas do
romance se passam em locais cujas designações apontam inequivocamente
para o território português e, em particular, para o portuense.
Reportam-se, por exemplo, à cidade do Porto, os nomes do bairro de
Miragaia, das ruas Bonjardim e Santa Catarina, do Teatro Sá da
Bandeira, do café Belas-Artes e se prendem ao universo mais amplo de
Portugal os de Rio D’Onor, Cova Piedade [sic], Xira. Por sua vez,
designações e referentes, tais como “Terra Crioula”, “Terra Negra”,
“região de Napala”, “ilhota […] no calcanhar de Mao Tse-tung”, “boca
de entrada da China”, mal disfarçam os nomes de espaços que estavam ou
estiveram na dependência de Portugal.
Por outro lado, Ibéria é também o nome dado a uma personagem feminina de Os Homens dos Pés Redondos,
que surge em configurações diversas, mas sempre com conotações mais ou
menos aviltantes. Ela se apresenta ora como uma prostituta gorda, velha
e doente, ora como uma grande dama, cujos salões se abrem para receber
o Imperador da Terra Crioula, que se pretende venha a entrar na luta
contra a Terra Negra, ora como uma guia de turismo, radiante por ter
tido a oportunidade de oferecer ao seu grupo o espetáculo, que esses
turistas muito apreciam, da repressão e da miséria nacionais. Em
qualquer dos casos, essa mulher deve ser vista como uma alegoria de
Portugal, uma mátria conservadora e degenerada, tal qual revelam os
fragmentos abaixo-transcritos:
Nos braços da Ibéria eu sou mais homem. Um prato de sopa, um
prato de peixe e outro de carne, que vem logo a seguir. Durante a
sopa, beba vinho tinto. (Ah, é maravilhoso.) Peixe só combina com vinho
branco. Volte ao vinho tinto no prato de carne. Depois, vamos às
frutas, de toda espécie e qualidade (Já viu ameixas mais bonitas? E
cerejas melhores do que as nossas? Gosta do melão? Ah, não. Não e não.
Experimente estas uvas. São deliciosas. Ou prefere uma maça. Como
queira. Sirva-se a seu gosto). Chegou a hora do cafezinho. Aceita um
brandy? Uma aguardente velha. Safra de 1952. Estupenda. (p. 126)
Ibéria: eu vim seguindo as cores dos teus cartões-postais.
“Venha tomar um banho de cultura, querido, venha” – foi o que ela me
disse abrindo as pernas. Quando dei por mim, estava crivado com uma
gonorréia. “Eu sou a beleza, menino, eu sou uma flor” – agora ela me
olha como se eu fosse uma criança. “Teus tataravós e os tataravós dos
teus tataravós me amaram muito”.
[…] Essa guerra esta me levando os últimos fios de cabelo.
[…] Não vê que aquela negrada ignorante não tem a menor condição de
tomar conta de um continente? Aquilo ali é um continente. Que nós temos
que civilizar. (pp. 124-125).
Em conformidade com a real sociedade portuguesa da época, os três
pilares corroídos da Ibéria são Deus, Pátria e Família, que se
consubstanciam de forma variada na matéria narrativa dos diversos
episódios do romance. Neles se encontram situações que mostram quer uma
Igreja hipócrita, corrupta e alienada dos problemas do seu rebanho,
quer um Estado autoritário e vigilante, que explora, tortura, mata os
cidadãos ou os manda para a morte na África, ode a sua missão
civilizadora apenas mascara a defesa dos interesses da classe
dominante, quer ainda a desagregação familiar, manifesta num mundo de
homens e mulheres angustiados, que sofrem devido ao desamor, à solidão,
ao medo, aos maus-tratos, à miséria, a que buscam consolo no álcool,
nas prostitutas ou em amantes.
Por conseguinte, o universo descrito no romance é povoado por criaturas tristes, como os homens que se concentram no Old King
– café que pode ser visto também como figuração metonímica de
Portugal, pois a rígida separação de classes nos seus dois salões, não
anula a identidade substancial e a infelicidade mais profunda de seus
freqüentadores, “todos […] homens sem mulheres, porque as mães de
seus filhos não contam” (p. 1). No entanto, as mulheres parecem ser os
únicos seres capazes de achar saídas, ainda que precárias para o
círculo infernal em que todos estão presos. Veja-se como o fazem Lícia
Abramo, a atriz que afronta abertamente a preconceituosa sociedade a
que pertence, ou Maria Manuela, cuja liberdade (ou libertinagem) se
protege com uma máscara de bom comportamento, de “moça de família”.
Predominam, porém, figuras femininas resignadas e exploradas, tal qual
as:
Mulheres de preto [que], com enormes cestos sobre as
cabeças, a caminho do mercado, cruzam com outras mulheres de preto
(pernas cabeludas pudicamente resguardadas dentro de meias pretas), a
caminho das igrejas, que cruzam com outras, ajoelhadas rente ao
meio-fio da calçada, d[ando] brilho nas rodas importadas de seus
patrões, enquanto muitas outras mulheres começam a dobrar a espinha para
esfregar as entradas dos edifícios. (p. 37)
Rebeldes ou conformadas, as personagens femininas não ocupam, contudo, o primeiro plano da história contada em Os Homens dos Pés Redondos.
Fugindo da estruturação linear, das situações bem delineadas, da
visão narrativa unívoca, e misturando numa dinâmica atordoante realismo
e manifestações oníricas, o romance de Antônio Torres não constrói um
drama centralizado numa personagem principal. Ao contrário, oferece ao
leitor uma série de episódios mais ou menos autônomos que, no seu
conjunto, formam um abrangente painel de uma coletividade cuja
homologia com a sociedade portuguesa do período salazarista vem sendo
demonstrada. É, todavia, possível encontrar um pequeno número de
protagonistas, ou melhor, de figuras que se destacam pela sua maior
presença na narrativa, pela importância fundamental das suas ações e
pela sua significação enquanto representantes de cada uma das classes
que formam o espectro da sociedade hierarquicamente organizada que o
romance descreve. Assim sendo, três personagens masculinas se
sobrelevam em Os Homens dos Pés Redondos: Manuel Soares de Jesus, Adelino Alves e o banqueiro Fernandes.
Personagem nuclear do Livro I (o maior dos três em que a obra esta
dividida) e figura destacada do Livro III (que é o mais breve), Manuel
Soares de Jesus pertence à classe média baixa. Filho de uma beata com
padre da sua paróquia, ele ganha vida como desenhador “de cartazetes e
bandeirolas para a freguesia dos comes e bebes” (p. 19) do banqueiro
Fernandes. Mas seu salário é insuficiente para manter dignamente a
mulher e os cinco filhos. A notícia de que passará a ser chefiado por
Adelino Alves o conduz à idéia fixa de matá-lo, sem que lhe passe pela
consciência que o seu crime é uma tentativa inútil de acabar com as
frustrações de uma vida inteira:
amanhã ia ser o seu dia de glória, porque ia matar um homem.
[…]
Voltou a meter a mão no bolso, para sentir a tesoura ainda
uma vez mais. Ao acariciá-la teve a sensação de estar deslizando os
dedos entra as tripas do velho Alves.
[…]
Nove anos de casa, para isso. Um velho caindo aos pedaços ia
dizer se o que ele fazia prestava ou não. […] Não, não iria submeter
o seu trabalho à opinião daquele homem que nunca vira antes. (pp. 12, 16, 18-19)
Um revoltado que não soube direciona o seu ódio, a sua rebeldia, De
Jesus não chega a ultrapassar a sua condição de miserável, nem a vencer
a alienação, dado que anda a maior parte do tempo bêbado e em delírios.
Estes o atiram para o passado ou para a degradação do mundo animal,
numa luta inglória com sapos, galos, porcos, vacas, cobras e ratos. É,
no entanto, capaz de escrever uma carta ao Papa, com a finalidade de
fazê-lo desistir de visitar o país, cuja imagem pinta com cores negras:
Falou nas perseguições que alguns membros da Igreja vinham
sofrendo, falou da guerra da Terra Negras, dos salários e da carestia,
acrescentando: “Neste país, metade do povo pede esmola. A outra metade
joga no toto-bola”. (p. 42).
Fracassados os seus dois planos, De Jesus rouba um bispo em cuja
casa consegue ser recebido e tenta fazer o mesmo a Lena, esposa de
Adelino Alves, mas no fim da história nada muda na sua vida. Anti-herói
de pés redondos, ele se mantém no sofrimento e no delírio:
Eu ia de casa para o trabalho e já estava no ponto do
ônibus. Vi um sujeito atrás de mim, mas pensei tratar-se de um
passageiro qualquer, também à espera do mesmo ônibus. Assim que o
ônibus chegou e eu pus o pé na porta, senti uma mão me agarrando.
Tentei me livrar da mão que me puxava, sem êxito. Acabei caindo, o
ônibus arrancou, e o curioso é que não vi quem foi que me puxou. Todos
os dias, a todo instante, me acontece uma coisa mais ou menos parecida e
que me deixa intranqüilo e pouco seguro nas pernas. Como a história
daquele sapo.
[…]
O sapo já tinha tirado o gravador do bolso e se preparava
para me mostrar a fita na qual havia registrado todas as minhas
palavras pronunciadas durante o dia. Desta vez fui mais longe, meu
velho. Registrei também os seus pensamentos. Quanto aos seus gestos e
movimentos, estão muito bem guardados, numa outra fita. “Tire esse sapo
daí, gritei de ovo, e minha mulher, finalmente, rolou para o outro
lado da cama, me deixando dormir mais um pouco, sem aquele peso todo
sobre o meu corpo. (pp. 285-286).
Igualmente consciente das mazelas do país, o escritor Adelino Alves,
cujas obras estão traduzidas em muitos países, é também personagem de
primeira linha nos mesmos Livros em que sobressai a figura de Manuel
Soares de Jesus, que, no entanto, o toma como seu antagonista, por
pensar que ele “era a voz do patrão, que, por sua vez, era a voz do
Governo” (p. 17). Mas o velho Alves é, na realidade, um intelectual
cerceado, que já sofreu oito anos de prisão e tortura por fazer parte
da diretoria da Sociedade Ibérica de Escritores. A isto seguiu-se uma
fase de miséria da qual saiu, quando aceitou a degradação de servir aos
poderosos e corruptos. Era, no momento, chefe do departamento de
produção da firma Fernandes & Fernandes, Negócios Bancários e
remoia seus fantasmas solitariamente bebendo, fumando e ouvindo música.
Outras vezes tomava um remédio para o fígado preparado por Maria
Helena, sua mulher, que sabia que ele ia “arrastando a sua cruz,
carregando-a até o fim, se arrastando, se arrastando, mas resistindo.
Como se fosse de ferro” (p. 72).
Embora Adelino Alves contasse entre os seus trabalhos para o governo um utilíssimo cartaz – que dizia: Quem bebe vinho dá o pão a um milhão de ibéricos (p.
105) – continuava vigente a recusa da reedição de seus escritos.
Considerado, sem dúvida, ameaçador para o regime, ele acaba por ser de
novo preso e torturado:
É possível que desta vez eu morra na prisão. O que tanto
pode levar anos e anos, como pode acontecer no próximo minuto. Aqui
dentro, no fundo de um furgão escuro e trancado, antevejo o momento em
que eles parem o carro e me mandem descer para a execução. Alguma coisa
me diz que daqui a pouco poderei estar morto.
[…]
Não há heróis nem covardes. Estamos é sendo arrastados para
uma irremediável loucura. Penso isso ao me lembrar, com gratidão, de um
antigo companheiro de cela, muitos anos atrás. Ele possuía uma quase
divina força moral, e acho que foi graças a essa estranha força que eu
também não sucumbi, não me enterrei de vez. (p. 109-110)
Nessa nova prisão, a inexistência de um companheiro semelhante ao
que tivera no passado, os anos a mais ou as torturas levam finalmente o
escritor à loucura e a sua história termina numa casa de saúde, ou
melhor, na << nave dos loucos >>:
Os internos abrem a passagem. Pi, pi, pi, pi. Vru, Vru, Vruuuuuu. Alves passa entre eles, como se tivesse um volante nas mãos. Passa correndo e fazendo curvas. Vez por outra anda de ré. (pp. 277-278)
Destino em todos os aspectos diferentes tem o banqueiro Fernandes –
personagem a volta da qual está construído o Livro II, mas presente
também nos outros dois. Para ele “este velho mundo burguês tem os seus
encantos” (p. 113) e “o mal d[o] país é que o povo é preguiçoso” (p.
155). Consta, todavia, que chegou rapidamente ao topo da pirâmide
social graças a um enriquecimento obtido em negócios escusos
(contrabando de ouro e de moedas estrangeiras) e aos produtos
africanos, pois como Ibéria explica ao Estrangeiro: “O algodão de lá é
todo dele, e alguns poços de petróleo e…” (p. 125). Daí resulta ser
ele um dos maiores sustentáculos da guerra no ultramar, se bem que (ou
talvez por isso mesmo) dela consiga livrar o seu filho.
Além de impedir a mobilização de Júnior para as Colônias Fernandes
tem força suficiente abafar, dentro da Ibéria, o escândalo da sua
participação em orgias de velhos ricos com mocinhas em flor – divulgado
contudo no Times, de Londres – mas parece não ter meios para
localizar o paradeiro de Adelino Alves e de evitar o seu trágico
destino. Em conversa com este seu funcionário, o banqueiro não deixa,
contudo, de se vangloriar pelo fato de já ter tido os seus dias de
revolta e de a sua “Companhia est[ar] cheia de gente de canhota” (p.
111). Mas, se acolhe “jovens idealistas, jovens esquerdistas […]
rapazes que saíram da Universidade e foram para a guerra e voltaram e
estão por aí meio sonâmbulos” (p. 112). É porque sabe que eles “têm uma
garra terrível” e que a pode aproveitar em termos de produtividade.
Para isto é necessário apenas que os responsáveis pelos diversos
setores, entre os quais o próprio Alves, procurem “instigar-lhes o
talento, dar-lhes a sensação de utilidade e de que têm um caminho pela
frente” (id. ib.).
Omnipotente e omnipresente, o banqueiro Fernandes deseja, em dado
momento, criar ele mesmo o slogan publicitário de um dos seus produtos.
Seus empregados nas fábricas se perfilam como se ele fosse um general
quando por lá aparece e só falta lhe beijarem os pés. Para Dona Santa,
que trabalha na sua fazenda, Fernandes “era o seu chefe ou talvez até
seu pai, muito possivelmente o seu homem – e com toda certeza o seu
senhor” (p. 189), enquanto, para sua secretária no Banco, talvez não
passe dum amante não-escolhido, mas a quem tem de servir todos os dias
por volta das cinco da tarde.
O poderoso banqueiro não consegue, porém, despertar o interesse dos
filhos pela fazenda que possui na terra onde nasceu pobre e que, além
de ser uma boa fonte de lucro, é o seu maior orgulho e o lugar que lhe
dá mais prazer na vida:
O homem descalçou as botas e pisou na bosta quente da vaca
[…] Parecia experimentar um delicioso e estranho prazer e era até
possível adivinhar um sorriso em seu rosto duro. […] Mexia com os pés
como quem marca o ritmo de uma música. (p. 179).
E talvez não seja verdadeiramente feliz. Não parece ser muito
estimado pela família e pelos amigos que recebe na sua fazenda. A
mulher lhe recusa o carinho e prefere passar horas e horas numa mesa de
jogo com os hóspedes do momento. Perdeu a amizade do irmão ficando com
um sócio a menos nas empresas e um rombo no cofre. Não consegue
orientar os caminhos pelos quais a filha envereda. Mas os mais doloroso
é a sua péssima relação com o filho que rejeita ser como ele, que faz
tudo para chateá-lo e, como não descobre outro caminho para se
libertar, busca na morte uma saída.
Outra personagem da maior importância no romance é o Estrangeiro,
cujo nome sugere a partida tratar-se de um ser estranho, diferente,
fora do sistema, conseqüentemente alguém que não tem os pés redondos e,
por isto, é capaz de analisar e criticar com maior distanciamento e
rigor o universo de que os demais não conseguem escapar por causa dos
seus pés redondos. Entretanto, ele “queria mesmo era [se] dar bem com
todo mundo, dizer boas palavras a quem as merecesse” (p. 211), mas só é
bem acolhido pelos mais humildes e pelos menos ajustados: Emilio, De
Jesus (que considera seus melhores amigos), seu Rodriguez, o vendedor
do jornal A República, Lena, Manuela, Júnior.
Prostituída, a velha Ibéria parece aceitá-lo apenas porque ele lhe
paga em dólares e ela precisa muito de dinheiro. Ibéria não hesita,
contudo, em confessar que no “sente prazer em levar uns bêbados bem
vagabundos, fedorentos e demorados que nem [ele] para um sórdido quaro
de hotel, às quatro da manhã” (p. 125). Explica, outrossim, que seus
maiores inimigos não são os negros que lutam pela independência na
África e sim “os estrangeiros […] que espalham pelo mundo um monte de
mentiras sobre [ela]” (id. ib.).
Por sua vez, o banqueiro Fernandes, ainda que tenha passado a chefia
da sua agência de publicidade ao Estrangeiro, quando Alves foi preso e
o tenha recebido com cordialidade na sua fazenda, nos feriados da
Semana Santa, não confia inteiramente nele e deduz que é um aventureiro,
depois de ter mandado fazer uma sindicância para saber se ele havia
saído de seu país por motivos que o impediriam de contratá-lo. No fecho
da narrativa, Fernandes presta um depoimento em que demonstra não o
apreciar verdadeiramente, pois afirma que se interessou apenas pela sua
capacidade de trabalho e que pode substituí-lo com facilidade na sua
folha de pagamentos. Declara, outrossim, que o jovem publicitário é um
ressentido, que veio de baixo e não pode compreender os ricos. Acusa-o,
por fim, de ter corrompido os seus filhos com “suas idéias malsãs”,
acreditando inclusive “que foi ele quem levou o Júnior ao suicídio”
(p.284).
Quanto ao próprio Estrangeiro, autodefine-se como incongruente (p.
124), barroco e extravagante (p. 278). Com efeito, ele ora parece
satisfeito com a vida que leva, ora se mostra melancólico e saudoso de
outros tempos e lugares (p. 204-5). Sexualmente insaciável, revela-se,
porém instável nas suas ligações amorosas, pois troca constantemente de
companheira e jamais se mostra inteiramente feliz. Três das suas
parceiras temporárias engravidaram e abortaram, por não se sentirem
seguras na relação que mantinham com ele. A quarta – Maria Helena,
esposa de Adelino Alves – conta-lhe que está grávida, mas vai fazer um
aborto, porque ele não lhe dá um mínimo de assistência. Tendo-o como um
“cara desleal” que só a procura quando está bêbado e que não telefona
antes por pensar que ela estará compre pronta para o acolher, Lena
afirma ainda saber que ele anda ao mesmo tempo com amigas suas. E, de
fato – apesar de não se poder datar com precisão os acontecimentos
narrados – o Estrangeiro, por esta altura, estava simultaneamente
envolvido com Maria Manuela, filha do seu patrão, o banqueiro
Fernandes. No entanto esta ligação não é levada a sério por Júnior,
irmão de Manuela, que sabe que também ela “vive trocando de homem” (p.
207).
Outra relação afetiva mal resolvida pelo Estrangeiro é a que o liga
pai, cuja lembrança não pára de atormentá-lo. Numa noite em que a febre
o leva ao delírio, avista-o numa quitanda miserável, onde não ganharia o
suficiente para sobreviver. Tenta fugir-lhe, mas o pai o reconhece e
acusa de se envergonhar com a sua pobreza. Cheio de culpas que não
quer, contudo, assumir ele pensa unicamente em entrar no primeiro
botequim que lhe apareça pela frente, para beber até estourar o fígado
(p. 146-8).
Em certos aspectos, as vivências do Estrangeiro se confundem com as
do próprio autor. Nesse caso, ressaltam o trabalho temporário em
Portugal com redator de publicidade e o nascimento do Junco, povoado no
interior do Estado da Bahia, hoje transformado na cidade de Sátiro
Dias. Por outro lado, o escritor se revela, em dado momento, hóspede da
fazenda do banqueiro Fernandes e se apresenta a meditar, durante o
café da manhã, sobre a escrita do romance, o desenho das personagens e o
seguimento a dar à história:
O romancista, diante do papel e com muito espaço ainda por
preencher, tenta recompor um banqueiro sentado à mesa de sua fazenda,
para a primeira refeição do dia. Ele estava calado? Pensativo? Nervoso?
Arrume a sua trouxa: engano, desenganos, sonhos, frustrações. Ponha no
papel o melhor e o pior de tudo isso, depois carregue o peso da sua
própria trouxa. O que é que vai acontecer com o filho do homem?
Morrerá? Não morrerá. (p. 241).
Em contrapartida, o Estrangeiro, pouco ou nada vinculado ao universo
pelo qual transita, assume, como já foi referido, posicionamentos
fortemente críticos, manifestos tanto em palavras e pensamentos, como
em ações, e que têm de ser lidos como postura autoral.
A idéia de que o autor se manifesta na narrativa metamorfoseado na
figura do Estrangeiro e de que ela está impregnada do seu testemunho
pessoal é corroborado ainda pelo fato de o Estrangeiro ser a personagem
que, com mais freqüência, se encarrega da narração e de ele funcionar
também como elemento de ligação entre as demais personagens, que,
pertencendo a mundo distintos econômica e socialmente, estão rigidamente
separadas. Além disso, o estrangeiro (e, por conseguinte, o próprio
Antônio Torres) se confunde algumas vezes com outras personagens,
englobando, portanto, na sua figuração personalidades diferentes ou
mesmo antagônicas, entre as quais sobrelevam as de Adelino Alves, De
Jesus e Júnior. Como já foi observado pela crítica, ele deve ser visto
como uma só pessoa colocada em circunstâncias diversas, mas dentro de
um mesmo mundo de tristeza, desgraça, solidão.
O conteúdo social e político de que estão impregnadas as personagens
e a ação do romance não prejudica, como se procurou mostrar, o plano
existencial e humano, uma vez que a narrativa, de grande amplitude,
funde admiravelmente os conflitos pessoais com a atuação opressora do
regime. Primeiro e até agora único romance brasileiro a focalizar a
crise que Portugal enfrentou nos últimos anos do regime salarazarista, Os Homens dos Pés Redondos
pode ser visto, em simultâneo, como uma representação mascarada do
Brasil da mesma época, também ele submetido a um governo ditatorial,
imposto, neste caso, pelos militares que, em 1964, derrubaram o
presidente em exercício e revogaram a Constituição democrática do país.
Essa aproximação é legitimada não só por inúmeras componentes do
universo criado, mas ainda – ou sobretudo – pela expressão lingüística e
estilística das personagens e do narrador-autor, que optam
sistematicamente por formas do linguajar brasileiro, em detrimento dos
modos de falar próprios de Portugal, que seriam obrigatórios num
romance de realismo mais restrito. Se bem que a velha Ibéria se refira
em dado momete à fala supostamente diferente do Estrangeiro – ao fazer o
seguinte comentário:
Gozado, ele é estrangeiro, mas ainda assim eu entendo o que ele fala.
(p. 124).
– o que, na verdade, ocorre em todo o romance é uma ausência de
fronteiras lingüísticas entre Portugal e Brasil, evidenciada quer nas
falas das diversas personagens, quer nos seus monólogos interiores, que
funcionam como discursos de narradores internos. Do primeiro tipo, é
tanto a conversa entre De Jesus e um contínuo, a respeito do filho do
dono da empresa onde trabalham –
– O patrão mais novo. É um cara legal.
– Deixa de ser besta.
– Tou falando sério. O filho do patrão é um bacana. Não sai de uma gafieira.
– Por isto você precisa lamber o rabo dele?
– Você está é com inveja.
– Vê se me respeita. (p. 20)
– como a caracterização, que Júnior faz para o Estrangeiro, de um
dos hóspedes do pai, na fazenda onde estão passando a Semana Santa:
Esse cara é um mentiroso sem vergonha. Papai só suporta ele
pra não deixar a velha chateada. Já fez tudo pra se livrar desse
ranheta. È um puxa-saco e um invejoso […] Vê como a gente vive
gozando ele, a toda hora? Ainda assim não se manca. É desses
sanguessugas bem insistentes. Pra te dizer a verdade, toda essa
parentada só vem pra cá nos encher o saco. (p. 200).
No segundo tipo, encaixa-se o monólogo interior de Zé das Minhocas,
que reflete sobre o neto de seu cunhado, o banqueiro Fernandes:
Sacaninha. Coisa que preste é que não vai dar.
[…]
Tudo o que ele quer, o avô dá. […] E as outras que se
virem. Que passem o tempo todo puxando o saco desse garoto levado da
breca. […] Menino danado pra lá, menino sabido pra cá. Um cheiro, uma
lindeza, um amor. E lá vai ele quebrando tudo. (p. 195).
Espalhados por todo o romance vocábulos, mas também noções e
realidades próprias da sociedade brasileira transitam para o universo
da Ibéria e se misturam com alguns poucos termos e objetos dela
característicos. Dentre as numerosíssimas intromissões brasileiras no
espaço ibérico vejam-se, por exemplo: o bonde (p.11), a frota ou o ponto de ônibus (p. 171 e 220), a boléia de caminhão (p. 55), a carona (p. 243), o estepe (p. 114), o posto de gasolina (p .217), os paus-de-arara (p. 98), o botequim ou boteco (p. 21 e 43), a boate ou o inferninho (p. 132 e 144), a zona ou puteiros (p. 49 e 21), as favelas (p. 27), o terreiro de macumba (p. 252), a quitanda (p. 146), a roça (p. 146), a biboca (p.185), as [paredes de] sopapo (p. 185), a latrina ou privada (p. 28 e 127), a grama (p. 190), o capim-gordura ou –de-burro (p. 50 e 196), a piaba (p. 194), a rolinha fogo-apagou (p. 201), os pamonhas (p. 186), o pileque (p. 70), o [final do] expediente (p.1 37), a carteira assinada (p. 226), o chororô (p. 54), o pagode (p. 214), a seresta (p. 214), a veadagem (p. 108), o mutirão (p. 187), o papo (p. 164), a grama ou prata (p. 16 e 46), o pisante (p. 38).
Infindáveis são os verbos, os adjetivos, os substantivos que,
encontrados ao longo da narrativa e utilizados por quase todas as
personagens, bem como pelo narrador-autor, têm um sentido peculiar na
linguagem coloquial brasileira ou que inexistem no Português europeu. De
exemplo sirvam: esculhambar (p.11), luxar (p. 57), espinafrar (p. 77), apagar ou abotoar para sempre (p. 91), aterrisar (p. 102), bronquear (p. 134 e 190), curtir (p. 159), xeretar (p. 185), trepar (p. 218), bolar (p. 270), manjada (p.20), bacana (p. 20), legal (p. 20), esnobação (p. 31), uma pilha (p. 236), o coisa-ruim (p. 239), puta frescura (p. 227), em cana (p. 26), na marra (p. 98), meia-sola (p. 144), bem quilometrada (p. 144), puxa-saco (p. 200).
Personagens e narrador externo valem-se,outrossim, de numerosas e
interessantes formas de expressão e construções tipicamente
brasileiras, entre as quis se incluem: cadê (p. 61), vambora (p. 222), não é mole (), cair fora (p. 13), dar no pé (p. 165), estar duro (p. 14), dar duro (p. 155 e 164), bater perna (p. 38), dar na telha (p. 41), fazer um neném (p. 49), encher a cara (p. 57, 161), descascar o abacaxi (p. 76), molhar a mão (p. 83), quebrar o galho (p. 84, 144), morder uma nota (p.84), nascer com a bunda pra lua (p. 113), quebrar a cara (p. 141), afogar a crista do galo (p. 144), o pau vai comer (p. 151), entrar pelo cano (p. 154), metida a sebo (p. 165), dar banho em minhoca (p. 193), limpar a barra (p. 215), devolver a bola (p. 215), esfolar o couro (p. 216), de cara cheia (p. 217), fundir a cuca (p. 218), dar um jeito (p. 219), pegar a estrada (p. 226), dar uma andada (p. 240), sentir o clima (p. 240), ou vai ou racha (p. 247), chega de papo (p. 272), enfiar peido em cordão (p. 27), deixar de onda (p. 275).
Predominantemente brasileiras são igualmente as formas de tratamento e designações encontradas no romance, tais como: meu chapa (p. 128), cara (p. 19), nego/a (p. 20 e 129), bicho (p. 15), sinhô (p. 188) mana (p. 196), crioula (p. 86), esse pinta (p. 20), o homem (p. 19), os tiras (p. 27), os bacanas (p. 86), os federais (p. 101), piranhas (p. 130), leão-de-chácara (p. 174), babá (p. 200), grã-fino (p. 225). A isto se soma a constante mistura do tu e do você,
que é sem dúvida uma das manifestações mais típicas de linguagem
coloquial brasileira dos nossos dias e que está bem representada nesse
fragmento do diálogo das empregadas da família e/ou hóspedes do
banqueiro Fernandes:
– È, mas eles te enchem o saco aí o dia todo e você engole tudo calada.
– Eles falam que você é muito respondona. Tu é fogo, mulher. (p.227).
O discurso romanesco inclui, como não poderia deixar de acontecer, o
mais conhecido caso de brasileirismo referente ao emprego de verbos da
Língua Portuguesa: o do verbo ter em lugar de haver. Inclui, igualmente, o emprego, também vulgaríssimo no Brasil, da preposição em
com verbos de movimento, assim como a próclise dos pronomes átonos, em
particular no início de frases ou de orações, contrariando o norma
portuguesa.
Embora Antônio Torres tenha explicado que Os Homens dos Pés Redondos
é uma obra de juventude e a considere o mais irregular de seus livros,
o sucesso de eu goza junto do público e da crítica, desde a sua
primeira edição, não permite secundarizá-la. O romance é complicado e
polêmico, mas tem um interesse incontestável por se tratar seja de um
retrato bem tirado de Portugal, com câmera dum escritor brasileiro que
conheceu de perto a crise instalada naquele “doce país fascista, depois
de dois mil anos de cristianismo e muitos séculos de Inquisição” (p.
131), seja de uma máscara bem ajustada à realidade brasileira da época
da sua escrita, seja ainda de uma representação da miséria e
desumanização do homem contemporâneo, agrilhoado à engrenagem de uma
organização social opressora e arbitrária, seja enfim de uma
demonstração do absurdo da condição humana independentemente de épocas e
regimes.
Antônio Torres, Os Homens dos Pés Redondos, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1973; citado neste trabalho através da terceira edição: Rio de Janeiro, Record, 1999.
Na entrevista que deu a Giovanni Ricciardi (in Escreve. Origem, manutenção, ideologia, Bari, Libreria Universitaria, 1988), Antônio Torres afirmou: “Os Homens dos Pés Redondos, basicamente, reflete a minha experiência portuguesa” (p. 290).
Dictionnaire dês Symboles, Paris, Seghers, 1973, pp. 302-309.
A Editora Record vem reeditando a obra do baiano Antônio Torres. Já nas livrarias podemos reencontrar Balada da InfânciaPerdida e este Os Homens dos Pés Redondos,
que foi publicado pela primeira vez em 1973, quando se tornou best
seller. Antônio Torres tem uma obra já com 11 títulos, vários deles
traduzidos e premiados. Seus romances são devidamente reconhecidos e,
por tal, é acertada a resolução da editora em colocar outra vez ao
alcance do público o prazer de ler uma literatura escrita por um
ficcionista de “estatura incomum”, nas palavras de Jorge Amado. Os Homens dos Pés Redondos
conta uma história inesquecível pela quantidade de personagens
singulares vivendo casos ao mesmo tempo cheios de humor pela via da
ironia e desgraçados pelo que encerram em suas linhas trágicas. As
situações do romance não passam incólumes pelo leitor que se sentirá
obrigado a refletir e, assim, entender melhor, quem sabe, até a si
mesmo. Esta, por sinal, é uma marca da ficção de Torres, isto é, fazer
pensar, deter-se no texto para dele retirar-se com sensações novas.