O Centro visto sob a ótica de um autor baiano que nos revela a história e a evolução da região mais antiga do Rio de Janeiro. A visão do imigrante que pode se confundir com as primeiras impressões de um morador nascido na cidade. O Centro como interseção da própria história do Brasil.
“Amar é conhecer. ” (Érico Veríssimo)
A frase de Érico Veríssimo, citada em “O Centro das nossas desatenções” (de Antonio Torres, Ed. Record: 2015), define com precisão um sentimento que trago da infância, das minhas primeiras incursões guiadas por familiares às ruas do coração do Rio. Enquanto meu pai me carregava pela mão, marchando pela Rua da Alfândega, eu olhava assustado aquelas vielas estreitas, meu maior receio era que ele me soltasse e eu me perdesse naquele labirinto humano sem a referência do Minotauro. Uma sensação que durou até que a necessidade de trabalhar me levasse a mergulhar no Centro, perambulando na entusiasmada busca do primeiro emprego, rompendo aquelas ruelas como um arqueólogo destemido. Foi no papel de um Indiana Jones juvenil que descobri a Lapa, a Praça Mauá, a Saúde, Gamboa, Central, o Castelo, a Praça XV e o turbilhão humano que me fez amar toda essa região.
É uma coincidência que o livro do mestre Antônio Torres comece pela descrição do Aeroporto Santos Dumont. Justamente, no Santos Dumont, reside a minha recordação mais remota do contato com o Centro da Cidade. Criança ainda, me vi extasiado diante daquele aquário de vidro do Aeroporto, um helicóptero pousava na pista e meus olhos acompanhavam hipnotizados aquele balé de rodopios. O autor faz uma descrição sensorial do seu primeiro e breve contato com o Rio de Janeiro, um desfile de luz e cores que impressionam o imigrante. Talvez uma criança também veja as novidades com olhos de imigrante, olhos de desbravador. Da mesma forma que o escritor, guardei na memória primitiva a luz ofuscante e o azul opressor.
Em “O Centro das nossas desatenções”, Antônio Torres, como um velho amigo, nos pega pela mão e nos conduz, num passeio atemporal, pelos recantos, pelas igrejas, pelos becos, pelas pessoas e pela história do Rio. Uma excursão complexa, que pode ser lida num único fôlego, um livro de poucas páginas e denso como a Avenida Rio Branco.
É no Centro que, de imediato, nos deparamos com uma cidade de muitas faces. O pobre e o rico; o mendigo em trapos e o frajola do terno bem cortado; um passado em ruínas e o presente ansioso pelo futuro que o transforma incessante; a paisagem deslumbrante que nos convida à contemplação e a violência que intimida. Decifra-me ou te devoro, logo compreendemos que o Rio é um arrisque-se fascinante.
Sobrados centenários entre arranha-céus futuristas, à primeira vista parece que o velho e o novo conseguem conviver. No olhar mais atento, percebe-se que o presente que evolui empurra o passado à degradação, ao abandono. A cidade cresce em constantes revoluções urbanísticas, o que resta do museu a céu aberto vai se deteriorando, parindo guetos decadentes que se transformam em refúgio do sem-teto, dos viciados e trombadinhas. Os cenários em conflito na metrópole da desigualdade reforçam a fama internacional. É no Centro que está o Morro da Providência, a primeira favela do Rio, uma das marcas da nossa carnificina cotidiana. Porém, é no mesmo Centro que fica o Morro da Conceição, a Pedra do Sal, que faz a alegria musical de turistas e nativos.
O Centro da Cidade, de uma cidade que foi se afastando do mar pelos sucessivos aterros. Um Centro que escondeu suas belezas atrás das armações de concretos. A paisagem, porém, sobrevive.
Folheando esta obra de Antônio Torres, constatamos que o Rio dos primórdios, aquele dos índios, preferia os franceses aos lusitanos. Como se encontrassem a amizade com os franceses e se deparassem com a barbárie da colonização encarnada nos portugueses.
Com o avanço da leitura, me ocorreu uma inevitável comparação. O Rio foi sequestrado por um francês no século 18, seu nome era Duguay-Trouin, uma espécie de pirata que exigiu resgate para libertar a cidade. A história se refaz no século 21, só que agora o Rio, volta e meia, é refém de algum traficante da moda. Fernandinho Beira Mar, Playboy, Arafat, Nem da Rocinha, Matemático e um rosário de alcunhas destituídas de glamour e que entram para a galeria dos nossos tiranos pós-modernos.
Uma cidade que vislumbra o oceano e que em algumas ocasiões quis dar às costas ao mar. É o que conta, por exemplo, um capítulo do folclore da Candelária.
O Centro foi erguido em cima de um lençol freático que vai da Praça Mauá à Cinelândia. Um Centro ancorado que flutua, mas não navega. Um Centro de vielas estreitas que se escondem do Sol, o Centro das largas avenidas que servem como bigornas para o mesmo Sol. O caos do que não foi planejado, a sedução do improviso.
Abraçados ao autor, encontramos os grandes cronistas urbanos, Antônio Maria e João do Rio atravessam a nossa caminhada. Juntos redescobrimos o Beco das Cancelas e revivemos bares como o Bico Doce, na Rua Buenos Aires. Hoje, os bares da Buenos Aires e adjacências também são pontos das mulheres da vida, elas transbordam pela madrugada dos inúmeros bordeis que não param de proliferar pelas esquinas do pecado. Um Centro que tenta recuperar a sua vocação cultural, após décadas de abandono e da solidão noturna que faz contraste com o formigueiro corporativo que transita durante o dia.
Certamente, algum colega sensato irá me censurar pela ousadia de querer resenhar um livro de Antônio Torres. Peço que me perdoem, mas foi a leitura deliciosa, que fez reviver a minha própria jornada, a culpada de tamanha afronta intelectual. Ao terminar de percorrer todas as páginas, me lanço na óbvia conclusão: todas as histórias convergem para o Centro do Rio.