Uma fábula sobre a felicidade

Jornal do Brasil – Rio de Janeiro, 14 de junho de 1997.
Telmo Wambier

Dos sentimentos do ser humano a felicidade é a mais sutil. Encoberta pela ansiedade, pelo desejo, pela ambição, normalmente é percebida como tempo passado. Vivido. “éramos felizes e não sabíamos”. Porque costuma-se confundí-la com a satisfação do desejo, com a conquista, com a posse. Dificilmente é sentida como presente e separada do ter. O ser humano está fadado à miséria da insatisfação. E talvez por isso a coloque sempre como tempo futuro ou passado. Raramente no presente.

Cego pela ansiedade, presa da propaganda e do consumo, o homem caminha por sobre ela numa rua ensolarada sem dar por isso, engole-a sem sentir-lhe o sabor, confunde-a entre sons e cheiros. A percepção da felicidade em sua sutileza é privilégio de poucos. E entendê-la como possibilidade construída no minimalismo existencial, de menos ainda.

O Cachorro e o Lobo, a mais recente criação de Antônio Torres, é um romance com título de fábula, que na essência versa sobre isso. Ou uma fábula na forma de romance. Que conta de um “cachorro” que procura a felicidade. Imagina-a vagando entre as luzes da cidade grande, já que não a vê onde nasceu. Deixa a sua Junco, um vilarejo perdido nos confins da Bahia, “terra de filósofos e loucos”, e perde-se imaginário São Paulo- Paraná, a terra rica do sul, paraíso verde onde as chuvas são um perene mês de maio e que “fica pra lá do Vale AnhangabaÚ, do Viaduto do Chá”. é dos cachorros o tudo revirar, na busca curiosa da vida.

Retornar 20 anos depois para comemorar os 80 anos do pai, um velho e matreiro lobo solitário, que todos tomam por maluco e bêbado. é dos lobos a solidão e a territorialidade. E descobre ali, no silêncio da cidadezinha quieta, “enfeitada de arvores e antenas parabólicas, à espera do fim do mundo”, entre os fantasmas do passado e a nostalgia da lembrança, tudo que um ser humano precisa para ser feliz.

Ela não está no São Paulo-Paraná, com seus carros, luzes e civilização. Mas no jeito de se olhar as coisas. Devagar, reparando na grandeza que há nelas. No sol que filtra pela janela da tapera do pai e ilumina a ponta de um banco de madeira, na sombra de uma amendoeira contra o cimento do passeio da rua, no cheiro da macaxeira colhida na horta do fundo do quintal.

Nas três etapas de um dia que segue o curso do sol – manha, tarde, noite – o narrador revisita a infância, a paz, o silêncio do passado. Conversa com os seus fantasmas e redescobre a sábia ingenuidade do pai que só, livre da família, tem por companhia meia-dÚzia de galinhas, que ciscam mas não falam. LÚcido e feliz, não precisa da civilização mais que cigarros, fósforos e sal. Uma vida de poucas necessidades.

Como todo filho do lugar que vai para terra dos sonhos, é recebido com festa, como celebridade. E percebe quão pouco se é pelo ter. E a riqueza do pai, traduzida na paz do cigarro fumando à janela da casa da rua. E no silêncio com que percebe a chegada da noite.

Na volta ao Junco, percebe que se afasta da paz ao criar necessidades desnecessárias. E entristece ao descobrir que o progresso e suas vicissitudes é inevitável. Que não tem mais serenata e prosa depois do jantar. Foram substituídas pela novela que entra pela parabólica. Mas ainda restam, lá, na praça, a Igreja do Povo de Deus, a bóia feita no fogão de lenha e um solão danado que reflete o branco das casas.

O progresso trouxe televisão, vídeo, o primeiro assalto, tudo isso posto no lugar dos causos, das visagens. Do sobrenatural. Tirou o povo da praça, chumbando-o às poltronas das salas. As longas noites, a noite, mãe das almas, madrinha dos sonhos, acabou. Como eram longas. Encurtou a saia das moças e a imaginação dos homens.

Mas nada disso tem muita importância. O Junco continua lá, no fundo da memória, a lembrar que o essencial pode ser vivido ali ou em qualquer parte, desde que se preste atenção nele. E que é feito de bem pouco. Muito pouco.

O banco levou tudo do velho lobo. As terras, a casa. Da antiga sobrou apenas um caco de telha. Só lhe restou a tapera, dois palmos para uma horta, as galinhas. E a sabedoria que o banco não leva. Eis aí. Isso lhe basta. Mais não precisa. Lá embaixo está a rua, como o lugar sempre foi chamado, desde os seus tempos de povoado. Virou uma cidadezinha quieta, silenciosa, enfeitada de árvores e antenas parabólicas. Talvez por isso fique olhando cismado para o radinho de pilha que ganha na despedida. “Não precisava”. Pra que se incomodar?

Vinte anos depois da publicação de Essa Terra, romance emblemático dos anos 70 que se tornou um clássico, Antônio Torres dá meia-volta. Seu narrador caminha novamente sobre sua terra.

O cachorro e o lobo demarca a maturidade do estilo. é o nono livro do autor, editado pela Record. Bom, leve, fácil, recheado ora de humor fino, ora do melancólico nordestino que mora na cidade grande mas namora com o interior. Numa linguagem enxuta, sem excessos, amarra o leitor à poltrona do começo ao fim. Livro para se ler de uma sentada. São 219 páginas. E depois ficar pensando se não está na hora de mudar de vida. De parar um pouco com o São Paulo-Paraná e procurar o Junco, ainda que numa janela da Avenida Paulista.

Escritor retoma personagem de 1976

Totonhim, o protagonista do novo livro de Antônio Torres, O cachorro e o Lobo, tem muitos pontos em comum com o seu criador. Ambos nasceram na pequena cidade de Junco, interior da Bahia e foram tentar a vida em São Paulo. Há quem chame Torres de Toninho, como o escritor e amigo Eric Nepomuceno, aproximando os nomes. No entanto, as semelhanças terminam aí. Enquanto Totonhim precisa voltar para Junco por ocasião do aniversario de 80 anos de seu pai, Torres nem pensa nesta possibilidade. “Sou um urbanóide, sempre gostei da cidade grande. Quando saí de Junco sabia que era uma viagem sem volta.”

E foi o que fez, mas ao poucos. Primeiro mudou-se para Alagoinhas para estudar e depois foi para Salvador, onde começou a escrever no Jornal da Bahia. Quando chegou em Salvador criou coragem para ganhar o Sul maravilha começando por São Paulo. Só mais tarde, depois de um período de três anos em Portugal, veio para o Rio de Janeiro. Isso não impediu, no entanto, que Antônio Torres revisitasse diversas vezes a cidade natal através de sua ficção. “Vim do interior, minha memória está nele. Isso me permite ficcionalizar histórias sobre Junco”. O caminho na ficção de saída e de volta a Junco já foi feito há 20 anos em Essa Terra, em 1976. Nele, o irmão mais velho de Totonhim, depois de passar 20 anos em São Paulo volta para a cidade, se desilude com o que encontra e acaba se enforcando no gancho da uma rede.

é a partir desta história que se desenvolve a trama de O Cachorro e o lobo. “O cenário e o personagem dos dois romances são os mesmos. Mas as histórias seguem idéias diferentes. Enquanto o Essa Terra tem uma tragédia por trás de si, O Cachorro e o Lobo tem um olhar otimista”. A cidadezinha de Antônio Torres deixou para trás quando tinha apenas 14 anos aparece no novo romance como um pequeno paraíso semidestruído, que absorveu a modernidade através das antenas parabólicas, do asfalto e até dos assaltos que já começam a acontecer. “Mas não existe desilusão na descoberta desta nova cidade. O romance não é saudosista nem cheio de falsos otimismos. Ele mostra que estes lugares perderam parte de sua identidade, se tornado híbridos”.

No entanto, esta descoberta não desagrada ao personagem. Ele vai chegar a pensar se realmente pode ter um lugar ali. “O mais importante do livro é o reencontro dele como seu pai, seu passado e consigo mesmo”. De uma forma ou de outra, este reencontro literário foi difícil de ser realizado pelo autor. O escritor passou quase quatro anos elaborando o romance, e depois depurando a linguagem e forma. “às vezes eu achava que não ia conseguir fazer o livro. Parava uns tempos, depois voltava. Sempre tive medo de fracassar nesse projeto, mas hoje posso dizer que foi um livro que me deu prazer.”

Quanto à sua própria vontade de voltar ao lugar e rever a família, Antônio é categórico: não volta. Gosta das cidades grandes em que morou e não hesita em viajar mais para conhecer outras e colher material para novos romances. Mas existe uma ponta de saudade da vida que podia levar em Junco. “Sinto falta do tempo em que eu era apenas eu, com uma japona, a pastinha do colégio na mão e um curioso olhar de descoberta”.

Filho Pródigo

Correio da Bahia – Salvador, segunda-feira, 17 de agosto de 1998.
Jean Wyllys

O escritor Antônio Torres passou o fim de semana ao lado dos personagens que o transformaram em um grande escritor de literatura brasileira e o colocaram no circulo dos romancistas que gozam de prestígios no exterior. O que pode parecer uma história fantástica não passa de pura realidade. Há décadas afastado de sua terra natal, Junco (hoje, Sátiro dias), Torres retornou ao lugar perdido no agreste da Bahia, a 191 LM de Salvador, para comemorar os 40 anos de emancipação do município. Como o protagonista do ultimo romance – O Cachorro e o Lobo –, o escritor voltou para a terra que cobre suas raízes.

Com saudades e faixas em todos os cantos, uma banda de pífaros e um bolo de 40m de comprimento, Sátiro Dias despertou de seu sono de morte não para festejar o aniversário, mais para homenagear aquele que a colocou nas páginas do jornal Le Monde, de Paris. A faixa estendida sobre a biblioteca municipal (que leva o nome do escritor) é o melhor exemplo dessa gratidão. Ela dizia: Totinho, obrigado por colocar essa terra no mapa do mundo“. Sendo Totinho o apelido local de Antônio Torres e Essa terra o título de seu mais famoso romance.

Impossível olhar para as mais de três mil pessoas que compareceram à missa em ação de graças a Torres e não ver os personagens da maioria de seus livros, gente dividida entre o amor à terra natal e a esperança de uma vida melhor em outras plagas. Todas as pessoas entre 15 e 20 anos entrevistadas pretendem deixar a cidade para morar em São Paulo. Difícil caminhar pelas ruas de Sátiro dias e não reconhecer o velo Junco descrito por Torres, pobre, ignorante e temente a Deus, apesar das antenas parabólicas. De acordo com o atual prefeito, Joaquim Cardoso Neto (PL), 54% da população de Sátiro Dias, é de analfabeto.

O próprio Antonio Torres, em seu discurso de agradecimento, disse não saber onde terminava a autobiografia e onde começava a ficção. “Meus personagens têm a cara dessa gente e essa gente tem a cara de meus personagens.”, ele disse. De fato, com nomes diferentes e existência real, os personagens de Torres podem ser encontrados em todos os lugares de Sátiro Dias. Desde “Nelo”, de Essa Terra (1976), até o “Totonhim”, de O Cachorro e o lobo (1997), passando por “Virinha”, o patriarca que aparece em todos os livros que têm Junco como personagem.

Aliás, Junco, a cidadezinha à espera do fim do mundo, e São Paulo, o eldorado, são ora protagonistas ora antagonista das histórias de Torres, assim como das histórias particulares dos moradores de Sátiro Dias. Para alguns, Sampa é o sonho que se converteu em pesadelo; para outros, Junco é a encruzilhada da qual São Paulo é a saída. No confronto concreto ou abstrato entre esses dois mundos, alternam-se sonhos, esperanças, desilusões, conformismo, loucura e morte.

Entre a ficção e a realidade

Os personagens de Antônio Torres, ele mesmo e a população de Sátiro Dias vivem consciente ou inconscientemente, e função da Parábola do filho pródigo – aquela história alegórica sobre o filho que abandona o lar na ânsia de viver experiências melhores, mas acaba voltando e encontrando a felicidade no lugar de onde nunca deveria ter saído. “A gente sai por causa da necessidade e volta por causa da saudade.” Explicou a mãe do escritor, dona Durvalice Torres, 77 anos, que há 34 deixou Junco para dar uma vida melhor aos filhos.

Seu Zeca de Julião (em Sátiro Dia, as pessoas ainda são identificadas assim0, 95 anos, também perdeu os seus sete filhos para o mundo. Morando no que restou da fazendo Mato Grosso, ao lado da esposa, dona Jardina, seu Zeca é a própria encarnação do “Velho” de O cachorro e o Lobo, solitário em suas conversas com os mortos. Sentado em uma cadeira de rodas, o velho Zeca de Julião ainda se lembra, com previsão de datas, a partida de cada um dos filhos. Já cega, devido à catarata, dona Jardina disse que até hoje chora o inevitável abandono.

A partida para a cidade grande é certa, mas o sucesso na mesma, nem sempre. O personagem “Nelo”, de Essa terra, ao retornar para Junco, enforca-se porque sua Cida miserável em São Paulo não correspondia às expectativas da família. O mesmo aconteceu com Lela de Tote, de quem os moradores de Sátiro Dias preferem não lembrar. Já seu Manoel do Nascimento, 65 anos, não tomou nenhuma atitude trágica ao voltar para Junco foi a melhor das decisões. “São Paulo é a terra em banco de praça”, contou.

A estudante Jeane da Cruz (mais conhecida como Jeane de Branco), 18 anos, sonha em deixar Sátiro dias para fazer um segundo grau decente (ela esta na 6ª série) e arranjar um emprego. “Salvador é o meu destino, eu sei disso”, confessou. Sentada no Cruzeiro da Ladeira, aonde vai rezar de vez em quando, cabelos ao vento, Jeane lembra a personagem “Virinha” de Adeus, velhos, a garota que, no “Cruzeiro dos Montes”, pensava em deixar o “buraco de solidão e poeira” para conhecer “o mundo das cores, das flores, das luzes”.

Torres já disse que “a palavra escrita tem muita força quando transmite ou reflete o que está na cabeça de todo mundo”. De fato, a indecisão entre o porto seguro e além-mar não é exclusiva dos habitantes de Sátiro Dias. Convidado, durante toda programação de aniversário da cidade, a falar sobre essa tensão, o escritor disse que mais do que ficar ou partir, o pior talvez seja parar no meio do caminho.

“O Cachorro e o Lobo” World Literature Today – Inverno de 1998

Universidade Estadual de San Diego, Califórnia
Malcolm Silverman
Tradução: Cláudia Mello Belhassof

Em seu oitavo romance, Antônio Torres (nasc. 1940) consegue aprimorar seu estilo habitual e, ao mesmo tempo, introduzir um formidável elemento lírico, cujo tom alivia consideravelmente temas familiares pesados como injustiça, sofrimento e morte. O apelo telÚrico não é mais rompido pela ambivalência e descrito em termos neonaturalistas, nem a sofisticada atração da costa megalopolitana brasileira está necessariamente em oposição dialética ao costumbrismo baiano “retrógrado”. Como expressão mais recente de autobiografia ficcional transformada em confissão, O Cachorro e o Lobo, com seu fluxo analítico de percepção, seu diálogo espontâneo e seus padrões circulares de tempo e espaço, apresenta um agradável tom de simetria pós-moderna.

O encadeamento da trama é bastante descomplicado, e o autor confia, uma vez mais, em uma (re)interpretação moderna do retorno do filho pródigo, sobreposta ao fluxo migratório endêmico no Brasil. é nesse mesmo contexto que o narrador-protagonista Totonhim, bem conhecido dos leitores de Essa Terra (1977), de Torres, encontra-se no meio dos acontecimentos, reaparecendo sem aviso em sua cidade natal, Junco, depois de um hiato de vinte anos passados em São Paulo. Aparentemente, Totonhim volta para casa com a intenção de atenuar um fervilhante complexo de culpa em relação ao pai, depois de ter faltado à comemoração – e consequente reunião de família – de seu aniversário de oitenta anos. Durante sua estada relâmpago, ele revisita pessoas e lugares bem conhecidos, refletindo sobre o contato cara-a-cara com seu pai. Nesse processo, no entanto, ele principalmente redescobre a si mesmo.

Torres estrutura seu dramático encontro de mentes (e, no caso da ex-paixão Inês, de corpos) em uma moldura cronológica e espacial cujos parâmetros condensados e claramente definidos são repletos de emoção teatral, ou mesmo clássica. Na verdade, meticulosamente envoltos por uma estada de 24 horas, estão ambientes específicos tão díspares quanto uma cozinha, um budoar, uma árvore mal-assombrada, o bar local, a delegacia de polícia, a escada da igreja, e a praça principal, para mencionar os mais memoráveis. A ambientação em tais locais abrange uma escala que vai desde a quase fantasmagoria até a objetividade fotográfica, fornecendo, também, uma arena propícia ao estudo dos personagens.

Sucessivamente, a maioria dos personagens, seja em carne e osso ou em lembranças (principalmente por parte de Totonhim), tendem a ser inocentes e inofensivos; e quando não o são, podemos, pelo menos, contar com seu humor cáustico e sua vivacidade. Personagens secundários – por exemplo, o prefeito que atende às próprias necessidades, a empobrecida tia Anita, o louco da cidade, e o sacristão homossexual – assim como personagens principais, mais especificamente o opinioso pai de Totonhim e a professora primária Inês, acrescentam profundidade tanto ao desenvolvimento dos personagens quanto à atmosfera de cidade pequena do nordeste. Quanto a Totonhim, quando não está conversando com os cidadãos de Junco, está pensando sobre eles, sonhando com eles ou falando neles, frequentemente incitado por catalisadores familiares, animados ou inanimados, que aparecem à sua volta.

Enquanto isso, o macrocosmo de Junco está repleto de sons reconhecíveis, especialmente de mÚsica moderna, cuja popularidade contagiante e letras transcritas de maneira liberal inadvertidamente servem para reduzir ainda mais a tradicional divisão entre os dois mundos do Brasil (e de Totonhim). Além disso, ao longo da narrativa há, também, uma abundante intertextualidade literária, mais extensa, compreensivelmente, na homenagem do autor a Pedro Páramo e nos mÚltiplos paralelos dos clássicos mexicanos com O Cachorro e o Lobo. Com a presença do luar, de cheiros, de São João, do roubo de galinhas, de um toque sobrenatural, e de uma nostalgia palpável, esse lugar atrasado tornou-se um palco vibrante e sensual e uma alternativa desejável à afobada cidade de São Paulo.

Por isso, não é de surpreender que fotografias não convencionais do convencional eixo norte-sul – aquele notável por sua privação e este por sua onipresença – estabeleçam, talvez, o mais duradouro assunto do romance, dominando o tema, o espaço e a caracterização. Em todos os níveis, o autor enfatiza o contraste divergente em todas as suas nuances sutis e não tão sutis: velho/novo, tradicional/moderno, pobre/rico, interior/litoral, paz/violência, antes/depois, calmo/nervoso, e mesmo faz-de-conta (reconfortante)/(dura) realidade. O titulo do romance também faz alusão, simbólica e subconscientemente, à diversidade dicotômica, aqui personificada no filho e no pai, como se um fosse um canino dependente e domesticado e o outro, um nobre e experiente caçador.

No conjunto, O Cachorro e o Lobo é, paradoxalmente, uma narrativa insistentemente contemporânea e uma odisséia atemporal. O realismo psicológico predominante no livro, no qual até a metaficção faz uma ou duas pequenas aparições, une-se de maneira simbiótica a interlÚdios tão poéticos quanto a exuberância erótica da perda de inocência de Totonhim e Inês, certamente a passagem mais lírica da narrativa. O assunto principal do livro é a jornada mÚltipla com viagens sobrepostas dentro e à volta do paraíso na Terra chamado de Junco. O vinculo, o afeto e o respeito mÚtuo entre pai e filho estão abundantemente presentes em toda parte. Na verdade, no final do romance surge até mesmo uma chuva de purificação, como se anunciasse um novo começo. Além disso, O Cachorro e o Lobo é, antes de mais nada, uma extensão otimista e uma esperança de um novo Brasil, harmonicamente transformado em um só.

Volta ao Lar

Revista ISTO é / 1461-1° – 10/1997
Maria González

“Antônio Torres narra suas lembranças sem pieguice”

Vinte e quatro horas, um dia apenas, para tentar compensar 20 anos de distância, é o desafio enfrentado por Totonhim, filho de Totonho, o migrante que um dia deixou sua Junco natal, nos sertões da Bahia, para cumprir a sina de menino estudado, virando funcionário do Banco do Brasil na São Paulo de todos os sonhos. O menino que volta, homem feito, pai de família e amante de boleros, veio apenas por algumas poucas horas para reencontrar o pai que comemora 80 anos de excêntrica solidão. Este encontro cheio de emoção e lembranças é o cerne do novo livro do baiano Antônio Torres, O Cachorro e o Lobo, um ponto de partida que, apesar de igual ao de muitas outras bobagens cometidas em nome da saudade da terra abandonada, resulta num romance sensível e original.

Não há no trabalho de Torres nenhum rastro da pieguice que costuma assolar as reminiscências dos paus-de-arara de diferentes calibres e acervos, sempre ávidos por seguir os rastros de miséria imortalizados por Graciliano Ramos. Ao contrário, toda emoção é burilada com bom humor e uma dose de elegante ironia, proporcional ao risco de ridículo de cada situação. Não se trata, no caso, de uma história triste de migração lamentada, mas de uma ode ao amor de um filho pelo pai e de um pai por seu filho. Torres faz um brinde à saudade saudável, que dói de mansinho, e à ternura das memórias cultivadas de outros tempos. Não existe no livro – porque ele não faz a menor falta – a miséria indigna, que humilha. Mesmo a pobreza que atravessa o caminho do protagonista ostenta orgulho na sua história.

Os amores esquecidos, ao ressurgirem fugazes, têm a deliciosa função de reavivar, na ponta da língua o doce sabor dos beijos adolescentes e não de amargar o coração com ressentimentos. As lembranças dos mortos e as desgraças desbotadas pela poeira dos anos servem tão-somente para valorizar os vivos e suas rotinas pacatas. Até os medos primitivos, as assombrações que ficaram na memória de um menino, são instrumentos de reconhecimento de uma realidade que já não é mais ofuscada pelas antenas parabólicas e pela globalização das gentes. Um livro, em suma, ideal para quem gosta de suas próprias lembranças.

Me chamam de senhor

O Dia, Rio de Janeiro, 17/06/1997
Armindo Blanco

Do meu aquário de editor, na Última hora de São Paulo, eu o via no outro pólo da redação, junto à janela que dava para o Anhangabaú. Tímido, caladão, só observando. Aprendiz de repórter esportivo. Quando eu saía, por volta da meia-noite, para ir aos comes e bebes no Gigeto com Jô Soares, Inácio de Loyola Brandão e Zé Celso, ele já sumira na floresta de cimento armado.

Zé Celso era o novo mago do teatro paulista; Jô e Loyola brilhavam na equipe de UH. Equipe irretocável, segundo Cláudio Abramo, cheia de pessoal futuroso. Dela alçaram vôo, entre outros, o Ricardo Amaral, que fazia uma coluna para adolescentes e se tornaria rei da noite, e Ary Carvalho, que era chefe de reportagem e depois virou capitão de imprensa. Quanto ao mocinho de olhar atento que se alojava perto da janela, não virou patrão. Continua assalariado. Publicitário. Mas, sobretudo, romancista, autor de Um Cão Uivando para a Lua, Os Homens dos Pés Redondos, Essa Terra, Carta ao Bispo. Seu nome: Antônio Torres. Quem diria!

Fui à noite de autógrafos (sou freguês de caderno, ele nunca deixa de me mandar convite) em que lançou seu novo romance: O Cachorro e o Lobo. Mais gente do que num forró: escritores, bambas da publicidade, estrelas de teatro (Maria Padilha e Dora Pellegrino derramando eletricidade).

Na dedicatória, ele registra “o muito” que eu lhe teria ensinado, “há anos”. Quantos? Não quero fazer as contas. O Torres, caboclo nascido e criado a feijão e rapadura no Junco, povoado perdido nos cafundós baianos, mantém o riso trocista de Totonhim, o cachorro do romance; mas o declive para os 60 está bem à vista.

Voltara ao Junco vinte anos depois de ter emigrado para São Paulo. O Junco, cruzeiro de acontecimentos que sua memória guardara, não é mais o mesmo. Não havia nem rádio nas casas, hoje metidas a besta com suas antenas parabólicas. Mudou até de nome: agora é Sátiro Dias. Só não mudou o pai octogenário de Totonhim, que continua com seus hábitos de lobo.

Enquanto cozinha uma bóia para o filho pródigo, o velho cita as sagradas profecias sobre o fim do mundo: “Não mais a água; da próxima vez, o fogo”. Talvez, quem sabe, antes de começado o terceiro milênio. E faz um voto: “Se o mundo vai mesmo se acabar, eu queria estar aqui pra ver. Pois vai ser o maior espetáculo da terra”.

No entanto, há coisas piores, filosofa. Quem, como ele, viveu além da conta, sabe muito bem: “Fim de mundo mesmo, Totonhim, é a velhice. é você olhar para uma linda mulher e ela lhe chamar de senhor”.

O Cachorro e o Lobo consagraria o autor, se ele já não fosse afamado europas afora. Estava eu me regalando na leitura, me perguntando se o Torres teria aprendido comigo a escrever essa prosa tão ligeira e bem temperada, quando pintou, antes de dobrada a primeira meia centena de páginas, aquele papo sobre a velhice. Um trauma. Sob o matriarcado em que trabalho, eu que venho do tempo em que redação de jornal era clube do Bolinha, estou rodeado de lindas mulheres. E – reparo agora – todas, ou quase todas, me chamam de senhor.

A escritura de Antônio Torres

Diário do Nordeste, 29/08/2004
Carlos Augusto Viana


A expressão literária de Antônio Torres centra-se, sobretudo, no compromisso em apreender, sem concessões, a condição humana. O homem, em seus contrastes, alimenta-lhe a ficção. Mas que não se enxergue aí o nó das introspecções. Não. Suas personagens, colhidas ao cotidiano, podem até amealhar seus grãos de silêncio; no entanto, realizam-se no outro e neste buscam referências. E, à semelhança dos heróis trágicos, fogem das coisas só para encontrá-las e delas se aproximam para perdê-las.

Um dos grandes temas do Autor é o da desintegração da existência: o homem devorado pela máquina do mundo. Assim, é, em sua escritura, recorrente o conflito entre o passado e o presente. Tem a consciência de que a pós-modernidade vive uma confusão moral. O indivíduo, perdendo a sua relação com a sociedade, é tão-somente um registro num documento. Contempla o espelho do tempo e busca, por entre águas baças, o seu verdadeiro rosto. Eis, ainda que embaralhados, os motivos de “O cachorro e o lobo” (Record, 219 páginas), romance que faz uma ponte com “Essa terra”, obra que abriu o caminho para a consolidação do nome de Antônio Torres como um dos mais virtuosos ficcionistas de nossa contemporaneidade.

Em “O cachorro e o lobo”, Antônio Torres, despojado, imprime, já nas primeiras linhas, a lâmina de sua incisão:

Eis-me de regresso a essa terra de filósofos e loucos, a começar pelo meu pai, que disso tudo tem um pouco.

E se aqui estou é por causa dele mesmo. Ou melhor, dos seus oitenta anos. Foi uma festa de arromba, me disseram. No dia seguinte!

Um presente de grego, pensei, sem saber se ria ou chorava. Sim, só fiquei sabendo quando já havia acabado e todos já estavam pegando o caminho de volta. E aí uma boa alma deu por falta de uma rês que fazia muito se desgarrara do rebanho. E fez o que seu coração mandava e suas pernas ainda podiam aguentar: correu. Como se algum filósofo lhe tivesse soprado ao pé do ouvido que não é a fé que remove montanhas, mas o complexo de culpa. Pois havia sido ela mesma, a benquista, tenra, responsável, abnegada, devotada etc., e agora chorosa mana Noêmia, a escolhida para avisar ao irmão ausente – o que vivia longe, sem dar notícias, sem escrever nem telefonar para ninguém. E, assim, o que se esquecera de tudo e de todos agora havia sido esquecido. (p. 7-8)

Vê-se, a partir desse fragmento, que a linguagem é uma nota singular em Antônio Torres. As palavras fluem naturais, espontâneas. Brinca, amiÚde, com o exercício da intertextualidade, principalmente com fragmentos do nosso cancioneiro popular: “Nessa terra sem rádio e sem notícias das terras civilizadas”; (p.12) “E assim se passaram vinte anos sem eu ver estes rostos…”; (p.17) da mesma forma, bem à vontade, dialoga com “O ébrio”: “Tornei-me um ébrio e na bebida busco esquecer…”; (p.24) com Pixinguinha: “Tu és/ divina e graciosa / estátua majestosa / do amor…” (p.98) ou com o “Corvo”, de Poe: “Disse o corvo: – Nunca mais!” (p.37).

Seus períodos, predominantemente curtos, encontram, na expressão nominal e na fragmentação sintática, os instrumentos por que possa o Autor conferir verdade e humanidade, quer ao foco, quer ao discurso: “Pobre filho de uma égua. Ele mesmo. Papai. Meu pai. O velho. Mas eu estava pau da vida com essa história de não haverem me avisado antes sobre os seus oitenta anos. Esqueceram de mim.”(p.12) O palavrão assume feição estética, uma vez que pincela, com tintas fortes, as emoções. Antônio Torres recusa quaisquer artificialismos. Rima carne com desejo, terra com memória.

A memória, aliás, ordena, em todo o livro, o desenvolvimento do foco narrativo. O narrador, sob o ponto de vista interno, recupera, no presente, o passado. Um tempo de vinte anos marca a linha entre a partida do protagonista e sua volta a Junco, no interior da Bahia. A experiência da personagem – que também narra a trama – consiste em reintegrar-se a essa nova ordem. A cidadezinha que carregara, até então, consigo, se já não mais existe enquanto realidade física, assoma, imperiosa, na fala geral da família, no que os ventos trazem em seu tropel atávico.

O sertão do longe se ergue, sobremaneira, na figura do octogenário. Ao fim da tarde, senta-se à varanda de sua casa da roça, acende um cigarro e se entrega a uma das horas abertas. Recebe a companhia dos mortos. Sempre solícitos e pontuais, despedem-se do velho, prometendo-lhe um novo encontro no dia seguinte. Nesta cena, Antônio Torres, recorrendo ao maravilhoso, relembra ao leitor que o cotidiano é, também, abrigo do insólito. Comumente, no imaginário das populações, a realidade física se alia a um mundo mágico. A tonalidade mágica tudo envolve, matiza, transfigura, mas convive com o real, e de tal forma a ele unida, que é impossível discerni-los ou desembaraçá-los. Faz-se, porém, necessário ressaltar que o maravilhoso está a serviço de uma expressão do social. Talvez por isso o insólito não faça nascer o medo no leitor ou nas demais personagens, uma vez que os que vivem tais experiências são acolhidos, socialmente, sem que despertem quaisquer temores.

No entanto, hoje, uma cidade existe. Para redesenhá-la o narrador, guardião da memória coletiva, serve-se do recurso da oralidade popular de que “Sempre houve o primeiro isso, o primeiro aquilo”. (p.57) Recrudescem, assim, as imagens do primeiro professor, para que ressoem os gritos dos menos afortunados ante a sádica palmatória; a mãe, como a primeira mulher a aprender a ler e a escreve, dentre as do seu tempo; a primeira prostituta que se confundira com a primeira visão do paraíso; o primeiro homossexual, um sacristão que sabia a missa inteira em latim; o primeiro homem triste, definhando por doenças venéreas.

De sua janela, a personagem protagonista depara o tédio do anonimato:

Agora sou eu o que volta, sem festa nem foguetório. Pelo tempo em que estou à janela e pela rapidez com que as notícias correm neste lugar, já era para te sido notado. Mas ninguém apareceu ainda para os rapapés de antigamente. Vai ver o ir e vir se tornou tão banal que já não impressiona a pessoa alguma. São Paulo virou um caminho de roça. O mundo ficou pequeno. Viajar já não pé mais uma aventura emocionante. (p.69)

E faz surgir no leitor a dÚvida acerca do que, em verdade, procura esse filho pródigo. Ora, sendo Antônio Torres, por natureza, um alegorista, a cidadezinha do Junco é metonímia do mundo atual. A partir de um microorganismo, o todo se impõe de modo inquestionável. A desfiguração é a grande marca da pós-modernidade. O homem sem rosto, de raízes desprovido. Voltar ao passado é, sobretudo, perdê-lo. A personagem, de sua janela, vivencia a vida besta. A realidade se incrusta entre o que ele esperava ver e aquilo que ele, deveras, vê. Nesse contexto, a alegoria é o realismo. E se assim se afirma, é porque encontra esteio na escrita do Autor, desprovida de todas as características supérfluas, daí livrar a alegoria das naturais condensação e complexidade.

Com melancolia, a personagem protagonista constata que a gente do lugar já não mais quer saber de roça; o povo quer mesmo é rua, é movimento, é animação. Já não há as casas de roça de antigamente. O canto dos galos já não singra os quintais. Já não se debulha o verde das sementes:

Ao saltar a cancela, no retorno da minha visita ao pedaço de terra onde o meu umbigo havia sido enterrado, assim a que a parteira passou-lhe a tesoura e o meu pai apressou-se em sepultá-lo nos fundos da casa, como fez com o de todos que nasceram antes e depois de mim, comecei a achar que eu era um homem de sorte. Porque tive muita sorte mesmo de entrar e sair ileso, sem levar um tiro nas costas ou ser preso, por invasão de propriedade alheia. A que em meus sonhos aparecia como ainda sendo nossa. A minha casa no campo, em algum lugar do Brasil”. (p.138)

é exatamente isso o que vive a personagem: uma sucessão de perdas. Junto a essa desastrosa experiência vem a consciência de sua irremediável solidão. E esse sentimento de perda se aguçará de tal forma que, como se estivesse diante de um enorme e mágico espelho, o protagonista enxerga o aniquilamento de sua história e a perda total de sua identidade como indivíduo.

Por tudo isso, existe entre Antônio Torres e o leitor uma cumplicidade. A comunicação que não se deixa impregnar pela comunhão não atinge a sua plenitude. Abre, a rigor, crateras de vazio. O verdadeiro artista é o que depara, no invisível, os visíveis necessários ao engrandecimento humano. Se, consoante Ezra Pound, a literatura não existe no vazio, e tem o escritor uma função social, Antônio Torres cumpre-a plenamente. E o faz porque, com imaginação, criatividade e inquieto espírito, está sempre instigando o leitor a redimensionar valores, a reordenar os dias, a refletir sobre o passado e considerar o que dele herdou a contemporaneidade. Tangos, boleros, forró e samba-canção. Memória e pó. O cachorro e o lobo.

À procura do tataravô baiano

Gazeta Mercantil – sexta-feira 26, 27 e 28 de Setembro de 1997
Klaus Kleber

A excursão de Antônio Torres pela sua herança genética, em “O Cachorro e o Lobo”, tem muito a ver com o DNA de todos nós. Não deve estar muito longe o dia em que o censo demográfico mostrará que a maioria dos brasileiros não só vive nos grandes centros urbanos do País, mas nasceu ali mesmo ou por perto. Será a culminância da grande fusão em processo no País, da gente que inchou as grandes cidades com as populações urbanas algumas décadas mais antigas, migrantes também do País e do exterior.Depois de ler Torres, o que se estranha é por que as fontes que abastecem o vasto reservatório nacional de mão-de-obra, tão fortes no imaginário popular, tenham deixado de ser matéria romanesca, desde que partiu para o São Paulo o primeiro pau de arara.

Esse mundo praticamente abandonado, e que antes pertencia a Graciliano Ramos, foi redescoberto por Antonio Torres com “Essa Terra”, de 1976, seu grande marco literário ate agora, traduzido em cinco línguas. “O Cachorro e o Lobo” é, de certa forma, como diz o próprio autor, uma continuação do livro anterior. O velho Junco, com suas estranhas mortes e ressurreições no tempo, continua lá, tem algum jeito de Macondo, mas pode ser também uma espécie de Condado de Yakanapatawpha. A estranha modernidade que o avanço da civilização industrial produziu no Sul dos Estados Unidos tem visível paralelo com o que acontece nas pequenas cidades do Nordeste ou naquele naco que Minas agregou ao Polígono das Secas. Novelas de televisão transmitidas por antenas parabólicas, aquele girassol cibernético na paisagem ao lado do mamoeiro, 40 Km de estrada asfaltada que ligam a cidade a uma rodovia federal, sandália de plástico substituindo as de couro – tudo, de repente, junge ainda mais o interior da Bahia, como o da Paraíba, à periferia de São Paulo.

O dia-a-dia da cidadezinha é o personagem central de “O Cachorro e o Lobo”, embora a princípio pareça que tudo se sobrepunha uma tentativa de diálogo entre as duas espécies de canídeos, que se conhecem profundamente e profundamente se estranham. O narrador, Totonhim, retorna à sua mitológica terra para o aniversário de seu pai Totonho e chega depois da data da festa. O velho lobo não se interessa pelas andanças do filho, que não tem a aura de prodigo, e que jamais conseguirá ocupar o lugar de Nelo, o irmão morto. Mas não se trata de um romance freudiano, como se poderia pensar. Nelo, Totoinho, Totonho, compõem-se com Inezita, Tias Anita e Donana, Údsu e outros, na procura pelo irrecuperável. Mais que a paternidade, busca-se a origem.

Torres não nos dá um interior estereotipado, como nas novelas regionais ou de época que fazem o tormento de atores que devem imitar sotaques não localizáveis. Essas cidadezinhas de casas baixas e de grandes janelas, que os proprietários pintam como querem, mais não só conseguem fazê-las mais parecidas, não são um cenário de papel e não têm mulheres como chefes de policia. Lá ainda se sente o vazio do êxodo, como em certos contos de Pirandello, mas não são os retornados com dentes de ouro, óculos escuros e radinho de pilha que trazem as novidades. O arquipélago brasileiro esta mais unido, ainda que seja apenas pela TV, que mistura regiões separadas por centenas de quilômetros, confundem o campo e a cidade, o antigo e o novo, a linguagem do “ocho” com a gíria da metrópole. E precisa ser um escritor como Torres para nos dar conta disso.

No ambiente de sua criação, Totonho, que nunca se afastou muito dali, o velho cachaceiro que chega aos 80 anos e que conserva uma rocinha, adquire uma grandeza solitária. Ele é a permanência de um sentimento do mundo e acaba sendo como na musica de Chico Buarque, o nosso tataravô baiano.

O uivo de um grande romancista

Estado de Minas, 24 de junho de 2007
Jeferson de Andrade

Sem praticar injustiça com “Essa Terra”, “Carta ao Bispo”, “Adeus, Velho” ou mesmo com a estréia tão aplaudida, “Um Cão Uivando pra Lua”, pode-se dizer que “O Cachorro e o Lobo” (Editora Record) é o melhor livro do escritor baiano Antonio Torres. A noite de autógrafos aconteceu hoje na livraria Sempre um Livro, a partir das 19h30mim, dentro do projeto Sempre um Papo. O evento é uma realização conjunta do ESTADO DE MINAS, Telemig e AB Comunicação.

Torres nasceu em 1940 e estreou na literatura aos 32 anos, recebendo de Marques Rebelo um comentário estimulante: “é simplesmente admirável. Fiquei com inveja. Gostaria de ter tanta bossa, tanta agilidade, tanto poder de síntese”. Passados 25 anos da estréia, o escritor reforça ainda mais esse comentário com muita bossa, agilidade e capacidade de síntese. Torres continua fazendo uma literatura visceral, de peito aberto, como quem conta e rasga o próprio coração.

Em “O Cachorro e o Lobo”, o autor consegue fundir passado e presente de forma sincronizada. O personagem sempre retorna aos acontecimentos passados, viaja ao mais fundos de remotas lembranças, mas a linguagem não é aquela a martelar, rebuscada e engenhosa. é a linguagem do hoje e do agora. Neste ponto, Torres se diferencia de muitos escritores brasileiros que têm historias para contar, mas o fazem com floreiros. Parece que muitos pretendem copiar o virtuosismo estilístico de Guimarães Rosa. Essa influência, tanto quanto de Clarice Lispector, demarcaram um ritmo para as nossas letras do qual Antonio Torres escapou para se mostrar dono e caminhos próprios.

E outro ponto positivo para Torres é que ele resgata a história. O livro tem começo, meio e fim. Os conflitos estão bem delineados. E a leitura se faz porque o contador da historia domina o texto e o ritmo do que se vai relatado. Outro ingrediente formidável de sua narrativa é o bom humor. O contador da historia passa pelos momentos de tragédia, não foge das lembranças amargas, mas sobrevive com uma carga emotiva positiva.

Era mesmo preciso essa revigorada em nossas letras. Todos estão cansados das tragédias diárias, O bom humor do livro de Torres só apressa e satisfaz a leitura. A fusão do presente e passado é conseguida subliminarmente pela linguagem. A presença do contador de historias se evidencia em certas partes, como o inicio de um capitulo: “Cheguei à frente para dois dedos de prosa ao pé do fogo, sob o crepitar da lenha e o fumegar das panelas. O som das cozinhas ancestrais; onde reinvam os filósofos e os loucos”.

A viagem do personagem ao passado avança, o seu encontro com os costumes remotos se faz, mas em determinado instante o hipotético reencontro do narrador com seu padrinho mistura pedidos de bênçãos tradicionais com indagações sobre a existência de Deus. Para o narrador lembrar que o descrente em Deus não poderia mais receber o epíteto de “comunista”, pois comunista não há mais nem para semente. Já os minguados crentes de antanho neste pais de cristãos romanos é outra realidade: multiplicaram-se biblicamente. Ou seja, Torres contrapõe passado e presente e isso faz a narrativa ágil, como já antecipara na explícita bossa de “Um Cão Uivando para a Lua”.

interessante registrar que, neste novo livro, há um cão uivando para a lua. Se o lobo também uiva, temos a metáfora preferida de Torres em dose dupla. Quanto ao significado do titulo, não se deve expô-lo, já que é uma descoberta de leitura. Outra maestria estilística de Torres, em “O Cachorro e o Lobo”, são as inserções de letras de musicas ou citações literárias que fluem soltas e leves, exatas, precisas. Alguns anos de vida e de acontecimentos se resumem nesta historia, e tudo se passa num átimo. Por isto, perfeita a citação dos versos de Cassiano Ricardo: “Não, não foram não/ os anos que me envelheceram/ Longos, lentos, sem frutos/ Foram alguns minutos”.

TOTONHIM – MARCAS EMBLEMÁTICAS DE UM MIGRANTE SERTANEJO EM O CACHORRO E O LOBO, DE ANTÔNIO TORRES

In: FONSECA, Aleilton (org.). O olhar de Castros Alves.Ensaios críticos de Literatura Baiana. Salvador: Assembléia Legislativa do Estado da Bahia; Academia de Letras da Bahia, 2008. 500 p., p. 336-344.
Solange Araújo Fioravanti

Nossa comunicação, que traz como título Totonhim – Marcas Emblemáticas de um Migrante Sertanejo, está ancorada nos romances O Cachorro e o Lobo, do escritor baiano Antônio Torres e Vidas Secas, do escritor alagoano Graciliano Ramos.

No romance O Cachorro e o Lobo, publicado em 1997, oitavo romance de Antônio Torres, considerado pelo escritor a continuação do romance Essa Terra, encontramos imagens que circunscrevem os espaços de dois Brasis, como bem pontuou Sousa (2003) – um imerso na rusticidade, de matiz campesina; e outro, em acelerado progresso, tensão e velocidade tecnológica.

Através do referido romance é possível apreender as referências temporais e espaciais que emergem do texto, trazendo à tona as características, as marcas emblemáticas de migrantes, a exemplo de Totonhim, que sonham com a terra da promissão, mas sem se desapegarem de suas raízes telúricas mais profundas.

Assim, é imperioso saber que, ao longo de nossa reflexão, o drama de Fabiano e de sua família em Vidas Secas, assim como o de Totonhim no reencontro de suas lembranças e memórias, em O Cachorro e o Lobo, refletem no bojo da estrutura romanesca suas raízes profundamente fincadas na realidade social e telúrica do sertão, dando um caráter eminentemente universal, por abarcarem a condição humana em circunstâncias tão adversas.

Vidas Secas é uma das obras-primas de Graciliano Ramos e da nossa literatura brasileira. Publicado em 1938, com seu foco narrativo na terceira pessoa, denuncia, sem incorrer em panfletarismo, a opressão social vivida por uma típica família de migrantes do agreste nordestino: Fabiano, Sinhá Vitória e os dois filhos anônimos do casal. A narrativa heterodiegética põe a nu a precária e desumana condição dos migrantes nordestinos: fome, miséria, exploração dos mais pobres, emergem dos expedientes da narrativa romanesca.

O título do romance, por sua vez, demonstra a mundividência da saga de retirantes nordestinos – as Vidas são Secas, assim como são secas as terras da geografia nordestina. O romance expõe a aridez dos sentimentos animalizados pela absoluta miséria – a extrema falta de sensibilidade de Fabiano em face ao choro do filho demonstra já no início da narrativa a ressequidão da natureza humana em perfeita simbiose com a geografia da terra:

[…] o menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão.

– Anda, condenado do diabo, gritou o pai.

Não obtendo resultando, fustigou-o com a bainha da faca de ponta(RAMOS, 1997, p.9).

Percorrendo a obra, pode-se verificar também que as personagens são forçadas a isolar-se, vivem uma espécie de ostracismo, motivadas pela carência da linguagem verbal. A comunicação entre as personagens é lacônica, gutural, quase monossilábica. A linguagem narrativa é fria e econômica, há uma explícita ressequidão que faz também jus ao título do romance.

O romance, formado por treze capítulos que se justapõem, possui um caráter cíclico, metáfora da forma cíclica da seca e das chuvas torrenciais no sertão (WILLIAMS apud ALMEIDA, 1999, p. 293): no enredo de Vidas Secas há uma aproximação significativa entre o primeiro capítulo intitulado Mudança e o último, Fuga. Conforme já apontado pela crítica, ambos se correspondem por retratarem a condição de migrantes errantes, tangidos pela estiagem e sempre em busca da terra da promissão. Além disso, os referidos títulos dos capítulos (Mudança; Fuga) sugerem, no plano semântico, que os migrantes de Vidas Secas estão em processo: ambos os títulos prenunciam indícios de total instabilidade e luta.

Os demais capítulos que compõem o romance abordam os mecanismos de exclusão social e de espoliação do trabalhador, ao lado de um nomadismo que parece ter chegado ao fim, em meio às agruras e dificuldades do cotidiano dos sertanejos. A família vive, dessa forma, um aparente período de estabilidade até serem novamente surpreendidos pela estiagem.

Parece que Graciliano, ao conceber Vidas Secas, quer desvencilhar-se de clichês e de estereótipos nocivos à composição narrativa, pois dá à sua obra um tom universal, mesmo falando do local, como diria Tolstoi:

Fiz o livrinho sem paisagens, sem diálogos. E sem amor. Nisso, pelo menos, ele deve ter alguma originalidade. Ausência de tabaréus bem falantes, queimadas, cheias, poentes vermelhos, namoros de caboclos. A minha gente quase muda, vive numa casa velha da fazenda; as pessoas adultas preocupadas com o estômago não têm tempo para abraçar-se (RAMOS apud MORAES, p. 17).

Assim, o escritor quer fixar-se no drama dos sertanejos, na aridez dos sentimentos gerados pela extrema miséria, por isso foca suas lentes nos excluídos do agreste nordestino, denunciando, pelas fraturas do texto literário, as desigualdades regionais do Brasil de sua época, bem como de todos os tempos e lugares.

Quando adentramos nos dois primeiros capítulos da obra Vidas Secas vemos que há uma predominância de modo especial de flashes de memórias, como: o sofrimento, a dura realidade vivida na seca, gerando um profundo sentimento de impotência, mas também de esperança diante de uma aparente estabilidade:

Fabiano ia satisfeito. Sim senhor, arrumara-se. Chegara naquele estado, com a família morrendo de fome, comendo raízes. Caíra no fim do pátio, debaixo de um juazeiro, depois tomara conta da casa deserta. Ele, a mulher e os filhos tinham-se habituado à camarinha escura, pareciam ratos – e a lembrança dos sofrimentos passados esmorecera” (RAMOS, 1997, p.18).

Sem sombra de dúvidas, Graciliano ao escrever seu romance Vidas Secas retrata com grande verossimilhança a condição dos migrantes sertanejos, exibindo o sofrimento e o desamparo social dos mesmos. A narrativa é reveladora dos sentimentos, dos monólogos das personagens, em comunhão com a dureza da geografia local. Desse modo, a obra descreve, de modo tácito, o dia-a-dia do sertanejo por abarcar, em seu bojo, elementos da dura realidade regional:

[…] a fazenda e as atividades pecuárias; a vida em família; a vida, com seu comércio, suas festas; a arbitrariedade do poder: o soldado, o patrão; e finalmente, as mutações do meio ambiente – a seca, as chuvas, a cheia, as arribações anunciando nova seca (ALMEIDA, 1999, p.296).

Conforme sinalizamos, Graciliano ao descrever a vida do homem do sertão faz de forma veemente, isto é, através dos expedientes da narrativa, apropria-se metaforicamente de uma câmera cinematográfica para registrar, com frieza e concisão, o modus vivendi da família de retirantes.

Tinha obrigação de trabalhar para os outros, naturalmente, conhecia o seu lugar. Bem. Nascera com esse destino, ninguém tinha culpa de ele haver nascido com um destino ruim. Que fazer? Podia mudar a sorte? Se lhe dissessem que era possível melhorar de situação, espantar-se-ia. Tinha vindo ao mundo para amansar brabo, curar feridas com rezas, consertar cercas de inverno a verão. Era sina. O pai vivera assim, o avô também. E para trás não existia família (RAMOS, 1997, p.117).

No excerto destacado, o narrador descreve com maestria o mecanismo de submissão e passividade histórica a que estava submetido o vaqueiro Fabiano, para atestar a permanente falta de perspectiva de mudanças desde os tempos de seus antepassados. Há uma espécie de fatalismo que condensa o passado e o presente do sertanejo, projetando um futuro sem expectativas, já que essa sempre fora a sua sina, assim como seria a sina de sua prole: “os meninos eram uns brutos, como o pai. Quando crescessem, guardariam as reses de um patrão invisível, seriam pisados, maltratados machucados por um saldado amarelo” (RAMOS, 1997, p.44).

Em contrapartida, em O Cachorro e o Lobo, Antônio Torres de forma recorrente desmistifica um sertão entrecortado pelas marcas de um tímido progresso – a Junco de sua infância (atual Sátiro Dias) – na fala do narrador-personagem Totonhim: “Virou uma cidadezinha, quieta, silenciosa, enfeitada de árvores e antenas parabólicas – à espera do fim do mundo. Não faz nem meio século que ganhou status de cidade” (TORRES, 1997, p.215).

É válido ressaltar que o referido romance está subdividido não em capítulos, mas em três períodos do dia – manhã, tarde e noite – totalizando vinte e quatro horas. Além disso, a narração vai se construindo a partir das lembranças e memórias de Totonhim, após um longo período de ausência de sua terra natal, desde sua partida para São Paulo. Totonhim é em São Paulo, o cosmopolita, o cidadão do mundo, imerso no progresso e na tecnologia, mas não esquecido das agruras do sertão, da falta de chuvas, do sotaque carregado do sertanejo, da mundividência rural, das tradições e crenças dos sertanejos:

E assim se passaram vinte anos, pensarei, ao chegar lá. Assim se passaram vinte anos sem eu ver estes rostos, sem ouvir estas vozes, sem sentir o cheiro do alecrim e das flores do mês de maio. Nem o das cambraias engomadas das meninas cheirando a sabonete Eucalol, as que levavam flores para a igreja, nas novenas do mês de maio. Assim se passaram vinte anos: sem eu queimar a sola dos pés no tabuleiro, nem nos caminhos de massapê das baixadas. Sem escorregar no tauá da ladeira da Tapera Velha, sem subir de joelhos em penitência até o Cruzeiro da Piedade. Sem roubar goiaba em quintal alheio e pedir perdão ao Cruzeiro dos Montes e à Virgem Mãe de Deus, Nossa Senhora do Amparo, a nossa padroeira (TORRES, 1997, p. 17).

Desta forma, ao traçar o perfil emblemático de Totonhim, ao contrário de Fabiano, em Vidas Secas, podemos notar o primeiro envolto numa atmosfera de progresso, mas que não rejeita sua identidade de sertanejo e, através das imagens e recordações da terra natal efetua um ritual de rememoração, de (re)encontro com suas raízes, com sua terra, com sua Junco, com sua gente…

Já o segundo, Fabiano, desprovido de uma identidade, sentindo-se um bicho desumanizado e errante, vive o mito de Sísifo em sua plenitude, já que sua vida, seus sonhos, sua labuta, seu nomadismo, representam uma luta contínua e inútil.

A imagem que vai se construindo no romance Vidas Secas é o emblema da dureza, da rudeza do seco e de suas paisagens, intercalando-se com a geografia árida, vê-se uma linguagem concisa, despida e desnudada de artifícios líricos e/ou poéticos, como marcas de um sertanejo desprovido de perspectivas de um futuro feliz, por isso a idéia da fuga subjaz no interstício do texto, crispado de dores, de sonhos que não se concretizam. Ao conceber a imagem desse homem sertanejo, vê-se, estoicamente, ao lume de um sol inclemente e impiedoso, a saga destes retirantes nordestinos, condenados ao nomadismo pela vida a fora. Desta forma, Graciliano, nas entrelinhas do texto, desenha de forma cinematográfica e/ou panorâmica o emblema do sertanejo, submerso em um espaço geográfico devastado, rodeado de seres humanos vivendo na mais absoluta penúria. Estes, sentindo-se como bichos, são continuamente explorados pelo poder de mando da região e/ou castigados pelas condições climáticas do meio.

Já em O Cachorro e o Lobo, Antônio Torres, através de um narrador autodiegético, constrói o emblema de um sertanejo também submerso em uma região marcada pela pobreza e pela inclemência da natureza. Desta forma, ao delinear a imagem emblemática do sertanejo em O Cachorro e o Lobo, deparamo-nos com Totonhim, “um homem superior, urbano, culto, mas ao mesmo tempo, filho de uma terra pauperizada e explorada pela região Centro-Sul” (SOUZA, 2003, p. 21-22). A referida personagem é o emblema do migrante que irá “vagar pelo mundo, sem pátria e sem solo, buscando o destino da família, é o destino dos filhos do Junco, que descem para São Paulo, a suposta terra da promissão” (2003, p.21-22).

Totonhim, assim como Fabiano, poderiam ser caracterizados, como preconiza Araújo, quando descreve o perfil do sertanejo em Os Sertões do escritor Euclides da Cunha, como o “homem do interior do Brasil, […], pois o meio moldou-lhe a têmpora forte longe das amorfias viciosas dos lugares do litoral” (ARAÚJO, 2001-2, p.142). E por tudo isso, a máxima cunhada por Euclides pode ser muito bem aplicável a esses dois nordestinos, de história e de universos tão distintos: “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”.

A visão de Totonhim no contexto da obra está profundamente reificada pela velocidade e fragmentação do mundo contemporâneo – escravo do pontual, do relógio, metáfora daqueles que vivem sob a ditadura do tempo no universo urbano em contraste com o rural e o tradicional: “Melhor dizendo, eu não venho. Volto de um mundo cheio de pressa. O tempo aqui sempre passou devagar. Assim era. Assim será?” (TORRES, 1997, p.68).

A essa visão de Totonhim, remete-nos a ótica de Fabiano, para compor a experiência de mediação entre dois mundos, ou entre dois modos distintos de vida, um rural e tradicional e outro urbano e moderno. Totonhim, ao contrário de Fabiano, detém o poder da linguagem, por isso tem acesso a outros conhecimentos, tem emprego, estabilidade, é funcionário público do Banco do Brasil. Além do mais vive na tão sonhada e mítica terra da promissão, sonho dos migrantes nordestinos como Fabiano, Sinhá Vitória, Nelo e tantos outros:

Depois passou-se a sonhar com o Sul, as terras ricas de São Paulo-Paraná. Os que voltavam traziam novas histórias. Contavam as aventuras de uma cidade com mais de trinta léguas de ruas. Onde, durante o dia, um ajudante de pedreiro se besuntava na massa e na cal preparando o reboco para os edifícios em construção e, à noite, se lavava todo, se perfumava e se vestia igual a um doutor – para tanto o dinheiro dava (TORRES, 1997, p. 50)

Pelo excerto, acima destacado, pode-se dizer que o desejo de fuga para as terras do Centro-Sul habitava o universo mítico do nordestino: o sonho mítico de habitar em uma terra onde “corresse leite e mel” não foi apenas prerrogativa do povo hebreu na gênese bíblica, mas fora difundido por todos aqueles que sofriam com a extrema pobreza e a inclemência da natureza.

Ao nos debruçarmos sobre a figura de Totonhim, vemo-nos diante de uma personagem ligada à terra natal a antever por meio de flashbacks suas memórias telúricas, sua infância, a lembrança passada de seus amores, o suicídio de seu irmão Nelo, circunscritos em um cenário rústico, agreste, castigado pela seca que empurra os filhos da terra para a região Centro-Sul “na esperança de venderem sua força de trabalho por um preço mais justo e recompensador: sem emprego e sem pão ninguém pode viver com as vicissitudes de uma natureza rústica” (AB”SABER, 1999, p.26).

Totonhim, por sua vez, é o migrante honoris causa, que finca suas raízes na terra da promissão, desvencilha-se das agruras da seca, mas não de suas lembranças, memórias e/ou recordações mais sublimes e/ou dolorosas, que faz a viagem de volta, com a intenção de atenuar um intenso sentimento de culpa em relação ao pai, depois de ter faltado à comemoração dos seus oitenta anos – o tom de reconciliação e de rememoração estão bem presentificados neste romance:

Eis-me de regresso a essa terra de filósofos e loucos, a começar pelo meu pai, que disso tudo tem um pouco.

E se aqui estou é por causa dele mesmo. Ou melhor, dos seus oitenta anos. Foi uma festa de arromba, me disseram. No dia seguinte!

Um presente de grego, pensei, sem saber se ria ou chorava. Sim, só fiquei sabendo quando tudo já havia acabado e todos já estavam pegando o caminho de volta. E aí uma boa alma deu por falta de uma rês que fazia muito se desgarrara do rebanho (TORRES, 1997, p. 7).

Totonhim e Fabiano – dois homens do sertão, ambientados e acostumados com o sofrimento e as agruras do povo nordestino. Duas visões, dois mundos que:

(…) Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nelas. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O Sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos, além de Nelo e Totonhim (RAMOS, 1997, p.126, grifo nosso)

Em suma, pelo viés da perspectiva comparatista, verificamos que as imagens emblemáticas que atravessam os romances de Graciliano e Antônio Torres, são imagens embotadas pelas marcas de um sertão que é duro, áspero, estóico, que deixa ora sem seiva, secas as vidas que teimam em habitá-lo em um primeiro momento, mas que enternecem aqueles que migram, a exemplo de Totonhim, incutindo-lhes recordações ternas, às vezes dolorosas, delicadas e/ou telúricas.

REFERÊNCIAS

AB’SABER, Aziz Nacib. O Sertão e os Sertanejos: Uma Geografia Sofrida. In: Dossiê Nordeste Seco – Revista de Estudos Avançados. São Paulo: USP, v. 13, nº 36, p. 7-59, maio-ago. 1999.

ARAÚJO, Jorge de Souza. O Estatuto Literário d’Os Sertões. In: Légua e Meia: Revista de Literatura e Diversidade Cultural. Feira de Santana: UEFS, nº 1, p. 137-161, 2001-2.

ALBUQUERQUE, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e outras Artes. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2001.

ALMEIDA, José Maurício Gomes de. A Tradição Regionalista no Romance Brasileiro, 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 35. ed. São Paulo: Cultrix, 1997.

CASTELO, José Aderaldo. A Literatura Brasileira – Origens e Unidade (1500-1960). São Paulo: Edusp, 1999, p. 298-322, vol. 2.

FONSECA, Aleilton; PEREIRA, Rubens (Orgs.) Rotas e Imagens – Literatura e outras Viagens. Feira de Santana: UEFS, 2000.

LINS, Álvaro. Valores e misérias das Vidas Secas. In: RAMOS, Graciliano. Vidas Secas, 73. ed. Rio, São Paulo: Record, 1997, p. 125-155.

MORAES, Marcos Antônio de. Regional, universal (Prefácio para Vidas Secas no Uruguai). D.O. Leitura, ano 2005, n. 1, P. 16-29. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.

OLIVIERI-GODET, Rita; SOUZA, Lícia Soares de (Orgs.). Identidades e Representações na Cultura Brasileira. João Pessoa: Idéia, 2001.

SANTANA, Affonso Romano de. Análise Estrutural de Romances Brasileiros. 7. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1989.

SOUZA, Antônio Gabriel Evangelista de. As Marcas da Travessia: Uma Leitura de Essa Terra e O Cachorro e o Lobo, de Antônio Torres. 2003. 106 f.Dissertação (Mestrado em Literatura e Diversidade Cultural) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 73. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997.

TORRES, Antônio. O Cachorro e o Lobo. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997.
________________

SOLANGE ARAÚJO FIORAVANTI – Graduada em Letras Vernáculas, tem Mestrado em Literatura e Diversidade Cultural (UEFS, 2008), além de Especialização em Estudos Literários (2005) e Especialização em Metodologia e Prática de Ensino da Língua Portuguesa (2001), é professora do Colégio Polivalente em São Gonçalo dos Campos -Bahia.