Dois contos e um terceiro texto – Ninfa Parreiras e Virgínia Heine

Revista Psychê – Ano V – nº 7 – São Paulo – 2001

Ninfa Parreiras
Virgínia Heine

Resumo

Pensando sobre sonho, fantasia, desejo e a possibilidade de transitar entre a consciência e as pulsões inconscientes analisaram dois contos. Considerando suas fantasias e realidades, observamos uma proposta invertida de movimento. “Aí pelas três da tarde”, de Raduan Nassar, parte da realidade cotidiana em direção ao sonho: traços da perspectiva de um eu adulto. “Por um pé de feijão”, de Antônio Torres, revela o aliança de um menino com a capacidade de sonhar do pai e, por identificação, promove a idéia do eterno retorno do sonho. Diante da perspectiva do sonho como propulsor da realidade, decidimos construir um terceiro texto, como espaço de encontro entre literatura e a psicanálise.

Unitermos

Sonho; fantasia/realidade; prazer/desprazer; psicanálise/literatura; elaboração no conto/elaboração na clínica.

Psicanalisando a literatura e escrevendo a psicanálise

“O simbolismo onírico se estende muito além do âmbito dos sonhos; não é peculiar aos sonhos, mas exerce uma influência dominante similar sobre a representação nos contos de fadas, nos mitos e lendas, nos chistes e no folclore. Permite-nos rastrear as íntimas ligações existentes entre os sonhos e estas últimas produções. Não devemos supor que o simbolismo onírico seja uma criação do trabalho do sonho; com toda probabilidade, ele é uma característica do pensar inconsciente que fornece ao trabalho do sonho o material para a condensação, o deslocamento e a dramatização” (FREUD, 1901, p. 610).

Aprendemos com Freud que a literatura e a psicanálise relacionam-se com ampla intimidade. As artes em geral, as criações populares, as crenças, mitos, causos, as histórias: todas estas linguagens comunicam-se e interagem, formando uma expressão de cultura. Quanto à psicanálise, pode-se dizer que é um saber que transformou definitivamente o pensamento da humanidade principalmente por ter transitado, sem medo nem pudor, pelo mundo do irracional. Foi pela descoberta de um inconsciente dinâmico que se tornou possível identificar um homem senhor da razão, mas portador de um eu capaz de produzir desejos os mais incompatíveis com esta mesma razão. Com isso, seus desejos inconscientes passaram a lhe pertencer, e não a existir como projeções externa e estranhas a si mesmo. Desse modo, este eu — estranho e projetado — passou a pertencer ao mesmo homem racional, inserido numa cultura, ser social, e sujeito de sua própria vida. Deus e o Demônio passaram a habitar o mesmo homem, como duas faces de uma mesma alma.

Com a psicanálise, o homem pôde juntar as partes separadas de si mesmo. Mas, ao mesmo tempo, deixou de ser o herói imbatível, um deus sem par, capaz de dominar o mundo, a não ser que estivesse diante de seu alterego, um deus maior, uma projeção amplificada de si mesmo, seja Deus ou o Destino, mas sempre alguém ou algo limitador de seus medos e angústias. A psicanálise integrou o homem num ser único, capaz de amar e odiar, de ser bom e mau ao mesmo tempo; do mesmo modo que lhe tirou a onipotente posição de centro do mundo. A psicanálise é uma passagem entre a ciência e a filosofia, entre a psicologia, a biologia, a antropologia, as artes, a literatura e os mitos. A psicanálise é um saber que dialoga com todos estes outros saberes: é um conhecimento e uma prática que está entre. Em suma, sem transigir num estatuto moral, o que faz a psicanálise é ouvir a verdade do sujeito transitar entre o bem e o mal, produzidos no interior de um mesmo eu, movido a pulsões — ou destrutivas ou de construção de vida; um eu que ora é movido a prazer, ora a desprazer, que simboliza, que cria, que fantasia, que está inscrito num mundo regido por um real, mas que continua sonhando…

A literatura é uma expressão, uma modalidade de arte, que existe desde que o homem teve a iniciativa de registrar sua capacidade de simbolizar e de criar. O que resolvemos fazer aqui foi criar um terceiro texto, capaz de ler a criação literária através dos recursos teóricos psicanalíticos. Para isso, lançamos mão de nossa própria maneira de interpretar e de ler o discurso literário e o conhecimento psicanalítico, sem deixar de lado nossas crenças particulares, nosso jeito de ver o mundo. Escolhemos dois contos de autores brasileiros para analisarmos: um de Raduan Nassar, “Aí pelas três da tarde”, outro de Antônio Torres, “Por um pé de feijão”. Raduan teve dois romances adaptados para o cinema, Um copo de cólera e, ainda em processo de edição, Lavoura arcaica. Já Antônio Torres foi recentemente homenageado pela Academia Brasileira de Letras com o prêmio Machado de Assis.

A escolha desses contos não foi casual, porque ambos sugerem uma espécie de movimento invertido. Se o primeiro interrompe a realidade para inscrever o espaço do sonho, o segundo propõe o eterno retorno do sonho como alimento da realidade. Enquanto um parte da realidade, o outro parte do sonho. Mas ambos sugerem psicanaliticamente que nem a realidade nem a fantasia ou o sonho são capazes de existir sozinhos, por causa da eterna impossibilidade humana de lidar com a completude. Isto nos faz lembrar Winnicott (1975), quando diz que é preciso primeiro criar a ilusão para depois desiludir, caso contrário não se é capaz de dialetizar com a vida e a morte, com o bem e o mal, com a realidade e o sonho, com o prazer e o desprazer. E todo este movimento dialetizante existe ao longo da vida, jamais completando nada, jamais finalizando nada, enquanto existir vida…

Interpretando os contos e lendo os sonhos…

“Aí pelas três da tarde” (Raduan Nassar)

“Nesta sala atulhada de mesas, máquinas e papéis, onde invejáveis escreventes dividiram entre si o bom-senso do mundo, aplicando-se em idéias claras apesar do ruído e do mormaço, seguros ao se pronunciarem sobre problemas que afligem ao homem moderno (espécie da qual você, milenarmente cansado, talvez se sinta um tanto excluído), largue tudo de repente sob olhares à sua volta, componha uma caia de louco quieto e preguiçoso, faça gostos mais calmos quanto os tais escribas mais severos, dê um largo “ciao” ao trabalho do dia, assim como quem se despede da vida, e surpreenda pouco mais tarde, com sua presença em hora tão insólita, os que estiveram em sua casa ocupados na limpeza dos armários, que você não sabia antes como era conduzida. Convém não responder aos olhares interrogativos, deixando crescer, por instantes, a intensa expectativa que se instala. Mas não exagere na medida e suba sem demora ao quarto, libertando aí os pés das meias e dos sapatos, tirando a roupa do corpo como se retirasse a importância das coisas, pondo-se enfim em vestes mínimas, quem sabe até em pêlo, mas sem ferir o pudor (o seu pudor, bem entendido), e aceitando ao mesmo tempo, como boa verdade provisória, toda mudança de comportamento. Feito um banhista incerto, assome depois com sua nudez no trampolim do patamar e avance dois passos como se fosse beirar um salto, silenciando de vez, embaixo, o surto abafado dos comentários. Desça, sem pressa, degrau por degrau, sendo tolerante com o espanto (coitados!) dos pobres familiares, que cobrem a boca com a mão enquanto se comprimem ao pé da escada. Passe por eles calado, circule pela casa toda como se andasse numa praia deserta (mas sempre com a mesma cara de louco ainda não precipitado), e se achegue depois, com cuidado e ternura, junto à rede languidamente envergada entre plantas lá no terraço. Largue-se nela como quem se larga na vida, e vá fundo nesse mergulho: corre as abas da rede sobre os olhos e, com um impulso do pé (já não importa em que apoio), goze a fantasia de se sentir embalado pelo mundo.”

“Aí pelas três da tarde”, desde o título, sugere uma imprecisão produzida pelo sonho. A história fala de alguém, um você, milenarmente cansado, que aparece entre parênteses, algumas orações após o começo do conto, que deve abandonar, aí pelas três da tarde, sua rotina burocrática. Tudo é muito impreciso; ao mesmo tempo tem a precisão de uma receita. Tem a seriedade filosófica das grandes descobertas, e o humor necessário às coisas mais simples da vida. O você é impessoal, a quem o narrador, ou o eu que fala, se dirige; mas se dirige como a um interlocutor inexistente, ou um você, um eu qualquer, o eu do próprio narrador, que deseja poder continuar vivo, através da possibilidade de sonhar, de fantasiar. O conto lembra um sonho diurno, uma fantasia consciente, daquelas que construímos quando estamos acordados, em estado de vigília. É um lapso de tempo, uma garantia de parada para reflexão. Tudo parece remeter a um eu que, e não preservar sua capacidade de sonhar, como também de entrar em contato com a consciência de si próprio, sucumbe, morre. . . morre em vida. Como nestes versos de Fernando Pessoa:

“Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!”

(PESSOA, 1986, p. 57)

Entretanto, se recuássemos um pouco na estrutura do conto, e consultássemos A interpretação dos sonhos, de Freud, arriscaríamos a dizer que o conto tem a organização de um sonho propriamente dito, aquele que acompanha o sono. Aparece sob a forma de uma narrativa, linguagem vertida da composição por imagens e movimento oníricos que predomina no conto. Nesse caso, o eu-narrador fala como se pretendesse efetuar uma elaboração secundária da seqüência de imagens que constitui o sonho-conto. Funciona, então, como uma fórmula bem estruturada de um sonho responsável pela realização de um desejo — no caso, seria o de abandonar a rotina burocrática, enfadonha e robotizada da realidade profissional, cooptada pela mecanização de desejos e de comportamentos. Imagem, movimento, desejo inconsciente, elaboração secundária, realização simplesmente onírica de um desejo recalcado pelas contingências do real. O conto é tudo isso, como num sonho acompanhado do sono. Mas este conto estimula um desejo de leitura que vai além das interpretações freudianas do sonho propriamente dito, porque instiga à idéia, igualmente psicanalítica, da necessidade humana de sonhar, no sentido de fantasiar e de criar o espaço do prazer. Por ser um material artístico, portanto elaborado pela consciência literária do autor, O conto transpõe o espaço do sonho materializado, e alcança as esferas do desejo consciente, o que reforça a idéia da necessidade do sonho como polaridade da realidade. Aí, o sonho guardião do sono, assim como o sonho de vigília – sinônimo da competência vital e das pulsões organizadoras da vida – ambos exortam à realização de um desejo, mas sem a pretensão de suprimir o recalque necessário à vida social; fato que é evidenciado na brevidade do conto, exatamente como é breve o guardião do sono. Daí o conto apontar inexoravelmente para a polaridade adaptação/transformação, além do universo onírico, integrando sonho e realidade, desejo e necessidade.

Raduan Nassar, neste conto, é econômico, é breve, porque empresta a este eu ficcional uma urgência de quem precisa sobreviver às vicissitudes da banalização da vida, da burocratização do sentimento, do endurecimento do comportamento; um eu que precisa se sentir vivo, largar tudo, ficar nu (desde que sua nudez não fira o seu próprio pudor)… Um eu que precisa sobreviver àquilo que o mata em vida; mas isto não é o bastante, precisa mais, tem a necessidade de se aproximar o mais que possa da integralidade de si mesmo, porque sobreviver não lhe basta.

O conto é tão breve quanto um suspiro. Apropria-se da vida veloz, sem sentido, sem sentimento, sem identidade, conforme o arremedo burocratizado da modernidade. Faz isto de forma igualmente breve, caso contrário, perderia a possibilidade de sintonizar com a realidade. Só uma fantasia sintonizada com a realidade veloz, moderna, sufocante, sem pausa, sem fôlego, pode produzir uma brecha para sua transformação. Sugere que as grandes transformações se realizam nas pequenas mudanças de atitude efetuadas na rotina mais comum, nas quais o que era complexo se torna simples e, por isto, eficaz. O conto incorpora a urgência da realidade em seu formato de parágrafo único, longos períodos, entrecortados por incontáveis vírgulas, pequenas pausas, que se distanciam cada vez mais de uma respiração plena. Já seu conteúdo remete um sentido de tempo amplificado, sem hora marcada, apenas embalado pelo mergulho fundo do embalo da rede, que embarca do terraço da realidade para o mundo do sonho. Vive-se a realidade, mas não se perde a capacidade de sonhar. Eis o que nos lembra Raduan Nassar! Este é o movimento da vida. O eu aconselha a este interlocutor que dispensa nome a largar tudo, como quem se larga na vida.

Não se vive só de realidade, como não se vive só de fantasia. Um ou outro estado, sem a complementaridade do outro, produz o enrijecimento da vida, sua patologização. A verdade que é proposta é provisória, não encerra nada, nem finaliza coisa alguma. O personagem sem nome de Raduan sabe disso, por essa razão propõe simplesmente um largo “ciao” ao trabalho do dia. Então, aí pelas três da tarde, hora imprecisa, porque se diferencia da precisão da realidade rígida, convoca a que se faça passar por louco, quieto e perigoso, abandone a rotina idêntica de todos os dias, chegue em casa, em horário incomum, deixe seus familiares boquiabertos, para enfim cometer o grandiloqüente gesto “revolucionário”: largar-se na rede, lá no terraço, assim como quem se larga na vida, e num mergulho profundo, gozar a fantasia de se sentir embalado pelo mundo. É assim porque o que é verdadeiramente grandioso é simples e se efetiva numa ação repentina do universo cotidiano. O pequeno e o grande se misturam, possibilitando a real transformação, através da ressignificação simbólica de nossos sonhos.

O conto é tecido de polaridades, que sugerem a dialetização das potencialidades do humano. O eu que convoca um outro, a outra possibilidade de si mesmo, sabe que o humano é constituído assim, de pares a um só tempo díspares e complementares, de polaridades. Freud diz que o amor só surge depois da primeira experiência de frustração, de ódio, quando o bebê tem a primeira vivência de diferenciação da mãe, e percebe que a fonte de ódio é a mesma do amor. A pulsão que se move na direção da vida busca a tensão, ao passo que a pulsão de morte é conservadora. Um desejo satisfeito sugere a quietação da tensão, do investimento, portanto permanecer aí, parado no sentimento de satisfação, pressupõe a paralisação do movimento, logo, da vida. Ou ainda, permanecer carregado de excitação não traz o prazer, mas seu oposto, o desprazer. No limite da vida está a morte, que não significa nada se não for em relação à vida. Buscamos o prazer, que só faz sentido genuíno se estiver ligado às possibilidades da realidade. Somos seres individuais e coletivos, sujeitos atravessados pela cultura; e jamais retornaremos ao paraíso perdido da vida total e indiferenciada do útero materno. Esta é a nossa condenação:

“Outro fato notável é que as pulsões de vida têm muito mais contato com nossa percepção interna, surgindo como rompedoras da paz e constantemente produzindo tensões cujo alívio é sentido como prazer, ao passo que as pulsões de morte parecem efetuar seu trabalho discretamente. O princípio de prazer parece, na realidade, servir aos instintos de morte” (FREUD, 1920, it 84-85).

A realidade exacerbada enrijece a vida, como a representada no conto. Entretanto, permanecer no seu oposto não traria o sentimento de prazer, apenas estabeleceria uma situação reativa. O eu-narrador sabe disso, daí conclamar um outro eu, um outro eu de si mesmo, a se dar uma oportunidade de sonhar, de fantasiar, num gozo embalado pelo mundo. O conto é breve e tem a velocidade de um sonho, mas sua lógica é a da vigília; e o que conclama é o tempo lento de um prazer satisfeito. O eu se dirige a um você (que pode ser todo mundo ou qualquer um), e o convoca a mudar toda a sua vida, num breve instante, imprecisamente situado aí pelas três da tarde. Este eu parece saber que a vida não se congela na morte, portanto transformar matematicamente a realidade num sonho seria nada além de forjar uma nova ilusão.

“Por um pé de feijão” (Antônio Torres)

“Nunca mais haverá no mundo um ano tão bom. Pode até haver anos melhores, mas jamais será a mesma coisa. Parecia que a terra (a nossa terra, feinha, cheia de altos e baixos, esconsos, areia, pedregulho e massapê) estava explodindo em beleza. E nós todos acordávamos cantando, muito antes do sol raiar, passávamos o dia trabalhando e cantando e logo depois do pôr-do-sol desmaiávamos em qualquer canto e adormecíamos, contentes da vida.

Até me esqueci da escola, a coisa que mais gostava. Todos se esqueceram de tudo. Agora dava gosto trabalhar…

Os pés de milho cresciam desembestados, lançavam pendões e espigas imensas. Os pés de feijão explodiam as vagens do nosso sustento, num abrir e fechar de olhos. Toda a plantação parecia nos compreender, parecia compartilhar de um destino comum, uma festa comum, feito gente. O mundo era verde. Que mais podíamos desejar?

E assim foi até a hora de arrancar o feijão e empilhá-lo numa seva tão grande que nós, os meninos, pensávamos que ia tocar nas nuvens. Nossos braços seriam bastantes para bater todo aquele feijão? Papai disse que só íamos ter trabalho daí a uma semana e aí é que ia ser o grande pagode. Era quando a gente ia bater o feijão e iria medi-lo, para saber o resultado exato de toda aquela bonança. Não faltou quem fizesse suas apostas: uns diziam que ia dar trinta sacos, outros achavam que era cinqüenta, outros falavam em oitenta.

No dia seguinte voltei para a escola. Pelo caminho também fazia os meus cálculos. Para mim, todos estavam enganados. Ia ser cem sacos. Daí para mais. Era só o que eu pensava, enquanto explicava à professora por que havia faltado tanto tempo. Ela disse que assim eu ia perder o ano e eu lhe disse que foi assim que ganhei um ano. E quando deu meio dia e a professora disse que podíamos ir, saí correndo. Corri até ficar com as tripas saindo pela boca, a língua parecendo que ia se arrastar pelo chão. Para quem vem da rua, há uma ladeira muito comprida e só no fim começa a cerca que separa o nosso pasto da estrada. E foi logo ali, bem no comecinho da cerca, que eu vi a maior desgraça do mundo: o feijão havia desaparecido. Em seu lugar, o que havia era uma nuvem negra, subindo do chão para o céu, como um arroto de Satanás na cara de Deus. Dentro da fumaça, uma língua de fogo devorava todo o nosso feijão.

Durante uma eternidade, só se falou nisso: que Deus põe e o diabo dispõe.

E eu vi os olhos da minha mãe ficarem muito esquisitos, vi minha mãe arrancando os cabelos com a mesma força com que arrancava os pés de feijão:

– Quem será que foi o desgraçado que fez uma coisa dessas? Que infeliz pode ter sido?

E vi os meninos conversarem só com os pensamentos e vi o sofrimento se enrugar na cara chamuscada do meu pai, ele que não dizia nada e de vez em quando levantava o chapéu e coçava a cabeça. E vi a cara de boi capado dos trabalhadores e minha mãe falando, falando, falando e eu achando que era melhor se ela calasse a boca.

À tardinha os meninos saíram para o terreiro e ficaram por ali mesmo, jogados, como uns pintos molhados. A voz da minha mãe continuava balançando as telhas do avarandado. Sentado em seu barco de sempre, meu pai era um mudo. Isso nos atormentava um bocado.

Fui o primeiro a ter coragem de ir até lá. Como a gente podia ver lá de cima, da porta da casa, não havia sobrado nada. Um vento leve soprava as cinzas e era tudo. Quando voltei, papai estava falando.

— Ainda temos um feijãozinho-de-corda no quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o milho para quebrar, despalhar, bater e encher o paiol, não temos? Como se diz, Deus tira os anéis, mas deixa os dedos.

E disse mais.

— Agora não se pensa mais nisso, não se fala mais nisso. Acabou. Então eu pensei: O velho está certo.

Eu já sabia que quando as chuvas voltassem, lá estaria ele, plantando um novo pé de feijão.”

Antes de partir para uma leitura do conto, optamos primeiramente por relatar uma experiência conhecida pelas crianças que passam pela escola. É aquela da aula de ciências, com um bago de feijão. Envolve-se o bago em um algodão molhado em água, deixando-o sobre um pires por uns poucos dias,.. Até brotar uma ponta verde do feijão. Para as crianças parece uma brincadeira mágica, mas é assim que aprendem o fenômeno da fertilização das sementes. Inseridas no mundo da fantasia, brincam, para aprender como os seres vivos se reproduzem. Encantam-se com a possibilidade de crescer um pé de feijão. Experiência esta que atende à realidade e à fantasia. O conto do escritor baiano Antônio Torres relata o encantamento de uma criança, mais precisamente de um menino, com a plantação e a colheita do feijão. Podemos percorrer cada descoberta, cada relato do menino, mergulhados em um campo onírico de fantasias. Esse conto pode nos levar ao caminho da interpretação dos sonhos. O sonho se utiliza do pensamento onírico, que por ser muito abrangente se expressa em outras atividades subjetivas. Recorrendo a Freud, compreendemos que os ingredientes das fantasias são os mesmos dos sonhos:

“Na produção da fachada do sonho empregam-se, não raro, fantasias de desejo presentes nos pensamentos oníricos sob forma pré-construída, e que têm o mesmo caráter dos apropriadamente chamados ‘sonhos diurnos’, que nos são familiares na vida de vigília” (FREUD, 901 p. 596).

Há um narrador que é criança, e um olhar também de criança que descreve as plantações, a ida à escola, a contagem de sacos, a descoberta da destruição, o contato com um fantasma, que queima e mata. Este menino vai contando como cada pessoa se emocionou com a colheita e com a destruição. Incorpora o olhar do outro, entristecido, quando fala da amargura da mãe. Mas é o sonho do pai que vai revigorar aquela criança, dando-lhe condições de olhar para frente, para “um novo pé de feijão”. Funciona como um porta-voz de cada afeto que se expressa.

Do ponto de vista pré-científico, que trata das questões dos sonhos, utilizado pelos povos da Antigüidade, o universo levava a humanidade a projetar-se no mundo externo, como se aquilo fossem realidades, coisas que, de fato, só tinham realidade numa experiência interna. É disto que Freud vai tratar nos dois volumes de A interpretação dos sonhos. Utilizando-se de sua própria experiência, relatando seus sonhos e os dos pacientes, desenvolve um estudo sobre os sonhos, que se revelam como realizações de desejos.

Ao acompanhar as associações de seus pacientes, que aos poucos iam ficando mais livres, reparava que, usualmente, o relato de um sonho fazia parte daquele repertório de associações. Por outro lado, foi motivado por sua experiência psiquiátrica com os estados alucinatórios em psicóticos, nos quais o aspecto da realização de desejos estava sempre presente. Perseguindo estes dois pontos principais, Freud inaugura um novo olhar para o sonho.

O sonhar pode tomar o lugar da ação, e adquirir uma função semelhante à do sintoma, que cria mecanismos repetitivos distanciados de um movimento efetivo de ação transformadora. Os sonhos noturnos são uma possibilidade de realização de desejos inconscientes; tais quais os devaneios diurnos, que expressam o ato de fantasiar. Aqui, num e noutro conto, o sonho é a garantia mesma da ação, portanto da transformação da vida do sujeito. Em “Por um pé de feijão”, os “sonhos” da criança traduzem seus desejos e de toda aquela pequena comunidade. Quando sua capacidade de sonhar parece esgotada com a destruição do monte de feijão, transfere-se para o desejo do pai, que resgata o que ainda ficou: o feijãozinho-de-corda no quintal das bananeiras, o quintal das bananeiras, o milho para quebrar, despalhar… O pai volta-se ao que parece doméstico: o quintal; já não era mais a plantação, o sonho grandioso. Mostra para o filho o mundo de casa, do quintal, o mundo interno que poderá retomar os sonhos. Já não dava mais para sonhar para fora, era preciso sonhar para dentro. Assim como no conto de Raduan Nassar, cujo eu-narrador já aprendera a idéia da riqueza da simplicidade…

Numa perspectiva metafísica, o conto aborda a transformação da vida, que nasce em grãos, morre em pó e renasce em sonhos. Para a criança e para o adulto, a transformação pode ser ameaçadora, com a possibilidade de perda. Muito o menino perdeu com a queima do feijão, havia ali uma nuvem negra devastadora. Desta passagem, surge novamente a possibilidade de sonhar.

Sabendo que a história se passa no interior do Brasil, no sertão da Bahia, terra do escritor, deparamo-nos com a adaptabilidade do sujeito daquelas terras secas, que sonha a partir da destruição. É um Brasil que vem mostrar a cara torta e árida. E é a literatura que dá voz ao homem do sertão, que universaliza suas angústias e sonhos.

O princípio da realidade e o princípio do prazer são trazidos pela mãe e pelo pai, respectivamente. A mãe se apega ao que queimou, voltando-se para uma realidade de seca, de falta. É assim que traz o menino de volta para a terra, para um contato com a realidade externa, objetiva, concreta. Já o pai pensa “longe” no perto, onde está o quintal, no amanhã, fazendo o menino sonhar de novo. Por outro lado, diante da decepção do sonho de pujança interrompido, a mãe não tolera o retorno da realidade do fracasso; enquanto o pai aceita a realidade dos fatos, como a única possível, portanto geradora de um novo projeto, moto de um novo sonho. Isto porque o conto de Torres não é linear nem despreza a complexidade humana, privilegiando a idéia da dinâmica da dialética. Sendo assim, a mãe também se volta para a fantasia, para uma frágil ilusão de prazer; bem como o pai se debruça sobre a realidade, a fim de reconquistar o sonho; estabelecendo o prazer como princípio restaurador de uma perspectiva futura de realidade.

Em relação ao Édipo, fica claro que o menino se identifica com o pai, quando pensa: “O velho está certo”. Depois de passar por aquela fala monótona da mãe, dialoga com o desejo do pai. Afinal, já tinha percorrido os olhos pelo monte de feijão queimado, pelos olhos esquisitos da mãe, pelos meninos, pela cara chamuscada do pai e pela cara de boi capado dos trabalhadores. Experimentou sua castração e pôde acreditar em um novo pé de feijão, a ser plantado pelo pai. Este era um pai que assumia a voz da autoridade, pouco falava, mas sentava “em seu banco de sempre”, que representa o lugar do poder paterno, constante e firme. Ao falar, manifesta uma ordem, que é obedecida por todos: “não se fala mais nisso. Acabou”. Ninguém retrucou àquela determinação do velho.

A experiência de castração do menino se dá aos olhos do leitor, já a do eu-narrador do outro conto está internalizada antes mesmo da fantasia criada no espaço literário, como revitalizada expressão de desejo. A castração em “Aí pelas três da tarde” é o próprio conhecimento de que a ruptura com o real só acontece a partir de sua relação dialética com o prazer, com a capacidade de brincar com a fantasia. A castração do menino de “Por um pé de feijão” só se torna possível depois da experiência identificatória com o pai e da renúncia à desconexão da mãe. Lá, o eu é adulto, urbano, cansado da retificação burocrática da vida e do trabalho. Aqui, o menino busca na referência paterna os elementos identificatórios que irão possibilitar seu crescimento. A rotina restaurada é a maneira de continuar a viver, no contexto do menino. A rotina do eu adulto precisa ser quebrada para que a vida passe a fazer sentido. Mas estes personagens sem nome têm em comum a luta pela identidade, a partir da experiência de castração, que vai enfatizar o movimento dialético entre o real e a fantasia, o sonho.

Restou ao menino falar pelo pensamento, como porta-voz de todos. De fato, ele já estava sendo o porta-voz das pessoas, das plantações, dos animais; o menino é a metáfora do desejo.

A história nos fala do sonho, dessas sementes que preservam a vida, mantendo o sujeito a sonhar. Remete-nos à grandiosidade da obra de Freud, que permanece atual, no contexto que seguimos para a leitura dos contos. A mudança que esta obra trouxe para a humanidade, ao revelar o lado inconsciente do sonho, é impactante ainda hoje, quando estamos diante de desejos interditados, que podem ser lidos nas produções artísticas.

O titulo “Por um pé de feijão” sugere uma expectativa uma aposta, um desejo de que alguma coisa aconteça. É o próprio anúncio de um sonho que está por vir, e mais outro, e mais outro… Ao encerrar a leitura do conto, estamos seguros de que virão outros pés de feijão, a partir daquele que está no quintal. O ato de plantar e de colher mostra-se como uma faceta da procriação humana e, como o Édipo, marca sua presença em diferentes gerações e produções artísticas. A revolução criada pelos dois personagens — protagonistas de suas histórias, personagens de ficção, qualquer um de nós anuncia uma ação; diferente do sonho noturno, do sonho guardião do sono, que busca substituir a ação verdadeira. Mas esta tentativa de viver a satisfação no espaço onírico apenas adia a evidência da ação propriamente dita, porque é a capacidade de sonhar que possibilita a transformação da realidade. Se o homem perdesse sua capacidade de sonhar, perderia sua capacidade de agir no mundo.

Nota-se uma identificação da criança com a plantação desabrochada, que partilhava uma alegria sem fim: “Toda a plantação parecia nos compreender, parecia compartilhar de um destino comum, uma festa comum, feito gente. O mundo era verde. Que mais podíamos desejar?”. No conto de fadas, de origem inglesa, “João e o pé de feijão”, publicado pela primeira vez em 1730, o personagem estabelece uma troca de uma vaca por cinco bagos de feijão. Ao serem plantados, vão se desenvolver rapidamente na forma de trepadeira. E aquela árvore alta, que quase alcança o céu, vai trazer uma vida de fartura para o pobre menino e sua mãe. Neste conto também há uma identificação do menino com a árvore. O feijão parece a semente mágica, que traz alegria e prosperidade. Depois de passar por muitas provas e aventuras, João e a mãe vão viver felizes para sempre. No conto de Torres, o feijão é a síntese da vida e da morte, símbolo da dialética sonho/ação (interferência no mundo real).

O envolvimento do narrador com os frutos da terra, fazia-lhe esquecer do que mais gostava: da escola. O prazer toma conta da criança submersa em um imaginário de fartura, de fertilidade. Os feijões ocupam o espaço do trabalho, do estudo, do lazer. Os feijões acolhem a libido do menino, como no conto inglês. Fazem a conexão entre o céu e a terra, um antigo desejo da humanidade, presente nas narrativas bíblicas “Torre de Babel” e “Escada de Jacó”. No conto de Torres, a tentativa de se alcançar o céu está presente na vida e na morte. Em relação à vida, quando colhem o feijão, empilhando-o em uma seva bem alta, que quase alcançava o céu. No que diz respeito à morte, ao ser queimado, o feijão produziu uma nuvem que subia para o céu. E, se pensarmos em termos de corpo investido de energia libidinal, podemos relacionar a isto a idéia de unificação das partes superior e inferior, através do umbigo/feijão, integrando a sexualidade — cabeça e genital.

No capítulo III de A interpretação dos sonhos, Freud nos fala dos sonhos freqüentemente se revelarem como realização de desejos. No conto, a experiência daquele menino com a plantação e a colheita revela uma realização de incontáveis fantasias: seja nos cálculos que fazia dos sacos de feijão, seja na festa que partilhava com os próximos, seja na explicação que ia dar à professora… E ainda no desfecho trazido pela possibilidade de sonhar, com o trabalho do pai.

Já a desgraça introduzida pela fantasia destrutiva: “… uma nuvem preta, subindo do chão para o céu, como um arroto de Satanás na cara de Deus”, não destrói a possibilidade de sonhar do menino. A fala do pai, investida numa aposta futura, num trabalho a ser abraçado, mostra-se como a face de um investimento libidinal que mantém a vida diante da possibilidade de destruição. É a vida que se torna possível exatamente a partir da experiência de castração (nuvem de fumaça), do ato de iludir e desiludir. E tudo isto é ensinado pelo pai ao filho, o que significa dizer que há o aprendizado de que a onipotência narcísica é quebrada pelo reconhecimento da necessidade de aceitação da castração, como condição vital do ser humano.

Aqui, o pai ensina ao filho que a castração é a contraface da ação vital. No conto de Raduan, o eu ficcional já tem conhecimento deste limite do humano em relação à vida e à morte. No conto de Antonio Torres, presencia mos o menino ir descobrindo suas limitações. Mas ambos se diferenciam do herói trágico, que acima de tudo não perde a soberba. O herói da tragédia faz da vida um ato de superação de obstáculos, com o qual se dedica à ilusão de se igualar a Deus. Também o herói trágico passa a limpo a existência humana através do conjunto de peripécias a que se vê submetido; o ato de existir é elaborado pelas vivências de satisfação e privação que experimenta. Mas o fim de seu percurso é o destino modelar a que se vê irremediavelmente atado.

Também em ambos os contos, o processo de ilusão/desilusão se dá; só que diferentemente do destino trágico do herói, atravessado pela hybris, a desmedida que ultrapassa a condição humana. E a saída para a limitação deste destino é a implantação (pelo conhecimento) do par sonho/ação, que produzirá um novo efeito na realidade; mas apenas a partir da experiência de castração.

A presença de Satanás e de Deus vem confirmar a idéia de que ambos podem habitar um mesmo sujeito, como duas faces de uma mesma alma. E o próprio pai do menino encontra a solução para a presença de Satanás ao afirmar: “Deus tira os anéis, mas deixa os dedos”. Ele consegue lutar contra aquela destruição aparentemente sem solução. Dá um destino para o seu lado destrutivo, traduzido nas reações dos outros (mãe, meninos, trabalhadores…), na aposta de um novo pé de feijão. O conto nos prova que a dualidade pulsional habita em cada um de nós e, mais uma vez, um dito popular utilizado pelo autor resume este convívio ambíguo entre pulsão de vida e pulsão de morte: “que Deus põe e o diabo dispõe”. Retomando Freud:

“A alma popular comporta-se aqui como geralmente o faz: acredita no que deseja” (FREUD, 1901, p. 602).

E o texto da clínica

Conforme atesta Ernest Jones, no primeiro volume de A vida e a obra de Sigmund Freud, o interesse de Freud pelos sonhos data de muito cedo, provavelmente da infância: “ele sempre sonhou muito e mesmo bem cedo não apenas os levava em consideração como também os registrava”. Seus sonhos já estavam fadados a virar literatura. Este interesse levou-o a criar a maior obra de sua vida, que passados cem anos da primeira edição, continua a oferecer material clínico e teórico para a psicanálise, para a literatura e para a cultura neste novo milênio. O próprio Freud teria afirmado, no prefácio para a terceira edição inglesa da obra, que “uma percepção como esta ocorre apenas uma vez na vida”. Por isso, é designada como a via regia para o inconsciente.

A abrangência utilizada na obra atravessa os limites da psicanálise por entrar em outras áreas, como a literatura, a mitologia e a filosofia. De fato, esta exploração de outros campos do conhecimento é o que nos permite estar aqui agora construindo um “terceiro texto”, a partir da leitura de dois contos de autores brasileiros contemporâneos. A interpretação dos sonhos pode ser considerada a maior obra de Freud, por ser a mais original, na qual ele fez poucas modificações no texto bruto e por trazer conclusões novas e inesperadas. Basta relacioná-la à auto-análise de Freud, que se iniciou em 1897, no período em que já escrevia sobre os sonhos. Ele já havia associado a estrutura dos sonhos à das neuroses. E é neste mesmo período que identifica os componentes do complexo de Édipo: o sentimento hostil por um dos pais e o amoroso pelo outro. Em contato com os resíduos infantis presentes nos sonhos, deparou-se com os desejos não conhecidos que eram reeditados na vida onírica. Estamos diante de um dos trabalhos em que Freud mais se expõe, em que mostra sua auto-análise, abrindo para a humanidade um espaço de compreensão dos sonhos e dos desejos neles travestidos.

Com a abertura deste espaço trazido por Freud, podemos debruçar-nos sobre a literatura e acompanhar os rastros de uma produção que fala pelo corpo, pelo desejo de quem escreve. Esta escrita faz mais sentido quando lida (interpretada), como os sonhos relatados pelos pacientes. Ao serem falados, são nomeados, ganham voz e silêncio, para serem associados ao que puder ser recuperado. A escrita serve aos escritores como um registro de seus sonhos, que muitas vezes são coletivos, falam pelos que vão ler o texto. A escrita e a leitura são, assim, desejos de uma construção subjetiva, de continuar a escrever, a ler, ou seja, a trabalhar e a viver. Retomamos a impessoalidade verificada nos dois contos, que vai ganhar voz e corpo na produção literária. A literatura nomeia o impessoal, personificando até o não dito.

Partimos de uma realidade interrompida no conto de Raduan, para acolher o fazer onírico, para dar novos sentidos ao que é lido e experimentado no texto. Também partimos de um fazer onírico, no conto de Torres, que impulsiona a criação e a vida. Trazemos com o nosso terceiro texto um olhar focado nas lentes da literatura e no que ela pode prestar à psicanálise, não fechando interpretações, mas descobrindo outras maneiras de sonhar, de escrever, de ler e de existir.

Eis a maior angústia do homem, e também seu mais importante patrimônio: sua diversidade, seus contrastes e diferenças. Trata-se de alguma coisa que vai além de uma disponibilidade contraditória, porque diz respeito a pólos dialéticos, que garantem a dinâmica da vida interna do sujeito. Como não poderia ser diferente, na clínica nos deparamos com isto. Angustiados, nossos pacientes nos procuram para salvá-los de seus conflitos, para que os ajudemos a compreender melhor as forças diversas que os impulsionam a lugares antagônicos. Muitas vezes não sabem entender porque querem algo que não desejam.

Assustados, esperam ser socorridos da tensão de existir, anseiam pela totalidade e completude que não encontram jamais.

O trabalho do analista, como o texto literário, é uma possibilidade de construção de um terceiro espaço, uma nova via de investimento vital. A produção literária favorece uma trajetória plástica e formal do texto interno do escritor. O espaço analítico é inscrito pelas relações transferenciais e pela dinâmica do inconsciente, que permitem ao analisando um novo contato com sua história. A criação literária e a presença do analista são a terceira via de acesso que o sujeito passa a ter consigo mesmo, com suas pulsões. O escritor faz de sua criação um lugar organizador de suas múltiplas emoções inconscientes. A relação que o paciente estabelece com o analista funciona como um terceiro texto, uma nova edição de possibilidades de vida, escrita em parceria. Guardadas as devidas diferenças, cada um é capaz de criar um espaço transformador das velhas escolhas, pelo contato em si e pela possibilidade de sublimar, ou ressignificar antigos investimentos repetitivos. Este terceiro funciona como um limite, como referência de uma nova perspectiva, de uma perspectiva outra, modificada de vida.

Associar a psicanálise à literatura é, antes de mais nada, responder a uma necessidade de tornar sensível e plástica a relação terapêutica; uma vez que as duas atividades dão um sentido novo àquilo que parecia paralisado, sem forma, sem corpo. Por isso, trabalhar com o texto literário, do ponto de vista formal e significativo, só faz redimensionar esteticamente a força e a beleza da atividade clínica.

Referências Bibliográficas

FREUD, S. (1901). Sobre os sonhos. In Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1987, p 610.

(1920). Além do princípio de prazer. In Obras completas. Rio de Janeiro: Imago. 1987, p. 84-85.

JONES, Ernest. A vida e a obra de Sigmund Freud. v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1989.

KEHL, Maria Rita. Os domínios da paixão em psicanálise. In NOVAES, Adauto (Coord). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

LAPLANCHE, 1; PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

NASSAR, Raduan. Aí pelas três da tarde. In MORICONI, Ítalo (Coord.). Os cem melhores contos do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

PESSOA, Fernando. Mensagem (fragmento do poema). In Melhores poemas (seleção do Teresa Rita Lopes). São Paulo: Global, 1986, p. 57.

PHILIP, Neil. João e o pé de feijão. In Volta ao mundo em 53 histórias. Il. De Nilesh Mistry. Trad. De Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1998.

ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michael. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

TORRES, Antônio. Por um pé de feijão. In MORICONI, Ítalo (Coord.) Os cem melhores contos do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

Ninfa Parreiras

Psicóloga clínica (PUC/RJ), em formação psicanalítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Dayle/RJ; especialista em literatura; graduada em Letras (PUC/RJ)

Virgínia Heine

Psicóloga clínica (PUC/RJ); mestre em Letras (PUC/RJ); especialista em literatura.

Do livro “Meninos, eu conto” (Record, 1999).

Duas capas do livro Meninos eu conto

Antônio Torres e Miguel Torga: Visões do Sertão no olhar do Menino (1)

Marcelo Brito da Silva (UEFS) (2)

A infância é um momento privilegiado da vida de um escritor, de onde ele pinça retalhos de experiências que podem servir de pontos de partida para a aventura da ficção. No artigo de Aleilton Fonseca, cujo título começa sugestivamente em “Escreviver…”, ele destaca, tomando como exemplo dois contos de sua própria autoria, que

a vida nutre a ficção, as vivências da infância constituem materiais privilegiados. A criança vive situações e registra impressões que estão muito além de sua maturidade e, portanto fogem à sua compreensão mais profunda. Guardados na memória, essas impressões e registros afloram à mente do adulto que, então capaz de melhor compreender e, em alguns casos, encontrar significados e acomodações de sentido, tornam-se, para os escritores, elementos de recriação, forjamento e estruturação, como argamassa de escritos que se fundamentam na biografia, mas se estatuem como ficção. (FONSECA, 2005, p.77)

No prefácio de Meninos, eu conto, Antonio Torres escreve: “Estas histórias […] são de outra era. Mas ainda compartilho os sonhos, os sentimentos e os conflitos desses meninos. Um dia eles e eu já fomos as mesmas pessoas. Ou por outra: até hoje me sinto como se fosse um deles.” (TORRES, 1999, p.10). Com efeito, o livro reúne três contos que remetem a experiências de uma infância sertaneja, com suas alegrias, frustrações e descobertas, narradas pela voz do menino ou que têm o menino como personagem principal. O que interessa ressaltar é que, como afirma Aleilton Fonseca, em resenha sobre o livro, os meninos das histórias e o narrador adulto se refletem na escrita, como num jogo de espelhos “e demarcam o seu distanciamento no tempo e a sua proximidade afetiva.” (FONSECA, on line) É pelo olhar do menino, ressignificado pelo narrador- autor (3), que podemos investigar o imaginário do sertão que se emoldura no conto em apreço.

1 Artigo apresentado como comunicação oral no Seminário Narrativas de Viagens do Junco ao Mundo: 70 anos de Antonio Torres, realizado nos dias 8 e 9 de setembro, na Universidade Estadual de Feira de Santana, Bahia.
2 O autor é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS e bolsista FAPESB.
3 Adotamos aqui o conceito de “autor implícito” proposto por Wayne Booth, no livro A retórica da ficção, segundo o qual não se pode apagar a presença do autor na obra. Para Booth, o narrador, assim como outros elementos da narrativa, são manipulados pelo autor implícito que é uma imagem do autor real criada pela escrita. (BOOTH, 1980).

Miguel Torga (4), de modo análogo, ambientou muitas de suas histórias no interior rural de sua infância, em Trás-os-Montes. Nelas, encontra-se um painel de tipos os mais diversos, heróis e anti-heróis, homens, mulheres, velhos e crianças, que compartilham uma fraternidade de raiz e que emprestam aos contos um tema central, nas palavras de Oscar Lopes – a luta pela sobrevivência (apud SANTANA, 2008). Nesse mar de histórias torguianas, encontramos alguns contos que focalizam o olhar deslumbrado e às vezes desiludido da criança, que tentando entender o espetáculo da vida rural, traça um perfil do sertão português, que não se mostra muito diferente do sertão baiano das narrativas de Antonio Torres, onde as personagens vivem o calvário da enxada cotidiana.

(4) Miguel Torga, pseudônimo literário do médico Adolfo Correia da Rocha, nasceu em 1907, em São Martinho de Anta (Trás-os-Montes) e faleceu em Coimbra, em 1995. Sua obra multifacetada envolve poesia, conto, romance, diário, relatos de viagem e teatro. Destacou-se como contista, sendo apontado por alguns críticos como um dos maiores escritores do gênero na literatura portuguesa contemporânea.

Cid Seixas chama atenção para o aspecto autobiográfico que também sublinha as narrativas de Miguel Torga. Seixas argumenta que a ficção do escritor transmontano “[…] é construída a partir de pedaços vivos da realidade agreste da sua região natal. Os fatos mais insólitos e aparentemente criados pela fantasia são, na verdade, reconstituições de experiências vividas.” (SEIXAS, 1996, p.7).

Vale ressaltar que a ideia de memória que aqui desenvolvemos descarta a possibilidade de um resgate absoluto do passado. O passado é revisitado e ressignificado à luz do sujeito que lembra e que não pode desvencilhar-se dos condicionamentos do presente. Como explica Ecléia Bosi,

A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto das representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. (apud DIAS, 2006, p.33).

Com isso em vista, retomamos o pensamento de Aleilton Fonseca, quando afirma que a memória, ressignificada pelo escritor que recorda o passado, aponta para acontecimentos que fizeram parte de sua biografia, mas que, na verdade, ganham na

escrita nova força e, principalmente, novos sentidos, ou seja, aqueles construídos pela arte da ficção. O impulso biográfico, assim, não pode ser ajuizado como um elemento que reduz ou limita o valor de uma narrativa ficcional.

O conto Por um pé de feijão começa com o menino narrador contando o caso da surpreendente abundância ocorrida certa feita no Junco (5), traduzida numa colheita farta de feijão e numa paisagem a “explodir de beleza” (TORRES, 1999, p.31). Mas tal fartura é colocada, desde o início, como um caso de exceção: “Nunca mais haverá no mundo um ano tão bom”. (TORRES, 1999, p.31). A experiência era tão inusitada que o menino narrador se esquece até de frequentar a escola. “Agora dava gosto trabalhar”. (TORRES, 1999, p.31) Esse comentário ressalta a contrario, a luta muitas vezes sem compensações do homem com a terra do sertão.

A paisagem é retratada em harmonia com o povo a celebrar, extasiado, a generosidade da terra. A descrição do espaço lembra um cenário quase idílio, mas que mostrará os seus “poréns”, em consonância com a indagação da criança quase em tom de presságio: “Toda plantação parecia nos compreender, parecia compartilhar de um destino comum, uma festa comum, feito gente. O mundo era verde. Que mais podíamos desejar?” (TORRES, 1999, p.32, grifo nosso)

Daí, o menino discorre sobre a colheita, o armazenamento, os preparativos para a bata do feijão, todos a apostar num resultado cada vez mais otimista. Quando o menino retorna à escola, não entende a professora que fala em “perder o ano”, sendo que, para ele, estaria a ganhar o ano, já que aquela colheita farta era sinônimo de estabilidade e de dias sem fome. No entanto, ao voltar da escola, o menino testemunha o que para ele foi “a maior desgraça” (TORRES, 1999, p.33), ou seja, o espetáculo da colheita de feijão sendo toda consumida pelo fogo. A criança, tateando em meio àquela tragédia, procura entender e pesar o acontecido lendo o rosto e o palavreado dos pais: “Durante uma eternidade só se falou nisso: Deus põe e o diabo dispõe.” (TORRES, 1999, p.34) É interessante notar que o autor não “atualiza” a experiência do narrador, prefere manter o tom de inocência e de incompreensão para representar as reações do menino diante das circunstâncias: “E eu vi os olhos de minha mãe ficarem muito esquisitos […] E vi os meninos conversarem só com o pensamento […] e minha mãe

(5) Terra natal de Antonio Torres, hoje Sátiro Dias, cidade situada no sertão baiano, a 205 Km de Salvador.

falando, falando e eu achando que era melhor se ela calasse a boca.” (TORRES, 1999, p.34).

Como observador daquele sofrimento que também era o seu, o menino narrador percebe a atitude do pai que, após um período de angústia silenciosa, resolve romper com o ciclo de murmurações da família e juntar os retalhos de esperança: “Deus tira os anéis, mas deixa os dedos. […] Agora não se pensa mais nisso.” (TORRES, 1999, p.35) O menino nota a atitude do pai, e, solidário, pensa consigo: “O velho está certo.” (TORRES, 1999, p.35) Esse comentário derradeiro aponta para a vitalidade do homem sertanejo e sua resignação diante de um destino na maioria das vezes adverso.

Por um pé de feijão sintetiza talvez a primeira experiência de perda e de desilusão do menino sertanejo, que cedo na vida aprende a conviver com as privações. Não é só contra a escassez da terra e das benesses sociais que ele precisa lutar, somam- se a elas os golpes do destino.

O conto O cavaquinho, de Miguel Torga, posiciona o foco narrativo num menino pobre de dez anos de idade, que, a despeito da extrema miséria em que vive com os pais, recebe a promessa de que ganharia um presente no natal.

No transcorrer do conto, o narrador mergulha na psicologia do pequeno Júlio e revela uma mistura de esperança e apreensão, pois o sonho do presente poderia desaparecer sob a sombra de tantas privações. O enredo se desenvolve equilibrando de um lado a expectativa da criança e de outro, em contraste, a descrição tocante da pobreza e de uma atmosfera pressurosa cujo símbolo mais importante era o vento, como a avisar uma desgraça iminente.

Como o menino do conto de Antonio Torres, aqui a criança fica tão absorvida pelo ineditismo da experiência, que não se concentra nas tarefas costumeiras e perde até a fome, como lemos na passagem:

– Tu parece que andas parvo, rapaz!
A mãe não podia compreender o que significava para ele receber uma prenda – estender a mão e ver nela, não a malga de caldo habitual, mas qualquer coisa de inesperado e gratuito, que fosse a irrealidade da riqueza na realidade duma pobreza conhecida de lés a lés. Por isso se arreliou tanto quando o viu, ao almoço, virar a cara aos carolos, e ao meio-dia comer apenas o rabo de uma sardinha. (TORGA, 1996, p.61)

O narrador preserva a compreensão parcial e gradativa da criança, como ocorre em Por um pé de feijão. O menino acompanha o desespero crescente da mãe com a demora do esposo, que fora à feira dos 23 (Feira de Natal), para de lá trazer o presente. A mãe parece farejar a desgraça, que se torna concreta com a notícia trágica que encerra o conto:

O coração deu-lhe um baque. Então o tio Adriano voltava sozinho?!

Pôs-se a ouvir, como um bicho aflito.

E daí a nada sabia que o pai fora morto num barulho, e que no sítio onde caíra com a facada lá ficara ao lado dum cavaquinho que lhe trazia. (TORGA, 1996, p.63)

A surpresa tão desejada deixa de ser o presente e torna-se a crua e irreversível fatalidade. Um história tocante que, como ocorre também no conto de Antonio Torres, fala de um sertão de alegrias efêmeras, de uma realidade que deixa marcada a retina do menino que vive uma experiência ainda pouco compreendida.

Há nas duas representações do sertão o confronto entre o deslumbramento da criança e o lance reverso do destino. Mas a coincidência não se resume à perspectiva narrativa ou ao registro de uma desilusão. Quanto às questões formais, podemos aproximar os dois contos no que toca ao uso de uma dicção sertaneja que inclui o tradicional recurso ao provérbio, a uma sintaxe mínima e a opção por uma linguagem disfêmica que evita atenuações.

Verificamos nos dois contos a representação de um sertão que amadurece precocemente a criança e caleja cedo o seu olhar no sofrimento circundante. O sertão é o seu lugar, o seu chão, sua matriz identitária, seja o da Bahia, seja o de Trás-os- Montes, um espaço que lança o leitor no centro de reflexões que transcendem as fronteiras locais. Um sertão, em ambos os contos, marcado pelo isolamento, pelas privações e por relações interpessoais regidas por uma ética própria, forjada em modelos ancestrais. É o sertão de Torres. É o sertão de Torga. Separados por um oceano, mas próximos pela força de uma ficção que aponta para aspectos universais da condição humana.

REFERÊNCIAS:
BOOTH, Wayne. A retórica da ficção. Tradução de Maria Tereza H. Guerreiro.

Lisboa: Arcáda, 1980.

DIAS, Márcio Roberto Soares. Da cidade ao mundo: notas sobre o lirismo urbano de Carlos Drummond de Andrade. Vitória da Conquista, BA: Edições UESB, 2006.

FONSECA, Aleilton. Escreviver: (Des)encontros da ficção com a biografia. In: BEDASEE, Raimunda. (Org.) A (auto)biografia / L’(auto)biographie. Edição bilíngue. Feira de Santana, BA: Universidade Estadual de Feira de Santana; Tours: Université François Rabelais, 2005. p.75-89.

FONSECA, Aleilton. Antônio Torres: o estilingue da memória. Disponível em <https://www.antoniotorres.com.br/vida&obra.htm> Acesso em 01.ago.2010.

SANTANA, Maria Helena Jacinto. Notícias do Paraíso: o povo rural nos contos de Miguel Torga. In: ACTAS DO COLÓQUIO COMEMORATIVO DO NASCIMENTO DE M. TORGA, (M. Fátima Marinho, org.), NEL – Studies in Literature, 8, Porto, FLUP / Munchen, Martin Meidenbauer, 2008, pp. 155-165.

SEIXAS, Cid. Os sonhos do sujeito e sua construção social. In: TORGA, Miguel. Contos da montanha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1996, p. 1-8.

TORGA, Miguel. Contos da montanha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1996. TORRES, Antonio. Meninos, eu conto. São Paulo: Record, 1999.

Duas capas do livro Meninos eu conto

Meninos,eu conto: Resenha de Gerana Damulakis publicadas no jornal “A Tarde” de Salvador, Bahia

MENINOS, EU CONTO : Antônio Torres, Editora Record, Rio de Janeiro, 1999, 79 pp.

Catalogado como literatura infanto-juvenil, Meninos, eu conto não deve ficar restrita aos adolescentes. São três contos deliciosos, todos tendo como personagem principal um menino do interior, talvez reminiscências da infância do autor, acrescidas de alguma ficção.

Antônio Torres nasceu num lugar como aquele no qual ambienta suas três histórias: natural de Junco, interior sertanejo da Bahia, hoje uma cidade cujo nome é Sátiro Dias, o escritor descobriu seu talento para a literatura ainda nestes tempos de menino da escola rural. Incentiva pela professora, Torres se tornou o escritor das cartas das pessoas do lugar e a recitar os poemas de Castro Alves nas datas festivas. Começou, assim, o caminho que realmente veio a seguir: o de escritor.

Já em Salvador, foi repórter do Jornal da Bahia e daqui foi para o sul como jornalista e publicitário. Estreou na literatura em 1972. Atualmente, mora no Rio de Janeiro, e é reconhecidamente um ficcionista representativo de sua geração, tendo livros traduzidos em vários países. Dentre os dez mais festejados, estão os volumes de Essa terra, de 1976, saído pela Ática, e Um táxi para Viena d’Áustria, de 1991, pela Companhia das Letras. Igual repercussão teve O cachorro e o lobo, já pela Record, em 1997.

Este Meninos, eu conto traz as histórias curtas: “Segundo Nego de Roseno”, “Por um Pé de Feijão” e “O Dia de São Nunca”, quando o tempo parece suspenso entre o trabalho duro da roça e o povoado de uma única rua de terra batida, seca e quente como costuma ser todos os povoados do sertão. Os meninos brincam com caminhõezinhos de madeira, há um beato que reza e pragueja contra os males do mundo e há o desespero de ver a pequena safra perdida.

Os relatos são tão reais que a empatia com a leitura se dá imediatamente. Entra-se no mundo dos meninos, no pequeno e pobre mundo dos sem esperanças, mas que continuam lutando pela sobrevivência, tentando domar a terra, a maldade dos de fora, como os forasteiros do conto “O dia de São Nunca”, que roubam o Santo Antônio do menino aleijado que fica sozinho em casa enquanto sua mãe labuta na roça.

Pode-se ler estas histórias em poucos minutos e senti-las por outros tantos  ressoando no pensamento, absorvendo-as na alma e reconhecendo o talento do contista baiano impregnado pela relação telúrica que os primeiros anos de vida souberam marcar profundamente no seu animo. Como ocorre com todo aquele que é observador privilegiado da vida, os guardadores das sensações as mais miúdas e as grandiosas, enfim, dos que pegam da tinta para saltar um mundo que trazem dentro e fazer literatura.

Duas capas do livro Meninos eu conto

Nego de Roseno

Dr. Cláudio Cledson Novaes (UEFS)

Personagem do conto Segundo Nego de Roseno, do livro Meninos, eu conto, do escritor Antonio Torres. Neste livro, as histórias ocorrem em “lugares esquecidos nos confins do tempo em mundo interiorano e rural” (TORRES, 2001, p. 10). Nego de Roseno destaca-se no enredo em contraponto entre esta desolação e isolamento rural e a auspiciosa ascensão comercial do personagem negro. Ele é o único indivíduo do conto com relativo sucesso material no contexto de atraso econômico e social narrado. Nego de Roseno é o proprietário da pequena casa de comércio que atrai a atenção do menino narrador, porque somente Nego de Roseno possuía “uma fubica parada na porta do armarinho” (idem, p. 19), o “único orgulho motorizado do Junco” (idem, ibdem). O menino ficava:

fascinado com o progresso desse homem e chegava mesmo a invejar-lhe a liberdade de poder rodar para cima e para baixo na boléia daquele caminhãozinho que, mesmo quebrando e atolando nas estradas, acabava sempre chegando a algum destino” (idem, ibdem).

Antonio Torres nasceu em 1940, no povoado que inspira o enredo do conto, o Junco, hoje cidade de Sátiro Dias, situada no sertão da Bahia. Torres diz que descobriu sua vocação literária na escola rural e começou a vida de escritor com a experiência de jornalista e de publicitário. Apesar da sua fortuna crítica ainda se resumir basicamente a resenhas curtas em jornais de cultura sobre a sua obra, já há alguns estudos acadêmicos inéditos sobre seus romances. Antonio Torres é um dos principais ficcionistas da Literatura Brasileira contemporânea, trazendo em sua narrativa, inclusive nos contos do livro Meninos, eu conto, a influência peculiar da formação interiorana e da experiência jornalística do escritor. O conjunto da sua narrativa se estrutura em certos aspectos fundamentais do universo rural e do mundo jornalístico-publicitário, seja na diversidade dos seus romances, seja na safra pequena, porém densa, dos seus contos e crônicas, que absorvem a vitalidade da oralidade do mundo rural e a objetividade da linguagem do jornalista e publicitário.

No aspecto formal, a tendência para a concisão do foco narrativo seduz o leitor do texto Segundo Nego de Roseno para um enredo enxuto, como também é a estrutura narrativa das grandes digressões históricas ou das cisões psicológicas em todos os romances do escritor. Outro aspecto peculiar da sua obra é o conteúdo realista das narrativas, quase sempre focadas em fenômenos históricos ou da memória. No entanto, a história e a memória são apropriadas em linguagem literária experimental, o que faz a objetividade naturalista assumir uma condição subjetiva da realidade representada em narrativa fragmentária e ágil.

Nos contos de Meninos, eu conto, o pertencimento dos personagens ficcionais, como Nego de Roseno, ao universo do menino narrador, que se confunde com o universo do autor-menino, é explicitado desde a apresentação do livro pelo próprio Antonio Torres: “estas histórias, portanto, são de outra era. Mas ainda compartilho os sonhos, os sentimentos e os conflitos desses meninos. Um dia eles e eu já fomos as mesmas pessoas. Ou por outra: até hoje me sinto como se fosse um deles” (idem, p. 10). Neste sentido, a ficção e a realidade se fundem no universo da literatura e a maneira como o texto encena o personagem Nego de Roseno evidencia questões éticas na estética da representação do negro na literatura brasileira contemporânea.

No projeto literário nacional são fundados e reproduzidos muitos dos estereótipos tradicionais sobre o negro, Mas também se desvelam na literatura imagens étnicas silenciadas na história política e cultural do país até hoje. A difusão de mitos em textos escolares e na adaptação da literatura em grandes meios de comunicação de massa, como a televisão e o cinema, tem efeito multiplicador dos estereótipos, ampliando questões fundamentais da discussão sobre a cultura nacional em nosso imaginário, como, por exemplo, os tipos negros: adaptados versus não-adaptados; vilões versus heróis; feios versus voluptuosos e viris; bom e risível versus violento, entre outros estereótipos.

Nego de Roseno faz contraponto dos estereótipos relacionados ao papel do negro na economia política e cultural da sociedade brasileira. Ele é um capitalista de sucesso numa realidade rural pré-capitalista, o que induz o leitor a um ponto crucial do conto, quando o menino mira-se no status do negro alçado à posição de superioridade moral devido ao sucesso comercial. Isto se apresenta ao menino como imagem ideal da sua transição para o mundo adulto. O menino prova sua coragem ao negociar com o Nego de Roseno a compra de uma camisa nova no armazém do comerciante. Ele pechincha no preço – pois o dinheiro que tinha ganhado naquele dia não era suficiente para o negócio –, e Nego de Roseno aceita o acordo, vendendo a camisa por menos. O menino, ao chegar a casa, é repreendido pelo pai, que considera um erro a compra da camisa e manda devolve-la ao negociante e pegar o dinheiro de volta. O maior dilema para o menino é desfazer o negócio e macular a sua honra diante da autoridade de Nego de Roseno: “era uma humilhação ter de se desfazer de um negócio que fizera por sua livre vontade” (Idem, p. 23).  Não desfez o negócio e o caso só foi esquecido “quando a camisa já estava rasgada” (idem, p. 25).

A autoridade de Nego de Roseno vaticinou ao pai do menino a sentença fundamental da iniciação do jovem no mundo adulto: “dá gosto ouvir aquele menino falar. Aquele menino é um homem” (idem, ibidem). A construção moral do negro indica a sua personalidade incontestável.

Ao analisarmos outros aspectos discursivos no conto de Antonio Torres, flagramos a ambigüidade da literatura com relação ao personagem Nego de Roseno. Na emblemática imagem moral dele é possível fazer outra reflexão sobre a presença do negro na literatura brasileira, seguindo a discussão de Roger Bastide de que os estereótipos do bom e do mal negro continuam menos aparentes, mas latentes e “prontos a despertar, no entanto, cada vez que a ascensão gradual do homem de cor ameaça o branco nas posições de domínio que ele não cessou de ocupar na sociedade” (BASTIDE, 1973, p. 128). A ascensão do Nego de Roseno com sua fubica “que transportava uma pança negra com os bolsos cheios de níqueis dos roceiros” (TORRES, p. 19) traz o aspecto vitorioso positivo do negro para o menino, mas há também o aspecto negativo velado nas poucas palavras do pai, quando contrariado com a compra da camisa pelo menino: “Burro. Burro e besta”. A fala paterna insinua o abuso do comerciante sobre o menino inocente enganado pelas artimanhas do vendedor.

Portanto, o Nego de Roseno pode ser lido como o mito do vencedor que subverte a condição social e se supera economicamente, mas também pode ser lido como desconstrução da explicação social para a condição econômica da população excluída no país. Essa exclusão implica em negros e não-negros condicionados às mesmas possibilidades de ascensão ou não, conforme o diagnóstico sociológico de Roger Bastide através da análise do discurso da literatura no século XX. O conto de Antonio Torres arma a trama com categorias históricas veladas, para o leitor formular na leitura novas respostas para as questões sociais envolvidas. Por exemplo: qual a condição histórica do negro no cenário rural brasileiro? Como o imaginário rural do país reproduz as contradições envolvidas nos estereótipos positivistas das hierarquias raciais?

O conto de Antonio Torres torna ambíguo o sucesso do Nego de Roseno, sem reduzir a problemática a uma resposta única, nem prolongar prolixamente o tema do ponto-de-vista do narrador sobre o sucesso econômico do personagem. A concisão da linguagem do escritor dá significado direto ao observado pelo menino em relação ao sucesso do comerciante. O enunciado é unívoco mas faz emergir uma multiplicidade de sentidos subliminares na discussão sobre o tema étnico do negro nas diversas regiões geográficas e do imaginário literário brasileiro. O respeito do menino ao sucesso econômico do comerciante existe porque Nego de Roseno teve uma vida “carregando suas mercadorias no lombo de um burro”. (Idem, p. 19). Mas a revolta do pai do menino contra a compra da camisa coloca em cheque a honestidade do comerciante, pois ele afirma não perdoar o menino ter dado “o seu dinheiro numa camisa que não valia nada” (idem, ibidem).

Do ponto de vista da construção dos estereótipos do negro no imaginário brasileiro, podemos finalizar a reflexão sobre Nego de Roseno com inferências à complexidade étnica criada pelo conto em relação às categorias clássicas introduzidas desde a obra de André João Antonil, Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, quando aponta os tipos do boçal e o ladino. O primeiro, para o autor colonial, é aquele “rude” e “fechado” que continua ensimesmado por toda a vida. Estereótipo generalizado no Brasil para caracterizar as pessoas prepotentes e pretensiosas. O segundo tipo, para Antonil, é formado por escravos que em pouco tempo se adaptam e tornam-se “espertos, assim para aprenderem a doutrina cristã como para buscarem modo de passar a vida” (ANTONIL, 2007, p. 98, grifo nosso).

Apesar dos estereótipos acima datarem do século XVI em relação aos grupos de negros que chegavam à colônia para o serviço escravo, estas categorias são correntes na linguagem popular brasileira, até hoje, tanto em seu caráter positivo, quanto negativo, e, para além da questão de raça, assumem um significado social. Da mesma forma que as duas categorias podem ser sugeridas na leitura do Nego de Roseno, outra, mais comum, é usada para designar o típico negro brasileiro: o mulato. Para Antonil, estes são os melhores “para qualquer ofício” (idem, p. 99), pois contam com “aquela parte de sangue de branco que têm nas veias” (idem, ibdem).

Enfim, Nego de Roseno pode ser lido como emblema das categorias históricas e psicológicas acima, tornando-se o típico modelo positivo/negativo da “civilização mestiça” nacional, confluindo nele as diferentes virtudes e vícios macunaímicos da geléia geral brasileira. Cabe ao leitor atento à literatura brasileira contemporânea revolver na memória os mitos e os estereótipos dos personagens negros.

Referências

ANTONIL, André João de. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. Edição Crítica por Andrée Mansuy Diniz Silva. São Paulo: Edusp, 2007.

BASTIDE, Roger. Estudos Afro-Brasileiros. São Paulo: Perspectiva, Col. Estudos-Ciências Sociais, 1973.

TORRES, Antonio. Meninos, eu conto. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.

Duas capas do livro Meninos eu conto

Antônio Torres: o estilingue da memória

Jornal da Tarde 11/09/1999
Aleilton Fonseca

A memória sempre foi e será uma fonte para a literatura. Cada escritor empreende, segundo seu engenho e arte, a sua busca do tempo vivido, ou perdido, como o fez Marcel Proust. Assim a narrativa traz à tona fatos e experiências que na maturidade passam a ter uma importância especial para o autor. Quando as situações retratam a realidade vivida ou presenciada, estamos no campo do memorialismo. Quando o passado oferece experiências a partir das quais a imaginação cria situações verossímeis, entramos no terreno específico da ficção.

Meninos, Eu Conto, livro que reúne três contos de Antônio Torres, comporta essa dupla possibilidade de leitura. Como num jogo de espelhos, os meninos personagens e o narrador adulto se refletem na escrita e demarcam o seu distanciamento no tempo e a sua proximidade afetiva. Na foto da contracapa Torres maneja um estilingue, que simboliza o seu desejo de rever as imagens da infância e adolescência vividas na sua pequena cidade natal. Segundo o autor, esses contos “têm como cenário um lugar esquecido nos confins do tempo” onde “os meninos dividiam o seu tempo entre o trabalho na roça, junto com os pais, e o caminho da escola, no povoado”. São histórias de meninos do interior, ambientadas numa época em que cada lugarejo ficava isolado do mundo, tendo como horizonte apenas uma estrada poeirenta, por onde muitos seguiam para São Paulo e nunca mais voltavam. O escritor afirma: “Estas histórias, portanto, são de outra era. Mas ainda compartilho os sonhos, os sentimentos e os conflitos desses meninos. Um dia eles e eu já fomos as mesmas pessoas. Ou por outra: até hoje me sinto como se fosse um deles” (p.10).

No primeiro conto – “Segundo nego de Roseno” –, o menino adquire uma camisa na venda do povoado. O pai desaprova a compra e lhe ordena a devolução. Mas como desfazer o trato? O menino se debate com o problema, no entanto mantém a palavra empenhada, tornando-se responsável pelos próprios atos. A comunidade reconhece: “Aquele menino é um homem.” E o pai fica orgulhoso porque percebe que o filho honra a palavra, de acordo com a ética sertaneja.

O segundo conto – “Por um pé de feijão” – mostra a realidade do menino camponês que divide seu tempo entre a escola e o trabalho na roça. Depois do trabalho duro de plantar, colher e ensacar o feijão, a boa safra acaba sendo destruída por um incêndio de origem obscura. O narrador destaca a atitude do homem do campo diante das vicissitudes, que são encaradas como desígnio divino. Contudo, o menino observa o pai e aprende a ter fé e a acreditar em dias melhores, pois “quando as chuvas voltassem, lá estaria ele, plantando um novo pé de feijão” (p.35).

O terceiro conto – “O dia de São Nunca” – já estabelece relações entre o espaço rural e o urbano, pois o menino protagonista mantém contato com três jovens da cidade que fazem uma espécie de turismo no povoado. O menino exercita a imaginação, ensina e aprende, como portador do saber local e aprendiz das novidades urbanas. Ele se esforça para compreender aqueles jovens forasteiros e sente o esforço deles para compreenderem o seu mundo. Para o menino, que sofre de paralisia nas pernas, esses dois mundos agora se tocam, como um novo horizonte em seus sonhos e esperanças.

Os três contos tanto agradam ao leitor maduro como podem ser lidos e comentados por jovens que se iniciam na leitura adulta. São histórias com início, meio e fim, aparentemente simples e despretensiosas, mas ricas de significados. As situações vividas pelos meninos protagonistas atraem a simpatia e a curiosidade de quem não conhece a vida do campo e certamente desperta as lembranças daqueles que, hoje metropolitanos, têm, como o próprio escritor, uma origem perdida em algum cantinho do Brasil rural. Trata-se de uma realidade que ainda existe, em plena era das parabólicas e da internet, como nichos de vida ainda não alcançados pelas transformações tecnológicas. Antônio Torres olha para essa realidade – num passado nem tão remoto assim – e, longe de esquecer suas origens e sua terra, a elas retorna por meio da ficção, inserindo-as na geografia literária.

Duas capas do livro Meninos eu conto