Análise sobre Essa Terra para o vestibular da UNEB.

Capas de Essa Terra

Artigo original no PasseiWeb

Essa terra, obra de Antônio Torres, primeiramente publicado em 1976, é uma obra quase autobiográfica. Um relato emocionante do impacto da “cidade grande” sobre o retirante, o imigrante nordestino. O próprio autor – nascido na pequena cidade de Junco, interior da Bahia – percorreu os mesmos caminhos dos seus personagens, deixando o Nordeste para procurar a sorte nas metrópoles do Sudeste.

A caracterização sertaneja do Junco não é um mero retorno à temática regional. O autor salienta que o romance Essa Terra está em confronto com o regionalismo considerado como espaço da tradição, problematizando o regionalismo também enquanto tradição estética. O que poderia ser uma volta ao regionalismo tradicionalista, é na verdade um discurso narrativo de desinvenção, de desconstrução de um espaço regional identitário, coloca-se assim em questão o próprio mito de autenticidade regional. Desse modo, o romance rompe com a vertente mítico-nostálgica do regionalismo para retomar e atualizar sua vertente mais crítica.

Desde o início da narrativa de Essa Terra, pode-se verificar como o processo de duplicação da identidade influencia tanto o autor, que também viveu a experiência diaspórica – como já citado, como os personagens criados por ele. Essa Terra poderia perfeitamente ser considerado um romance de autoficção por narrar a precariedade e o desconforto do autor, que coincide, em certo sentido, com o desconforto do personagem submerso na parafernália apresentada pela modernidade da cidade paulistana. Torres traduz de forma instigante as inquietações ligadas aos problemas de natureza identitária, surgidos pela convivência do eu com o estranho outro.

Nesse sentido, o sujeito (autor/personagem) se expõe para o outro em busca de afirmação e de reconhecimento identitário. A maneira como o autor descreve a condição em que surge as primeiras linhas do romance nos fornece as pistas para verificar o quanto a narrativa acaba sendo orientada através da política do reconhecimento.

Se estiver vivo um dia ele aparece, foi o que eu sempre disse”. (TORRES, 1976, p. 7 ) Com a criação dessa frase está iniciada a narrativa do romance Essa Terra.

Essa Terra narra a história de Nelo, um sujeito que trilha o caminho de volta da grande São Paulo (uma cidade devoradora), para o antigo lar, no povoado do Junco, situado no interior da Bahia. Contrariando as expectativas depositadas pela família, a trajetória vivida por Nelo traça o percurso dos fracassos e dos dilemas que lhe acompanharam desde a partida da terra natal à cidade grande, culminando com o suicídio por enforcamento.

Nelo, ao deixar o povoado do Junco leva consigo o sonho de uma vida melhor. A esperança por melhores roupas, maior desempenho linguístico-cultural e de um grande sucesso com as mulheres. Sonhos projetados a partir do contato com os “estrangeiros”, e de um olhar que pretende se reconhecer através da leitura do “outro”.

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Nelo descobriu que queria ir embora no dia em que viu os homens do jipe. Estava com 17 anos. Ele iria passar mais três anos para se despregar do cós das calças de papai. Três anos sonhando todas as noites com a fala e as roupas daqueles bancários ? a fala e a roupa de quem, com toda certeza, dava muita sorte com mulheres. (TORRES, 1976, p. 11)

Já o narrador-personagem Totonhim, na tentativa de avaliar a causa da migração do irmão Nelo, do Junco rumo à cidade de São Paulo, faz ao mesmo tempo, uma retrospectiva da partida como uma espécie de justificativa:

(…) um dia pegou um caminhão e sumiu no mundo para se transformar, como que por encantamento, num homem belo e rico, com seus dentes de ouro, seu terno folgado e diferente de casimira, seus raybans, seu rádio de pilha?faladorzinho como um corno?e um relógio que brilha mais do que a luz do dia. Um monumento, em carne e osso. O exemplo vivo de que a nossa terra também podia gerar grandes homens. (TORRES, 1976, p.14)

O fragmento textual mostra como a projeção de uma vida bem sucedida encontra-se no romance apropriada pela efetivação do poder de aquisição de bens materiais. A narrativa coloca em evidência a relação do sujeito, da sua construção identitária, a partir da realização do consumo desses bens, a exemplo da identificação do próprio indivíduo com “um monumento, em carne e osso”, que seria “reconhecido” e valorizado como grande homem.

A relação dos indivíduos com os bens materiais, com o consumo desses bens, orientam a vida das personagens do romance e justificam suas atividades no decorrer da narrativa. Nesse sentido, a projeção está voltada mais para a noção de identidade (da construção da identidade através do olhar do outro), do que a uma política de reconhecimento que integra a alteridade, ou seja, que possibilite a dialética do mesmo e do outro, o que permitiria entender as razões de cada um e a estrutura dos conflitos e das negociações.

Nelo é descrito como um filho maravilhoso pelo olhar da mãe, a qual lembra-se dos envelopes gordos, que chegavam todo “mês com dinheiro vivo, paulista, rico”. Totonhim, o pai e toda a parentada do Junco também viam em Nelo a personificação de um indivíduo bem sucedido na vida. E a projeção da identidade de Nelo segue na narrativa sendo formada a partir do julgamento do meio exterior.

Enquanto Nelo é visto como aquele que migra para se salvar, como aquele que fugiu das limitações impostas pelo lugarejo interiorano, a experiência da migração vivida pela personagem é narrada mostrando o intenso sentimento de estranhamento da experiência diaspórica enfrentada pelo sujeito, que parte de um ambiente interiorano miserável, mas ainda conservador de certos valores humanos, “para uma São Paulo sem rosto e sem forma”. É esse sentimento de estranheza, experimentado pelo personagem principal do romance Essa Terra, o grande responsável pelo conflito existencial vivido pelo indivíduo. Ao investir num descentramento do sujeito, que não consegue mais se identificar com a cidade grande, muito menos com o ex-familiar espaço nordestino/ interiorano, a narrativa acaba produzindo no personagem a sensação de não pertencimento a lugar algum. Nelo conheceu e viveu no Junco e em São Paulo, mas não se sente pertencente a estes lugares. São Paulo representa ao mesmo tempo o exílio e a perda:

Dinheiro, dinheiro, dinheiro.
Cresce logo, menino, pra você ir para São Paulo.

Aqui vivi e morri um pouco todos os dias.
No meio da fumaça, no meio do dinheiro.
Não sei se fico ou se volto.
Não sei se estou em São Paulo ou no Junco
”. (TORRES,1976, p. 63)

Na experiência vivida por Nelo coexiste o enigma de uma “chegada” sempre adiada, como se fosse uma espécie de pressentimento, uma consciência de que o seu desenraizamento já não lhe permitiria a re-integração à terra natal.

A fragmentação da estrutura do romance igualmente refrata e reflete a identidade fragmentada dos personagens e a relação que eles estabelecem entre eles e a terra: o romance está dividido em quatro partes: “Essa Terra Me Chama”, “Essa Terra Me Enxota”, “Essa Terra Me Enlouquece” e “Essa Terra Me Ama”, cada parte subdividida em capítulos.

O estar “entre-lugares” é também uma expressão viva nas linhas do romance Essa Terra. Os personagens principais vivenciam a relação consigo próprios, com os outros e com a terra de certa forma transculturamente: as relações possuem um movimento de “síntese e simbiose”, “um diálogo (uma harmonia) incômodo” entre a “continuidade e a ruptura”, “a coerência e a fragmentação”. Observe:

— Qualquer pessoa deste lugar pode servir de testemunha. Qualquer pessoa com memória na cabeça e vergonha na cara. Eu vivia dizendo: um dia ele vem. Pois não foi que ele veio?
— O senhor está com razão.
— Ele mudou muito? Espero que ao menos não tenha esquecido o caminho lá de casa. Somos do mesmo sangue.
— Não esqueceu, não, tio — respondi, convencido de que estava fazendo um esclarecimento necessário não apenas a um homem, mas a uma população inteira, para quem a volta do meu irmão parecia ter mais significado do que quando dr. Dantas Júnior veio anunciar que havíamos entrado no mapa do mundo, graças a seu empenho e à sua palavra de deputado federal bem votado.
(ET, p. 10)

No trecho acima, retirado do primeiro capítulo da primeira parte do romance — “Essa Terra Me Chama”, o narrador-personagem Totonhim leva o tio ao encontro do sobrinho Nelo, que retorna após vinte anos. Interessante notar que a volta dele é esperada não só pelo parente, mas também pela população da cidade. Espera compreendida entendendo-se que a figura de Nelo está relacionada a um monumento valorativo da cidade, ou melhor, das próprias pessoas do Junco. Ao comparar a peculiaridade do significado da vinda do irmão com o dia em que a cidade festejou seu ingresso no mapa do mundo, fica claro que a ida de Nelo para São Paulo não foi esquecida, no decorrer dos anos, ela estava ativa na memória dos familiares e da comunidade do lugarejo como retorno triunfal. O dia em que o deputado discursou foi, embora o povo tenha festejado, apagando-se de suas memórias, diz Totonhim, “apesar de nada mais ter acontecido daí por diante” (ET, p. 10). A saída de Nelo do Junco, entretanto, não foi apagada, tornou-se uma expectativa de retorno, um acontecimento sempre em suspenso, à beira de uma efetivação:

Quem não mudou em nada mesmo foi um lugarejo de sopapo, caibro, telha e cal, mas a questão agora é saber se meu irmão ainda lembra de cada parente que deixou nestas brenhas, um a um, ele que, não tendo herdado um único palmo de terra onde cair morto, um dia pegou um caminhão e sumiu no mundo para se transformar, como que por encantamento, num homem belo e rico, com seus dentes de ouro, seu terno folgado e quente de casimira, seus Ray-bans, seu rádio de pilha — faladorzinho como um corno — e um relógio que brilha mais do que a luz do dia. Um monumento, em carne e osso. O exemplo vivo de que a nossa terra também podia gerar grandes homens — e eu, que nem havia nascido quando ele foi embora, ia ver se acordava o grande homem de duas décadas de sono, porque o grande homem parecia ter voltado apenas para dormir. (ET, p.10)

Se a cidade não mudou, a chegada de Nelo é sinal de mudança para os habitantes da cidade. O esperado retorno concretiza-se, fica-se então sabendo que o homem que deixou sua terra natal foi em busca de fortuna e melhores condições de vida. São Paulo transformaria Nelo num monumento vivo, em carne e osso, com dentes de ouro e óculos Ray-bans. Todavia, o irmão, segundo Totonhim, retornara apenas para dormir, pois duas décadas de sono (leia-se: de ausência) não foram suficientes para realizar um desfastio pela cidade. Junco o faz adormecer, o sono de Nelo é mórbido e Totonhim o pressente. O narrador-personagem continua caminhando com o tio em direção à casa onde Nelo se encontra, sentindo que algo de ruim estaria acontecendo.

A alpercata esmaga minha sombra, enquanto avanço num tempo parado e calado, como se não existisse mais vento no mundo. Talvez fosse um agouro. Alguma coisa ruim, muito ruim, podia estar acontecendo.
—Nelo — gritei da calçada. […]
Não ouvi o que ele respondeu, quer dizer, não houve resposta. Não houve e houve. Na roça me falavam de um pássaro mal-assombrado, que vinha perturbar uma moça, toda vez que ela saía ao terreiro, a qualquer hora da noite. Podia ser meu irmão quem acabava de piar no meu ouvido, pelo bico daquele pássaro noturno e invisível, no qual eu nunca acreditei. Atordoado, me apressei e bati na porta e bastou uma única batida para que ela se abrisse — e para que eu fosse o primeiro a ver o pescoço do meu irmão pendurado na corda, no armador da rede.
(ET, p. 12)

O tempo parado e calado, uma voz que não responde, o piar da morte, a porta que revela o monumento pendurado por uma corda, monumento que não transmitirá à posteridade a memória de uma pessoa notável, a volta triunfal era uma fantasia. Nelo retorna para fincar definitivamente suas raízes na cidade onde nasceu — do Junco saiu, ao Junco em pó retorna. A morte de Nelo é o fecho do primeiro capítulo, e o acordar de uma cidade: “E foi assim que um lugar esquecido nos confins do tempo despertou de sua velha preguiça para fazer o sinal-da-cruz” (ET, p.13); diz Totonhim no inicio do segundo capítulo, revelando-nos uma cidade que despertada pela morte evidencia sua vida sem pulso.

Junco, cidade preguiçosa de sopapo, caibro, telha e cal é ainda desnudada nos seus mais íntimos sofrimentos: no segundo capítulo, temos um panorama do lugarejo esquecido pelo tempo e castigado pela natureza do sertão baiano. Terra sofrida que faz sofrer seus filhos.

O Junco: um pássaro vermelho chamado Sofrê, que aprendeu a cantar o Hino Nacional. Uma galinha pintada chamada Sofraco, que aprendeu a esconder os seus ninhos. Um boi de canga, o Sofrido. De canga: entra inverno, sai verão. A barra do dia mais bonita do mundo e o pôr-de-sol mais longo do mundo. O cheiro de alecrim e a palavra açucena. E eu, que nunca vi uma açucena. Os cacos: de telha, de vidro. Sons de martelo amolando as enxadas, aboio nas estradas, homens cavando o leite da terra. O cuspe do fumo mascado da minha mãe, a queixa muda do meu pai, as rosas vermelhas e brancas da minha avó. As rosas do bem-querer:
— Hei de te amar até morrer.
Essa é a terra que me pariu.
— Lampião passou por aqui.
— Não, não passou. Mandou recado, dizendo que vinha, mas não veio.
— Por que Lampião não passou por aqui?
— Ora, ele lá ia ter tempo de passar neste fim de mundo?
(ET, p. 14)

Se a morte do irmão faz Totonhim descrever sua terra, é, na verdade, para ele próprio e para família que se volta. O Junco é o fumo de sua mãe, a queixa de seu pai, as rosas de sua avó… a terra — lembranças, memória que envolve Totonhim. Entretanto, Junco é uma cidade esquecida. Na venda de Pedro Infante, alguém profere amor eterno a terra, outro revela que a cidade é um fim de mundo, nem Lampião teve tempo de visitá-la. A morte de Nelo desperta Junco e atiça Totonhim a caminhar pelos contornos de sua cidade. O narrador-personagem continua ainda a falar sobre o seu lugar natal, fica-se sabendo que Junco é uma terra em que seus filhos não fincam raízes profundas, a pobreza do lugarejo é sinal de abandono:

Moças na janela, olhando para a estrada, parecem concordar: isto aqui é o fim do mundo. Estão sonhando com os rapazes que foram para São Paulo e nunca mais vieram buscá-las. Estão esperando os bancários de Alagoinhas e os homens da Petrobrás. Estão esperando. Tabaréu, não: rapazes da cidade. […]
— Até as casadas enlouqueceram, e arrastaram os seus homens e suas filhas para as cidades — reclama-se na venda de Pedro Infante, o abrigo de todas as queixas. — Muitos maridos vão e voltam, sozinhos, com uma mão adiante e outra atrás. Sina de roceiro é roça.
Vagaroso e solitário, o Junco sobrevive às suas próprias mágoas, com a certeza de quem já conheceu dias piores, e ainda assim continua de pé, para contar como foi.
(ET, p. 14)

A migração é fato comum em Junco. A cidade grande torna-se a panaceia das moléstias de uma terra situada nos confins do mundo. Os habitantes do Junco aventuram-se em busca de melhores condições de vida, entretanto, sua sina de roceiro já está traçada e possui mão de via única — a roça. Vão embora com as mãos vazias e da mesma maneira retornam.

A descrição do Junco, a morte do irmão e o processo migratório narrados nos trechos acima pelo narrador-personagem, não iniciam apenas uma história a ser desenvolvida, mas revelam o olhar de quem ao se encontrar num lugarejo situado nos confins do mundo, vê na realidade que o circunda um espaço de desolação, pobreza e esquecimento. Um lugar em que o tempo parado e sem vento permite que se escute o piar da morte. A cidade não mudou, nos diz Totonhim, uma terra que acorda de sua preguiça para fazer o sinal da cruz e que vagarosa e solitária sobrevive. A personificação do Junco parece ser um correlato das pessoas da própria cidade. Entretanto, há algo mais nas palavras proferidas por Totonhim, São Paulo é o lado inverso do lugarejo. Se verá mais adiante como a relação entre as duas cidades é estabelecida. Apenas observe-se aqui que a descrição do lugar feita pelo narrador-personagem poderia ser vista apenas como mais uma paisagem sertaneja da seca, da miséria que, de certo modo, justificaria a ida dos “rapazes” para São Paulo. O panorama do lugar, contudo, vai além da imagem de uma terra nordestina, mais que uma simples descrição, o olhar de Totonhim sobre sua terra é de crítica e distanciamento.

Se os habitantes insistem em sair dos limites do Junco, este continua sobrevivendo para contar os sofrimentos pelos quais já passou. Fica-se então sabendo por Totonhim que o Junco havia passado, em 1932, pela pior seca que já havia vivenciado, o lugar “esteve para ser trocado do Estado da Bahia para o mapa do inferno” (ET, p.15). Porém, continuou em pé assim como seus habitantes. Em 1933, as primeiras chuvas pareciam anunciar dias melhores, mas a morte parecia não querer deixar a terra: “O que se viu mais tarde foi o dilúvio, a sezão e o impaludismo: desta vez o povo caía e morria tremendo, de frio” (ET, p. 15).

Ao lado da seca e do dilúvio, o narrador-personagem passa então a falar de um cidadão do Junco. É-nos apresentado então Caetano Jabá, que lutou junto com Antônio Conselheiro, o único sobrevivente da guerra pela qual, em vez de uma medalha, deram-lhe um apelido e uma enxada: instrumento de seu sustento. Caetano Jabá profere que no ano dois mil o velho mundo será queimado por uma bola de fogo, restando apenas o “dia do juízo”, ensinando as Sagradas Profecias, ele nos revela um Junco bíblico. Totonhim parece entender o que significaria na realidade esse juízo final:

— E eu sei que esse dia está perto. Ora vejam bem: nossos avós tinham muitos pastos, nossos pais tinham poucos pastos e nós não temos nenhum […] Isso também está nas Sagradas Escrituras. Muitos pastos e poucos rastos. Poucas cabeças, muitos chapéus. Um só rebanho para um só pastor.
[…]
— Qualquer dia o Anticristo aparece. Será o primeiro aviso. Depois o sol vai crescer, vai virar uma bola do tamanho de uma roda de carro de boi e aí — dizia papai, dizia mamãe, dizia todo mundo.
Ninguém disse, porém, se a vinda da Ancar estava nas Sagradas Escrituras. Ancar: o banco que chegou de jipe, num domingo de missa, para emprestar dinheiro a quem tivesse umas poucas braças de terra.
(ET, p. 16-17)

Se a escassez dos pastos estava profetizada nas Sagradas Escrituras, Totonhim indaga porque então a vinda da Ancar não foi prevista. Banco que foi a ruína do pai, acreditando nos bancários, fez o empréstimo e ainda acatou a sugestão deles: plantou sisal. O investimento foi negativo e as dívidas cobradas. O pai perde tudo. Foi nesta época que Nelo, aos dezessete anos, decide ir embora, mas espera mais três anos para efetivar sua decisão de deixar o Junco, três anos “sonhando todas as noites com a fala e as roupas daqueles bancários — a fala e roupa de quem, com toda certeza, dava muita sorte com as mulheres” (ET, p. 18).

Pode-se então dizer que o Junco é, assim, desnudado pelo narrador-personagem. O curioso de seu relato não é o desnudamento em si do lugar, mas o que esse desnudamento afeta e revela de Totonhim e dos outros personagens principais. O distanciamento do olhar de Totonhim é de alguém que vê através da própria narração as deficiências de um lugar esquecido nos confins do mundo. Ora, totonhim salienta que ninguém previu nas Sagradas Escrituras que a Ancar viria, desse modo, o olhar crítico do narrador personagem vai além, repetimos, de uma simples descrição. É preciso, então, observar nas palavras de Totonhim o distanciamento que ele próprio opera na representação do lugar que descreve e a que pertence.

Totonhim, na verdade, firma-se como narrador-personagem ou como o autor prefere utilizar — narrador-protagonista, desde do início do romance, com paralelo valor expressivo. O fato de Totonhim narrar a volta e morte do irmão, de delinear sua cidade, assim como falar dos outros personagens ou destes tomarem a voz narrativa etc., não torna menor, evidentemente, sua expressividade. Além de que, é preciso salientar, o romance apresenta diferentes nuances de narrador.

Vê-se que a migração é um fato comum em Junco. A miséria do lugar abala as raízes de seus habitantes que lançam um olhar para as grandes cidades e enxergam nelas o solo que acreditam ser mais nutritivo para suas necessidades e sonhos. Nelo vai em busca dessa nova terra — São Paulo —, mas lá ele encontrará do mesmo modo um terreno seco e arenoso. A metrópole, a cidade urbana é sempre imaginada como modelo de progresso, desenvolvimento: “[…] gente se amontoando na janela do sargento, para ver a novela das oito, na televisão — esse milagre que só um homem da capital poderia nos ter revelado” (ET, p. 53). O Sul é o arcabouço da modernidade, da tecnologia, do avanço, as metrópoles são atrativas e cobiçadas pela miséria da vida sertaneja que é representada como pobreza, desolação, isolamento. E da cidade grande vem os bancários, os homens da Petrobrás, e o homem da capital traz milagres tecnológicos (a televisão) para o Junco, como não se deixar seduzir? Nelo caiu nas malhas da sedução metropolitana. Entretanto, ele não consegue a vida que desejava e nem se torna um paulista rico. Primeiro neto e primeiro filho, o preferido da mãe:

A mala me fez pensar no correio e nos envelopes gordos de antigamente, que chegava de mês em mês. Dinheiro vivo, paulista, rico. Também me lembrei de mamãe: — Tomara eu tivesse mais um filho igual a ele. Bastava um.
Nelo, Nelo, Nelo.
Um acalanto, uma toada, uma canção.
Nelo, Nelo, Nelo.
Miragens sobre o poente, nosso sol atrás da montanha, sumindo no fim do mundo.
Nelo, Nelo, Nelo.
São Paulo está lá para trás da montanha, siga o exemplo do seu irmão.
Nelo, Nelo, Nelo.
Éramos doze, contando uma irmã que já morreu. Só ele contava.
Nelo, Nelo, Nelo. — Bastava mais um
. (ET, p. 20)

No trecho acima, retirado do terceiro capítulo da primeira parte do romance, Totonhim relata o seu encontro com Nelo, no dia em que este chega ao Junco. A presença da mala do irmão o faz relembrar das cartas que Nelo enviava para a mãe. É interessante notar que os “envelopes gordos” foram recebidos apenas num determinado período, o “antigamente” revela a perda de peso dos envelopes com o passar do tempo. Havia uma ilusão de que o primogênito era um paulista rico, mesmo quando o dinheiro diminui, a ilusão persiste, mas ela é ferida quando Nelo se mata. Ele também é um exemplo a ser seguido, para a mãe, diz Totonhim, apenas o irmão contava. Nelo tinha ido atrás do sol atrás da montanha, São Paulo.

A linguagem da obra chama atenção por sua singularidade. O que envolve Essa Terra de um valor estético-literário. A personificação do lugar que acorda e é vagaroso e solitário, o pássaro Sofrê, a galinha Sofraco, o boi Sofrido — o desnudamento do lugar é envolto numa metaforicidade. São Paulo transforma-se num elemento natural, Nelo em música que acalma, tranquiliza — imagens são criadas. O que poderia ser apenas um simples relato, configura-se numa nova dimensão de sentido.

Nelo vai embora, entretanto, o sol não foi generoso com ele, pois retorna sem riqueza: “— Não se esqueça que eu dei conselho a seu pai, para ele deixar você ir embora — o primeiro visitante vinha cobrar os juros de um empréstimo a longo prazo” (ET, p. 24); Totonhim salienta a cobrança de um conhecido, a ilusão da riqueza de Nelo continua viva na esperança do povo. O primogênito é cercado pelos familiares e conhecidos que desejam ver concretamente o dinheiro da metrópole, o lugarejo recebe Nelo com cobranças que há vinte anos esperam por quitação: “— Paga uma? Quero ver a cor do dinheiro de São Paulo — parentes afoitos correm os olhos em busca da mala” (ET, p. 25); procuram por “lembrancinhas”, não há nada para ninguém. A imagem do monumento vivo começa a apresentar rasuras: “— Ah, Nelo. Tu tá rico como o cão, não é? — Dá para ir vivendo — ele disse —, mas suas palavras não destruíam toda a nossa ilusão” (ET, p. 25). Ilusão ainda em parte mantida, até o momento que a morte do irmão se concretiza. Totonhim então percebe que, na verdade, Nelo não ficara rico, os bilhetes de loteria vencidos encontrados em sua carteira, depois do suicídio, evidenciam a busca da fortuna pela sorte.

São Paulo não foi realmente generoso com Nelo, na cidade grande ele também encontrou terreno sertanejo para seus objetivos, uma vida melhor não conseguiu vivenciar. A sua ida a São Paulo significava também o seu oposto — a volta, imaginada como retorno triunfal, libertador da pobreza. Todavia, seu retorno não foi redentor, mas conflituoso. Ao chegar em Junco, Nelo vivencia uma experiência transcultural: ele parece estar ao mesmo tempo em Junco e em São Paulo.

No quinto capítulo de — “Essa Terra Me Chama”, o narrador-personagem Totonhim relata o momento em que ele e o irmão caminham juntos em direção à casa onde haviam nascido. Nelo, Totonhim salienta, estava bêbado. Em determinado momento da caminhada, Nelo quer ir à casa da sua mulher, pede que o irmão mude de rumo e o leve até ela. Totonhim admira-se, pois não sabia que o irmão era casado. Explica que não sabe onde fica, mas Nelo insiste: “— Deve ser um Itaquera. Ou no Itaim. — Onde diabo fica isso? — Perto de São Miguel Paulista” (ET, p. 35). Nelo pensa estar em São Paulo. O narrador-personagem descobre ainda que o irmão tem dois filhos, Nelo diz estar com saudades deles, pois não os vê faz mais de um ano. Totonhim responde que ele só está ali há três semanas, não sabe que a mulher havia deixado o irmão por um conterrâneo e levado consigo os filhos. O narrador-personagem tenta situá-lo: “— Nós estamos no Junco, homem. Quantas vezes na vida você passou por essa estrada? Lembra?” (ET, p. 35). Nelo então recorda das vezes que passava por aquele caminho com uma lata de leite na cabeça e os sapatos no pescoço. Mas, em seguida, pede novamente ao irmão que o leve até a mulher. Voltar ao lugar onde nasceu, às ruínas da casa natalícia, o remete à ruína da casa paulista: a perda da mulher e dos filhos. Nos dois lugares fracassou.

Ora, Nelo está em Junco, porém pensa estar em São Paulo. Poderíamos pensar que a sua confusão se deve ao fato de Nelo estar bêbado. Entretanto, num determinado momento ele recorda do caminho que percorre. Na verdade, os dois lugares passam a ser vivenciados de forma transcultural. A destruição de uma casa evoca a ruína da outra: há um “diálogo (uma harmonia) incômodo” entre a casa natalícia e a casa paulista, entre sentimentos de perda e de encontro. Os dois lugares, dessa forma, parecem semelhantes, embora sejam diferentes.

A caminhada dos irmãos continua. Nelo pede a Totonhim para se esconderem numa moita, pois estava chovendo e a chuva era verde. Totonhim responde dizendo que, na verdade, estava fazendo um sol muito forte. Nelo insiste e diz que chove verde em seus olhos. Totonhim então olha entre o olho e a lente verde dos óculos do irmão, fala que ele tinha razão, mas que era uma chuva fininha. Chuva no sertão, em terra seca, é sinal de esperança, de colheita, de matar a sede. Entretanto, a chuva é escassa, fininha, não é o bastante para acarretar uma mudança. Totonhim, então, aponta a casa. Nelo pára, dá alguns passos à frente para que o irmão não o visse limpando os óculos e diz:

— Você está certo Totonhim. Não teve chuva nenhuma.
Ele agora contemplava a casa e os pastos como se estivesse diante do túmulo de alguém que tivesse amado muito — e o efeito do que estava vendo devia ser muito forte, porque já não parecia tão bêbado como antes.
— Vamos voltar?
(ET, p. 38)

Nelo não quer ir mais adiante e volta, como salienta o narrador-personagem, “calado, fechado, trancado”. A sobriedade repentina de Nelo é a consciência de seu fracasso: o túmulo — a casa, é ele próprio e a família que não conseguiu ajudar. A chuva verde não é suficiente para reverter a situação.

Junco e São Paulo estão adornados na memória de Nelo e ligados entre si pela desilusão, pelo fracasso e sofrimento. As duas cidades tornam-se uma terceira: de configuração sertaneja-metropolitana:

Eles me agarraram pelas orelhas e pelo pescoço e bateram a minha cabeça no meio-fio da calçada. Berrei. Que meu berro enchesse a rua deserta, subisse pelas paredes dos edifícios […], rachassem as nuvens pesadas e negras da cidade de São Paulo e fosse infernizar o sono de Deus: — Socorro. Estão me matando.
Uma luz se acendeu ao meu terceiro grito e um homem chegou à janela. Ficou olhando. Eles continuaram batendo minha cabeça no meio-fio. A luz entrou no meu olho, dura e penetrante, como a dor. […]. Foi nesse momento que a mão de papai apareceu, me oferecendo um chapéu. — Cubra a cabeça. Assim dói menos.Tentei esticar o braço mas, quando a minha mão já estava quase agarrando o chapéu levei nova pancada.
— Você me denunciou, Totonhim. Olhe o resultado. Fuxiqueiro de merda.
[…]
Papai desapareceu sob as águas. O chapéu boiava na correnteza.
Às margens plácidas, águas turvas.
Tietetânicas.
[…]
Eles estão mijando na minha cara e eu estou tomando banho no riacho lá de casa, as águas do riacho lá de casa vão para o rio de Inhambupe que vai para o rio Tietê, seguro um tronco de mulungu, para não me afogar, bato com as pernas na água, devagar, sem pressa, para não me afogar, o tronco escorrega e escapole, desço ao fundo, enfio a cara na lama, volto à tona, estou me afogando: — socorro
.(ET, p. 55-60)

Confundido com um ladrão, Nelo sofre uma surra da polícia de São Paulo. Neste décimo capítulo, ainda da primeira parte — “Essa Terra Me Ama”, é o próprio Nelo que passa a narrar o evento. O capítulo já inicia com a descrição da sova, mas é interessante observar que a rememoração do fato se faz provavelmente em Junco, pois Nelo não sabia da existência de Totonhim até voltar ao lugarejo onde nasceu. Como então acusá-lo pelo mal que estava sofrendo? Subjetivamente Nelo interliga pessoas a fatos de espaço–tempo diferentes. As duas cidades e a família passam a co-existir nas suas lembranças de forma simbiótica. A confusão de Nelo denuncia o estado de quem viveu a experiência de estar “entre-lugares”, de vivenciar o contanto intercultural. A confusão entre as duas cidades é a fragmentação da sua própria identidade.

Durante a agressão Nelo vê o pai tentando dar a ele um chapéu, que representa a sanidade. O pai já havia ensinado que o chapéu fora inventado “nos tempos de Deus Nosso Senhor” (ET, p. 122), para que o homem não andasse com a cabeça no tempo, já que assim perderia o juízo. O pai, no passado, havia lhe dado um chapéu que Nelo esquecera ao sair de casa. E naquele momento tentava novamente dar outro, mas não para salvá-lo de perder o juízo, pois já era tarde. O tempo em São Paulo andava perdido no juízo de Nelo.

O pai também ensinou Nelo a nadar utilizando um tronco de mulungu, que nas águas do rio Tietê reaparece como ponto de apoio, de salvação. O riacho onde aprendera a nadar em Junco é o mesmo que deságua nas margens plácidas, turvas, “tietetânicas” do rio em São Paulo. Todavia, de suas margens não se escuta “o brado retumbante” de um “povo heróico”, e sim o grito de um homem fracassado e sendo torturado ao ser confundido com um ladrão.

A surra de Nelo não é apenas uma tortura física, mas também de conflito psicológico. O momento da agressão é lembrança confusa da terra natal:

O mijo corre quente e fedido, é a chuva que Deus mandou na hora certa, viram como foi bom a gente plantar no dia de São José? Ajudei papai a plantar o feijão e o milho, eu, mamãe, as meninas e os trabalhadores, e todo dia eu acordava mais cedo, para ver se a plantação nascia […]
— Aonde você escondeu o dinheiro, ladrão?
Não, não, não.
Papai, tomara que tudo melhore, eu penso nisso o tempo todo, tomara que tudo melhore.
Nossos pastos já foram verdes, eu sei. Já não temos mais pastos.
Preciso mandar um dinheiro para o senhor comprar de novo a roça e a casa que o senhor vendeu, tomara que tudo melhore.
Faço fé na loteria, toda semana. Jogo, perco, jogo, perco, nunca acerto.
Trabalho duro, tento me regenerar, até parei de roubar, digo, parei de beber.
[…]
Zé está me matando. Eles estão me matando. Devem ser uma dúzia de homens, fardados e armados. Aqui no meio da rua. Na grande capital.
Dinheiro, dinheiro, dinheiro.
Cresce logo, menino, pra você ir para são Paulo.
Aqui vivi e morri um pouco todos os dias.
No meio da fumaça, no meio do dinheiro.
Não sei se fico ou se volto.
Não sei se estou em São Paulo ou no Junco.
(ET, p. 61-62)

Nelo recorda-se da família, do Junco. Denuncia seu fracasso, a loteria seria sua salvação e de seus familiares. Confunde-se, por um momento, parecia acreditar que de fato era um ladrão, e assim fica-se sabendo do seu problema com a bebida. Zé do Pistom é o seu agressor, conterrâneo a quem ajudou conseguir um emprego em São Paulo, e que, como gratidão, roubou sua mulher e seus filhos. Nelo relembra em suas palavras a vontade da mãe, realizou seu desejo e agora confuso não sabe o que fazer: vai embora, retorna, é São Paulo ou Junco?

No quarto capítulo da terceira parte do romance — “Essa Terra Me Enlouquece”, Nelo expressa a mesma dúvida. Neste pequeno capítulo, a casa do avô, onde fica hospedado quando volta ao Junco, o faz refletir sobre o passado numa noite de insônia. O avô retorna para reclamar de sua fraqueza que antes já havia delatado: “— o pai vendeu a roça, para seguir a cabeça da mulher. O filho é um fraco igual ao pai” (ET, p. 121). Lembra também do conselho do pai: usar o chapéu, pois quem anda com a cabeça no tempo perde o juízo. Sonhava quase todas as noites com o pai lhe dizendo o mesmo conselho, mas Nelo foi embora e esqueceu de levar o seu chapéu. Ele passa então a achar que passara a vida com a cabeça no tempo porque esquecera de levá-lo. E a saudade invade Nelo, a mulher encena em seus desejos, ele a deseja de volta junto com os filhos: “Uma confusão de desejos, arrependimentos e dúvidas. Estragado pelos anos, esbagaçado pelo álcool, já não via por onde recomeçar” (ET, p. 121); o narrador-personagem Totonhim resume o estado do irmão. Noite de insônia reveladora, Nelo continua pensando sobre sua terra, terra que diz ser selvagem, onde tudo já está condenado desde do começo. Terra de sol e chuva selvagens, sol que queima o juízo e chuva que arranca as cercas “deixando apenas o arame farpado, para que os homens tenham de novo todo o trabalho de fazer outra cerca, no mesmo arame farpado. E mal acabam de fazer a cerca têm de arrancar o mata-pasto, desde a raiz. A erva daninha que nasceu com a chuva, que eles tanto pediram a Deus” (ET, p. 124). Junco está condenado ao ciclo da erva daninha, entretanto, ela não é aqui apenas a representação da miséria de um lugar, mas é também a erva daninha da lembrança que invade Nelo arrancando-lhe também a cerca de sua estabilidade subjetiva. A insônia é o balanço de sua vida.

Junco e São Paulo possuem a mesma medida de conflito, o tempo devorou o lugar de Nelo em ambas as cidades, fincar raízes parece ser agora utopia. Na verdade, as raízes de Nelo estavam no ar, no terceiro espaço entre São Paulo e Junco: “— É por isso que não sei se volto ou se fico. Acho que tanto faz. Porque o tempo que comeu o meu chapéu de palha, agora está comendo o lugar que deixei em São Paulo” (ET, p. 124). O “parentesco” entre Junco e São Paulo não é uma identificação arbitrária. A semelhança entre os dois lugares coloca em suspenso suas diferenças: entre uma cidade considerada como o cerne do progresso e a outra como atraso, uma ponte interseciona a metrópole e o sertão: a pobreza, a desilusão, o sofrimento, a falta de oportunidades.

Em ambas as partes “Essa Terra Me chama” e “Essa Terra Me enlouquece”, a dúvida de Nelo é expressa da mesma forma, porém gerando uma ambiguidade: não sabe se fica (em Junco, São Paulo?) ou vai embora (de Junco, São Paulo?). Essa terra que chama e enlouquece é Junco, é São Paulo. O demonstrativo “Essa”, neste caso, mais do que indicar um distanciamento de Nelo em relação as duas terras, marca a ambiguidade de referência.

Citou-se aqui que a confusão de Nelo no que concerne as duas cidades é a fragmentação da sua própria identidade. Ora, se o contato intercultural propicia viver processos de identificação num sentido transcultural, Nelo não foge ao padrão. Ele retorna com “costumes de outras terras”, como observa Totonhim, ao vê-lo pela primeira vez: “Chego e interrompo a velha e sincera conversa do hoteleiro. Também foi sincero o sorriso do recém-chegado, ao apertar a minha mão. — Muito prazer — ele diz. Costumes de outras terras, eu penso, balançando a cabeça de um lado para o outro abismado” (ET, p 19). No mesmo capítulo em que estão indo juntos rever a casa onde haviam nascido, o narrador-personagem ainda ressalta a fala paulista do irmão: “— Totonhim… você não é o Totonhim? Maneiras paulistas: o fulano, a fulana. Tive vontade de lhe dizer que povo daqui não gosta de quem fala assim. Na frente, louva-se o sotaque novo do cidadão. Por trás —“ (ET, p. 34). É evidente que morando vinte anos em São Paulo, Nelo teve que se adaptar, que renegociar seus valores e costumes. Em suma, o processo de transculturação se fez presente em sua vida. Contudo, tal processo, como viu-se, não envolve um movimento linear, tranquilo; mas um “diálogo (uma harmonia) incômodo” entre “fragmentação e coerência”, “construção e desconstrução”, “síntese e simbiose”. Isto é, torna evidente as semelhanças e diferenças de forma a problematizar as relações entre forças antagônicas que se entrelaçam e ao mesmo tempo são justapostas e contestadas, sem que de fato haja uma hierarquização absoluta.

Desenvolvimento e subdesenvolvimento são os dois lados do mesmo Brasil, o sul não é o redentor e o nordeste a simples vítima de uma natureza devastadora. Nelo é a representação dessas duas faces, ele evidencia a contradição de um espaço nacional pensado em termos dicotômicos, como se a “falta de sorte” que viveu não estivesse relacionada aos aspectos sócio-econômicos mais amplos do país. Todavia, as faces que ele revela não estão apenas ligadas a uma questão material, a dúvida de “ir ou ficar” revela uma identidade fragmentada. Não estar em Junco ou em São Paulo significa que não tornou-se nem paulista, nem baiano: o que se tornou então? E aqui amplia-se a questão para além de uma problemática de pertencimento: tornou-se um baiano-paulista pobre? Tornou-se uma desilusão? O suicídio de Nelo é indício de confusão subjetiva, desilusão de retorno triunfal, não alcançado, o desconforto de saber que fracassou, é a demonstração da trajetória de alguém que viveu “entre-lugares”.

A migração da família tinha se tornado fato corriqueiro, Nelo foi o primeiro, os outros seguiram seu exemplo, embora não tenham ido como ele além das fronteiras do estado. Nelo continua a fazer perguntas sobre a família, indaga se o pai não ajuda em nada e Totonhim silenciosamente pensa dizer-lhe “— Me fale de coisas boas. Chegue à frente e me fale de você. Conte tudo de bom, todas as belas aventuras que você já viveu: palha e lenha dos meus sonhos. Mas ele insistia e perguntava e remoía, enquanto estalava os dedos e se agitava, me agitando. — E os outros? Também não dão nada?” (ET, p. 23). Totonhim não queria falar sobre a família, sobre o passado. Ele estava interessado na história de Nelo, queria mais lenha e palha para seus sonhos, agora com a presença do irmão estes poderiam ser concretos. Passa-se a observar, então, que Nelo seria para Totonhim a personificação de São Paulo, ou melhor, do diferente, da novidade. Mas Nelo insiste nas perguntas, Totonhim só tem desilusão para contar. Totonhim pensa em dizer que de fato os irmãos não dão nada, eles mal conseguem ter o que comer, e ele próprio abandonara a casa em Feira de Santana, pois não aguentava mais a vida que levava, a sua insignificância perante a mãe:
Entre nós só uma estrela brilhou. Está tudo gravado na minha memória. Ouça:

— Ninguém faz nada por mim. Ninguém me ajuda em nada.
Reconhece esta voz? Continue ouvindo. Continue:
— Tenho doze filhos e me sinto tão sozinha. Se não fosse Nelo.
Espere mais um pouco:
— Não vou passar sua roupa. Não sou sua empregada.
E agora atenção:
— Os incomodados que se retirem.
Eis porque me retirei. Quer um conselho? Vá lá. Viva uns tempos com eles. Assim você não precisará de minhas explicações. Tente saber o que é passar a vida dentro de um saco de gatos, com um rombo no fundo. Os gatos entram, se arranham e vão descendo pelo fundo do saco. Comi os farelos enquanto pude suportar, agora…
(ET, p. 24)

Totonhim pensa em dizer ao irmão tudo o que havia registrado em sua memória. Para a mãe, só Nelo importava. A casa, porém, se enche de gente atrás do monumento vivo, e as palavras de Totonhim ficam mais uma vez reservadas na memória. A fala dele ainda revela sua relação conflituosa com a família, enquanto o irmão estava longe e sendo venerado pelos parentes, ele suportou comer os poucos farelos de vida que lhe ofereciam. Nelo estava longe e nem sabia da atual situação da família, perdido da manada, a realidade das respostas de Totonhim o incomodava. Entretanto, Totonhim estava perto da manada, vivenciou os problemas da família, cresceu escutando a mãe venerando o irmão. A presença e morte de Nelo, portanto, significam a rememoração e reflexão de Totonhim sobre sua história, família e Junco.

Através do narrador-personagem Totonhim observa-se Junco como figura de crise, instabilidade, de pobreza; por ele, vê-se também uma família em crise, instável, pobre. Seriam Junco e família a mesma coisa? Parece que sim, ambas sofrem pela seca, em ambas a migração se faz presente. Não há como separar bem o sofrimento da terra do sofrimento das pessoas. Totonhim é o narrador-personagem que evidencia uma distância crítica em relação aos problemas do Junco, que se posiciona de modo reflexivo em relação à terra e aos outros.

Totonhim projeta-se em Nelo, palha e lenha dos seus sonhos, o irmão é também o entendimento de si mesmo. Ora, Totonhim era abafado pela imagem modelo do irmão, a mãe só conseguia enxergar Nelo, embora este estivesse longe. Quando o irmão morre, entre o rádio, o relógio e os óculos do irmão, Totonhim prefere ficar com o último. A escolha suscita algumas questões: com os óculos ele poderia então ver as coisas como Nelo, ou ser como ele? Vendo o mundo como Nelo, a mãe passaria a enxergá-lo? A escolha talvez tenha sido inconsciente, mas ela revela uma crise identitária.

Em relação ao pai e à mãe, ambos representam de um certo modo o próprio Junco. A mãe é a terra que faz os filhos irem embora de casa; o pai é a terra no sentido de territorialidade, ele é o único a querer ficar em seu espaço e foi o único a não concordar que Nelo fosse para São Paulo. A mãe queria que os filhos estudassem, via na cidade a resolução de seus problemas, não desejava que o passado dela se repetisse com as filhas, então deixa a roça e vai para Feira de Santana:

— Meu pai me tirou da escola quando escrevi o primeiro bilhete da minha vida para um namorado. Não posso deixar que aconteça a mesma coisa com as minhas filhas. De fato não deixou. Justiça se lhe faça. Acabamos todos nos arranchando numa casinha pobre de uma rua pobre de um bairro pobre, sem luz, sem água, sem esgoto, sem banheiro. Mamãe alugou a casa fiando-se no dinheiro que mandavas todo mês e, quando atrasavas a remessa, era um deus-nos-acuda. Vivíamos permanentemente debaixo do medo de sermos postos da rua. Ela passou a se desdobrar em trinta numa máquina de costura, enquanto esperava o feijão e a farinha que o velho mandava da roça. De vez em quando ele vinha, para reclamar de tudo (ET, p. 156).

Entretanto, a ida da família para a cidade de Feira de Santana não trouxe grandes transformações, pelo contrário, a pobreza era ainda mais significativa. A própria roça abandonada era ainda uma ajuda. Nesse trecho da última parte do romance — “Essa Terra Me Ama”, Totonhim leva a mãe para o hospital, que após ver o filho morto, passa por um surto de loucura, no caminho, ela fala de fatos passados, a loucura é a rememoração de sua vida.

No romance, a mãe é uma figura importante da história. Há na relação que ela estabelece com os filhos e o marido questões que perpassam pelo papel da mulher na família, na sociedade. Verificar, por exemplo, a posição que ela exerce no romance, talvez revele sua função como mãe, esposa e mulher numa outra ordem representativa.

O pai havia relutado, por um tempo, em sair do seu lugar. Até resolver ir também para Feira de Santana, onde sua mulher e filhos já estavam. Ele culpava a mulher por sua ruína. Se ela não tivesse a ideia fixa de ir para cidade, os filhos teriam ficado e ele não teria tido a necessidade de contratar trabalhadores, nem fazer o empréstimo no banco. Para ele, escola não enchia barriga de ninguém, mal sabia assinar seu nome, pois sua “Escrita era outra e essa ele tinha orgulho de fazer bem: riscos amarronzados sobre a terra arada, a terra bonita e macia, generosa o ano inteiro, desde que Deus mandasse chuva o ano inteiro. A melhor caneta do mundo é o cabo da enxada” (ET, p. 68). A melhor caneta do mundo, entretanto, havia produzido uma dívida no banco. O pai então decide vender tudo para saldar a dívida e ir embora. Antes de ir para Feira de Santana, pensa, por um momento, em ir para São Paulo ou Paraná, acha que em um desses lugares encontraria uma roça para cuidar, como se fosse o dono. A ideia do pai foi muitas vezes recebida por Nelo que, também repetidas vezes, não respondeu. Até o dia em que a mãe recebeu uma carta em que o primogênito avisa que a metrópole não era lugar para o velho pai, ele não ia se acostumar com a cidade, e que, portanto, desistisse da ideia. O pai compreende a atitude do filho como vergonha, Nelo não o queria “no meio das suas civilidades. Eu sou da roça e não tenho as novidades dele. É por isso” (ET, p. 69). Em suma, o pai é o sentimento de territorialidade, de pertencimento, de fincar raízes, de continuidade do passado; a mãe de desterritorialidade, de dispersão, de soltar as raízes, de ruptura com o passado; ambos são Junco, ambos tornam ambígua a terra.

Há no romance Essa Terra uma visão problematizadora e crítica não só da vida, do lugar — das condições da região, como também das relações que os personagens estabelecem entre si e com a terra, relações que estão ligadas a um contexto sócio-econômico mais amplo. Por isso, o romance atualiza a vertente critica e rompe com a vertente mítico-nostálgica, uma vez que o espaço regional em Essa Terra é dilacerado no que ele tem de “crise”, é colocada à vista a “espoliação econômica” que se escondia num discurso que buscava num espaço nordestino a expressão de uma identidade nacional. Além de que o romance não possui, como veremos adiante, um “caráter pitoresco e folclorizante”. A abordagem da temática sertaneja em Essa Terra se afasta seja de uma metonímica glorificação do País, característica do Romantismo, seja de uma crítica externa de raízes sulinas ou litorâneas e de bases positivistas e deterministas, que, expressa sobretudo nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras do século XX, atribuía a miséria da região às condições mesológicas e/ou à formação étnica da sua população.

De fato, no romance a miséria da região não advém de “condições mesológicas” ou da “formação étnica” dos habitantes do Junco, nem os elementos que representam um espaço nordestino, e que estão presentes no regionalismo tradicional (a seca, a religiosidade etc.), não estão em primeiro plano no romance, mas são secundários e circunstanciais: o foco de interesse, agora, é o processo político e sua repercussão na atividade e na consciência do indivíduo; é o processo econômico e sua interferência na vida familiar e comunitária. O processo migratório que ocorre em Junco, a ruína do pai, a ida de Nelo para São Paulo, o desejo e a luta da mãe para que os filhos estudassem estão, de fato, relacionados e abarcados por um processo econômico (que passa a ter outras configurações, é o que veremos também no próximo tópico) que afeta suas vidas e relações.

A relação entre Totonhim e a mãe parece refratar bem essa ambiguidade do processo de identificação. Ambos têm entre si a “expressão de um laço emocional”, todavia, um laço emocional expresso pelo afastamento. Ao contrário da relação de aproximação entre a mãe e Nelo, havia entre os dois um certo tipo de identificação, a mãe uma vez disse a Totonhim: “Eu queria ser homem para poder mandar no meu destino. Ir para onde bem entendesse, sem ter que dar satisfações a ninguém” (ET, p. 152). A partir desta fala, se pode observar que Nelo, na verdade, é ela própria, isto é, ele representa aquilo que ela desejava para si, pois o primogênito foi embora para onde queria, tornou-se dono de seu destino. Entendemos então a predileção da mãe pelo filho mais velho. Totonhim, de modo diferente, aos olhos da mãe é a imagem inversa de Nelo, Totonhim é o “ficar”, é a terra de vida difícil, ele representa o que a mãe não deseja. Há, entretanto, uma identificação da mãe com Totonhim, visto que ele torna visível aquilo que a mãe não queria para ela. É possível então compreender porque a relação de Totonhim com a mãe é de afastamento, era como se ele não existisse, apenas Nelo importava. Diz-se, desse modo, que Totonhim era invisível perante a mãe, sua invisibilidade, porém, será paradoxalmente sua reapresentação diante dela.

Quem sou eu?” (ET, p. 105); assim inicia o primeiro capítulo da terceira parte — “Essa Terra Me Enlouquece”. A mãe que não suportando ver o filho Nelo morto, passa a vivenciar um surto de loucura, a sua pergunta é direcionada a Totonhim e feita corpo a corpo:

Uma coisa eu acabava de descobrir: éramos do mesmo tamanho. Eu e ela, ali, corpo a corpo. Como dois namorados que se reencontram depois de uma longa ausência e se apertam, se apalpam, antes de um longo e apaixonado abraço. Pela primeira vez na vida tive vontade de abraçá-la. Só não o fiz porque não pude. Ela estava apertando o meu pescoço com toda a força que ainda restava em suas duas calejadas e ásperas mãos […]
— Você se lembra de mim? Quem sou eu?
Ia dizendo: — A senhora é a filha mais velha daquele homem que está ali, pregado na parede. E a mãe daquele outro que está ali, estirado no chão dormindo pra sempre. Eu queria falar mas não conseguia. Enquanto el

Uma Leitura no calor da hora

 Celso Japiassú, poeta e publicitário – Rio, 21/06/76.

Capas de Essa Terra

Velho Torres:

Tracei Essa Terra neste prolongado fim de semana que passou. Ou melhor, fui envolvido pelo livro a partir do primeiro parágrafo. Os dois ou três capítulos que eu já conhecia antes de publicado o livro não me tinham dado a idéia do romance inteiro, como vi agora nesta primeira leitura. Pretendo outras leituras, porque a riqueza do livro não será nunca apreendida integralmente lendo-se uma vez só. E esta é uma carecterística dos grandes livros.

A densidade impressiona e as personagens estão construídas com uma precisão maravilhosa. Nelo e o pai principalmente. Totonhim, como narrador, vai crescendo no desenrolar da história até chegar na sua estatura, em que se misturam o arauto e o vivente. Cada uma das personagens me pareceu ser um universo dramático à parte, independente das outras. Não é apenas a história do Junco e sua sina. É tambem e muito mais a tragédia pessoal das personagens que desfilam pelo livro, marcantes e exemplares. História dramática e subjetiva de uma pequena cidade nordestina, é a saga de uma família, é a triste história de nós todos emigrados, é uma bela teia de destinos cruzados que não se ligam.

Queria te dizer também da minha discordância de uma crítica que li não me lembro aonde. O cara elogia o livro mas faz discretas alusões à técnica do autor, que desconheceria certos macetes de narração. Acho o livro muito bom, inclusive tecnicamente. Ou o cara está querendo que você escreva tendo como modelo o romance do século XIX? Era muito bom, mas Stendhal quebraria a cara escrevendo sobre o Junco. Tenho a impressão de que Essa Terra está escrito montado em narrativa tecnicamente correta, usando com segurança as inversões espaço-temporais, não confunde o leitor com pedantismo idiota, nem quer dar “uma porrada na literatura brasileira”.

Enfim, o que eu queria te dizer é que gostei do livro. Quando acabei de ler, no sábado de manhã, fechei o volume, olhei mais uma vez a capa e pensei para mim mesmo – não é que esse puto escreveu uma obra prima?

Receba um abraço, com carinho. Votos de boa carreira para Essa Terra. Para você, muitos e muitos anos de vida produtiva, porque ainda hás de escrever muito para ajudar os teus leitores a viver com mais dignidade, ou seja: viver sem esquecer a grandeza e a miséria da condição humana.

“Ponteiros parados” Ou a gênese do cão

Prefácio da 1ª à 14ª edição – 1976/2000
Lígia Chiappini Moraes Leite

Capas de Essa Terra

Quando a matéria é o sertão

“Produto Nacional Bruto; gente se alimentando de farinha de telha, sopa de farrapos e carne de rato”. Assim Antônio Torres definiu recentemente sua obra, firme na opção de tematizar um Brasil subdesenvolvido e temporalmente descontínuo. Tais palavras, como ele próprio esclarece, são ditas ainda sob o impacto de uma viagem pelo sertão da Bahia, recomeçada de certo modo nas páginas deste seu novo livro, onde o Junco aparece como um paradigma dos lugarejos nordestinos de “sopapo, caibro, telha e cal”, feios e secos como a gente que ai teima em sobreviver.

Para o autor, o simples fato de existirem muitos juncos pelo Brasil afora justificaria o livro. Embora possamos aceitar esse tipo de argumento, enteressa-me ressaltar alguns aspectos que ele poderia injustamente obliterar. Trate-se de elementos tipicamente ficcionais que, neste livro, alargam o documento, transfigurando a realidade para fornecer dela (paradoxo aparente de toda a arte) uma imagem mais profunda. Interessa mostrar sobretudo que fazer da ficção uma forma de conhecimento da realidade social leva a pôr em jogo um complexo de relações pelo qual autor e leitor também acabam na berlinda, porque são envolvidos pela rede dialógica do discurso ficcional, convite à auto-análise e à participação.

Não há dúvidas de que a estória de Nelo e Totonhim é exemplar. Nesse sentido caberia aqui uma análise que buscasse homologias entre esse mundo de palavras e a sociedade aí representada, através de situações e personagens típicos.

Seria possível mostrar, então, como são generalizáveis a muitas outras regiões brasileiras elementos como estes: a decadência do Junco, com a modernização representada pela chegada do banco por outras inovações que acabam acarretando a ruína dos plantadores e o êxodo para a cidade; nesta, o desemprego, as dificuldades da família numerosa para manter os filhos na escola ou mesmo conseguir o mínimo para a subsistência; a prostituição das mulheres (duplamente descriminadas numa sociedade eminentemente machista) ou a perpetuação de um estado miserável no casamento com indivíduos em condições econômicas igualmente precárias; o sonho da grande cidade como última esperança e, por fim, o esfacelamento desse sonho, diante da evidência de que a “mina de ouro” não é patrimônio comum.

No Junco e sua gente, reconhecemos tipos e situações que já constituem verdadeira obsessão nos romances de Antônio Torres. Em Um Cão Uivando para a Lua, encontramos um repórter como personagem principal, vivendo em São Paulo, mas cuja infância se passa no Junco, em condições muito semelhantes a do protagonista narrador de Essa Terra e de seu irmão, Nelo. Há um momento em que isso fica bem claro. Referindo-se aos meninos subnutridos da Amazônia, o personagem sugestivamente denominado A (o que reforça o seu caráter exemplar), diz: “Mas não era apenas neles que eu estava pensando. Isso também era outra coisa que eu já tinha visto antes, no Junco. Eu já tinha sido um daqueles meninos, eu era a soma deles todos”.

No livro seguinte, Os Homens dos Pés Redondos há igualmente um personagem denominado O Estrangeiro que também veio do Junco, para a grande cidade, onde trabalha como publicitário. Essa presença obsessiva de alusões à vida no Junco, principalmente ligadas à infância, apontam até mesmo para um certo cunho autobiográfico das estórias de Antônio Torres, como sugerem certas passagens do prefácio de Essa Terra, onde reaparecem esses elementos obsessivos que também vão entrar na composição deste romance. Entre outros, a família numerosa; a dificuldade em fazer o ginásio; a modernização do Junco contra o desenvolvimento do trabalho na lavoura; os amigos e conhecidos que emigram para as grandes cidades; os tipos reais que inspiram os seres ficcionais, embora não se confundam com eles, como o velho Giese, Lela de Tote, Humberto Vieira… Pode-se levar mais longe a analogia, se notarmos as semelhanças de certos nomes ou iniciais: Lela – Nelo; Antônio Torres – A e T (personagens de Um Cão…); Antônio Torres – Totonhim. Mas tudo isso ainda é o mais óbvio e o mais exterior no texto. Para alcançar uma dimensão mais profunda de leitura é preciso verificar como tipos e situações se refletem na consciência dos personagens neste romance e quais as relações entre uma certa consciência coletiva difusa e culpada da gente do Junco, com a consciência mais crítica, mas igualmente culpada, do narrador-protagonista.

Pela sondagem das idas e vindas dessa consciência a que o leitor tem acesso mais diretamente, porque grande parte da estória é narrada em primeira pessoa, é que se estabelecerá uma ponte entre o personagem, o autor e o leitor, rumo a uma representativa mais interna ao texto.

Quando a culpa faz crer no Apocalipse

Perpassa o livro todo uma culpa coletiva da qual participam em menor ou maior intensidade todos os moradores do Junco. E o pecado parece ter sido o abandono da terra, a entrega à sedução do progresso, a fidelidade concedida ao Anticristo, representado pelo banco, cujos empréstimos precipitam a decadência da lavoura com a imposição de plantar cizal. O banco e o sargento são os principais agentes estranhos que vêm disseminar o mal no pequeno lugarejo; com eles vem a televisão, as idéias extravagantes, as novidades citadinas, o palavreado enganoso, para roubar os braços fortes do cabo da enxada e enfraquecê-los no uso da caneta. As pessoas enlouquecem para purgar essa culpa coletiva: como Alcino, Pedro Infante, o prefeito, a mãe de Nelo.

A loucura vai-se alastrando à medida que a narração progride e a fala profética do doido Alcino dá coerência às alusões dispersas ao Apocalipse e às pragas de ilustres antepassados, como Antônio Conselheiro. A terra irada fala pela boca de Alcino uma linguagem bíblica. Sua voz é um pano de fundo constante contra o qual os acontecimentos do presente (que giram em torno da morte de Nelo) ganham uma dimensão trágica. A loucura põe a nu a culpa e a clama pela expiação.

E a culpa se configura cada vez mais na vitória da caneta contra a enxada, duas forças em conflito, personificadas em dois personagens-chaves: o pai e a mãe de Nelo. Esta, defendendo a ida para a cidade, a compra da televisão, a escola; o pai, sustentando a permanência na terra, o plantio, a união da família no trabalho da lavoura. Essa luta, por vezes, se interioriza num só personagem, como em Nelo que, embora nada possa esperar de São Paulo, onde perdeu tudo, não se adapta mais no Junco, à sua vida primitiva e seu conforto.

Mas a culpa de ter abandonado o pai, a lavoura e a velha casa o persegue e é retomada simbolicamente no remorso por ter perdido o chapéu. Este é símbolo dos tempos primordiais, “é do tempo de Deus nosso Senhor”. Imagem da proteção e de uma vida sem culpa, o chapéu aparece na cena em que Nelo está sendo agredido pelo primo e rival, numa noite indiferente da grande cidade. Nesse momento, o pai aparece-lhe estendendo o chapéu e cruzam-se em sua mente perturbada cenas do presente com cenas do passado: lembranças desconexas de uma vida telúrica, onde encontra refrigério para o sofrimento da hora. Mas a culpa de ter perdido o chapéu é inseparável da consciência da impossibilidade de voltar a usá-lo. É aliás, essa ambivalência que impede o livro de cair num tom excessivamente saudosista, pois sob a culpa há sempre a desconfiança de que ela é também uma força repressiva que se exerce sobre o homem miserável do sertão. Aliás, essa desconfiança já se insinuara anteriormente, quando A recordava as explicações supersticiosas que, em criança, ouvia para o fenômeno das chuvas e das secas: “o mesmo Deus que dava chuva, também dava sol e o sol era castigo dos céus, diziam os mais velhos, citando fanáticos e profetas”.

Mas a ambivalência entre a aceitação e a negação da terra, de suas crenças e de sua gente, por parte e Nelo e de outros personagens dos romances anteriores, também existe no narrador-protagonista de Essa Terra. E, embora a profecia seja contrabalançada pela explicitação das causas econômicas e sociais da decadência do Junco, ela continua a enformar a narração, ora diretamente, ora através de símbolos de danação, como o sol ou o mata-pasto. Aceitar a profecia é aceitar a culpa. E, de fato, esta é introjetada no personagem narrador desde o início da narrativa.

Quando o homem se faz em pedacinhos

Como o narrador é também protagonista, a narração se faz, de maneira descontínua, desenrolando-se ao sabor das lembranças mais ou menos imediatas e mais ou menos intensas. Misturam-se, assim, aos acontecimentos do presente (que são poucos e giram em torno do fato central: o enforcamento de Nelo) os do passado, que aparecem sempre envoltos no tom magoado do narrador (tom de menino preterido pela mãe e abafado pela imagem de um irmão perfeito, quase lendário). Assim, à medida que a narrativa avança, o narrador se transforma em narrado, porque sua palavra nos diz menos sobre os outros do que sobre si mesmo. Analisar o seu passado e o de sua família é também realizar um esforço de auto-entendimento e, em todo esse processo, avulta um traço no seu relacionamento com o pai, a mãe, o irmão e o lugar de origem: a ambivalência entre o amor e o ódio. A uns e outros repele e deseja ao mesmo tempo. Odeia a mãe por discriminar os filhos em favor do mais velho, por atormentar o pai e por representar a mulher escrava do consumo; mas admira-lhe a tenacidade, a coragem e ama-a como amante não correspondido, deixando transparecer às vezes fantasias incestuosas: “Minha mãe vai virar sereia. Eu sempre achei que ela tinha corpo de sereia”. Por outro lado, o pai aparece envolvido em grande ternura, como o homem da terra, o artesão, familiarizado com os bichos e a morte; homem bom, incapaz de bater num filho, vítima de uma mulher mais astuta e ambiciosa.

Deslocado para a cidade, porém, ele aparece bêbado e fraco, incapaz de sustentar a família e de assumir as responsabilidades de chefe, quando então avulta, por contraste, a figura quase heróica da mãe. A ambivalência se resume freqüentemente numa frase: “Todos têm razão. Essa é que é a verdade, todos têm razão”. E ambivalente é também a relação do narrador com a terra, como já indicam os próprios subtítulos, nessa síntese de contrários que é a terra-mãe chamando, mas ao mesmo tempo, enxotando; fazendo enlouquecer, mas também amando.

A mesma culpa do personagem-narrador transparecendo no final, ao perceber que o desejo de libertar-se da família, para “não morrer atolado em problemas” é a mola mestra da sua partida, (mal escamoteada pela necessidade de ganhar mais e auxiliar o pai e irmãos menores) aparecia naquele momento em que A lembrava a visita feita aos pais, visto então como dois estranhos; momento em que a acusação se explicita: “Pensa que mandar um dinheirinho todo mês para sua gente já resolve tudo, pensa? Você é um assassino”.

Na verdade, o narrador-personagem Totonhim é o ante-Nelo, o ante-A e o ante-Estrangeiro; ou é todos eles no seu nascedouro. Nesse sentido, é um duplo de Nelo, em Essa Terra.

Nelo traz para dentro desse romance a figura dos outros personagens desencontrados de si mesmos, porque se perderam na cidade, e os confronta com um passado vivido no Junco. Totonhim identifica-se com Nelo, embora mantenha também em relação a ele, a atitude ambivalente: ama-o, admira-o, faz dele a “palha de lenha dos seus (meus) sonhos”, mas odeia-o e sente ciúmes pelo que ele sempre representou para os pais; e sobretudo não o perdoa por haver, com sua morte, revelado a sua verdadeira face, desfazendo o mito ao expor-se em toda a sua miséria material e moral.

A ambivalência explica porque encontram-se lado a lado cenas de extremo carinho de sua parte para com Nelo, e cenas violentas como aquela em que tenta esbofetear o cadáver. Mas a complexa relação do narrador com Nelo se revela através de uma imagem central – dos ponteiros parados: “vinte anos para a frente, vinte anos para trás. E eu no meio, com 2 ponteiros eternamente parados, marcando sempre a metade de alguma coisa – um velho relógio de pêndulo que há muito perdeu o ritmo e o rumo das horas”.

Essa imagem torna evidente que a vida de Totonhim é um simulacro. Ele tem 20 anos que desviveu identificando-se com o irmão, projetando o desejo de ser outro. Os próximos 20 anos estão condicionados igualmente pela vida do irmão que tem 40. Relógio sem corda, ponteiros parados – conotando uma vida desvivida por antecipação, morte na repetição padronizada, vida de forno – a imagem é mais ampla, transcendendo o caso específico do narrador-protagonista e adequando-se a toda uma gama de indivíduos – classe média, indecisos entre o apego a um passado de miséria e a identificação com uma classe superior a que buscam ascender. Totonhim prefigura (embora seja criação posterior), o intelectual-classe média que os personagens principais dos outros dois romances representam. A inversão explica-se porque as origens parecem mais claras à luz do vivido.

O espelhamento de um personagem em outro que existe aqui entre Nelo e Totonhim já existia entre A e T e entre De Jesus, o Estrangeiro e Alves. De um livro para outro há uma fragmentação crescente do homem, figurando a desestruturação da personalidade na luta cega pela ascensão, no trabalho sem prazer e sem dignidade, no sufocamento do indivíduo progressivamente retificado.

Se em Os Homens dos Pés Redondos a esquizofrenia chega ao máximo, com a explosão de um personagem em três, refletida na própria explosão do arcabouço lógico da narrativa que caminha por direções desencontradas (e se isso já acontecia de certa forma com a patética figura de A, perplexo ante a necessidade de conviver com dois seres diferentes dentro dele) Essa Terra parece buscar a unidade perdida, mas o que encontra são já os germes da esquizofrenia. Totonhim já não é mais Totonhim; Nelo é quem tinha razão: ele já traz as marcas do homem dividido.

Por isso, uma análise mais profunda deste livro mostra que não se trata somente da representação da miséria do Junco ou do Sertão Brasileiro, mas sobretudo de uma sondagem que se inicia (ou prossegue): a sondagem de uma condição social, através do mergulho no caso individual que acaba nos conduzindo às origens mais gerais da culpa, onde se encontram o autor, o personagem e o leitor, sofrendo na pele a fragmentação do homem, desde que a civilização criou o abismo entre a enxada e a caneta.

In ESCRITA. Ano I, n° 1, 1975. p.19.

Cf.: LUKÁCS, Georg. “La categoria de La particularidad.” In: Estética. Barcelona, Ed. Grijalbo, 1972. v. 3.

TORRES, Antônio. Um Cão Uivando para a Lua. Rio de Janeiro, Ed. Gernasa, 1972.

Id. ibid., p.45. (Sobre o caráter exemplar de A e T ver a orelha do livro, escrita por Celso Japiassu.)

TORRES, Antônio. Os Homens dos Pés Redondos. Rio de Janeiro, Liv. Francisco Alves Ed., 1973.

TORRES, Antônio. Um Cão Uivando para a Lua. Rio de Janeiro, Ed. Gernasa, 1972. p. 45.

TORRES, Antônio. Um Cão Uivando para a Lua. Rio de Janeiro, Ed. Gernasa, 1972. p. 100.


” Essa Terra marca nitidamente o contraste entre o interior – de estrutura feudal, miserável, mas de valores e feições humanamente reconhecíveis – e São Paulo, sem rosto nem forma, um falso Eldorado onde ganhar a vida significa perder o seu sentido.” Leo Gilson Ribeiro/Jornal da Tarde (SP)

O suicídio do herói

Revista Veja, 30 de Junho, 1976.
Affonso Romano de Sant’Anna.

Capas de Essa Terra

Poderia se chamar também “a volta do herói” esse romance em que Antônio Torres conta como o baiano Nelo larga sua família, vai para São Paulo e regressa, vinte anos depois, para se enforcar aos olhos do irmão mais novo e dos parentes, que o julgavam um indivíduo bem sucedido.

O livro – ilustrado por Elifas Andreato – retrata o herói, ou melhor, o anti-herói como o são também o repórter de “Um Cão Uivando para a Lua” (1972) e o publicitário de “Os Homens dos Pés Redondos” (1973), livros anteriores com os quais Torres marcou seu lugar entre os novos ficcionistas. Unindo os três livros, aparece não apenas a temática da loucura e da miséria social, mas a referência à cidade baiana de Junco, que assume um destaque maior em “Essa Terra” (Junco é a cidade natal do próprio Torres).

Tragédias – A história é contada pelo irmão mais novo Totonhim, e narra a decomposição de um mito. Assim, Nelo, que era “um homem belo e rico, com seus dentes de outro, seu terno folgado e quente de casimira, seus raybans, seu rádio de pilha e um relógio que brilha mais do que a luz do dia”, vai se convertendo num bêbado incapaz de criar uma família. Cheio de doenças, encontra no suicídio o gesto capaz de libertá-lo da falsa imagem que a família nele cultivava.

A história, contudo, não se reduz a esse eixo dramático. Além do lado psicológico ou individual, interessa ao romancista o contexto social onde isto se gera. Daí que a tragédia do individuo e a tragédia da comunidade estejam interligadas neste livro. E ao intitulá-lo “Essa Terra” e ao situá-lo no nordeste. Antônio Torres está se filiando a uma tradição literária que tem um de seus melhores momentos no romance social de 1930.

Mas poderia surgir a pergunta: não estaria o autor entrando perigosamente numa terra exaurida já pela ficção de um Graciliano Ramos especialmente com seu “Vidas Secas” (1937)?

Outro nordeste – A melhor resposta poderia ser encontrada no própria Graciliano, a quem Otávio de Faria advertiria de que o sertão, esgotado, não dava mais romance. Ao que o escritor alagoano retrucou: “Santo Deus! Como se pode estabelecer limitações para essas coisas” – e fez a obra que fez. Torres, como Graciliano, optou pelo mais honesto: escrever sobre o seu nordeste. E assim como Graciliano em carta a José Condé identificava as personagens de “Vidas Secas”, mostrando que saíram de sua família, “Essa Terra” tem no lastro biográfico a sua força original.

Tecnicamente o livro de Torres (e de muitos ficcionistas jovens brasileiros) mostra um avanço em relação à montagem dos romances sociais de 1930. à narrativa linear e cronológica ele prefere um desencadeamento em que passado, presente e futuro se cruzam oferecendo uma estória às vezes de acompanhar. Em torno da tragédia central, pequenas outras narrações reafirmam a tensão patética das personagens.

Cabe, no entanto, a cada época, educar os seus bons leitores. O publico de 1930 teve também que aprender a re-ler o Brasil. No caso específico deste livro, existe toda uma leitura acompanhada por uma introdução e um “suplemento de trabalho” endereçado a alunos e professores. E através de uma aliança com a escola procurar formar um público novo que se deixe transformar por uma linguagem também nova.


Uma análise mais profunda deste livro mostra que não se trata somente da representação da miséria do Junco ou do Sertão Brasileiro, mas sobretudo de uma sondagem que se inicia (ou prossegue): a sondagem de uma condição social, através do mergulho no caos individual que acaba nos conduzindo às origens mais gerais da culpa, onde se encontram o autor, o personagem e o leitor, sofrendo na pela a fragmentação do homem, desde que a civilização criou o abismo entre a enxada e a caneta”.

Lígia Chiapinni Moraes Leite, da Universidade de São Paulo, no prefácio à primeira edição do “Essa Terra” (1976).

A terra foi lavrada. Brotaram palavras

O Estado de São Paulo, 9 de dezembro de 1984
Cremilda Medina

Capas de Essa Terra

Qual escritor – ainda mais se vier dos confins da terra brasileira – que não se emocionaria ao ver um livro seu, em francês, com destaque numa boa livraria de paris? Antônio Torres, que começou a publicar nos anos 70 e ficou mais conhecido depois do sucesso de “Essa Terra”, passou agora por essa experiência quando compareceu ao lançamento do mesmo livro (Cette Terre) na França. Já se vai acostumando às edições estrangeiras: a Editorial Sudamérica lançou Un perro aullándole a la luna, “Essa Terra” está também traduzido para o inglês e seus contos figuram em antologias no Canadá, México, Polônia e Argentina.

Não que se embriague com a expansão além da fronteira brasileira. Ele, como a generalidade dos autores nacionais, sabe que este é o autêntico espaço de difusão para a literatura brasileira. Mas seu lado ingênuo (adolescente, por que não?) sente um certo frisson diante de um vitrina parisiense, mesmo que a voz do Brasil se dilua no meio de um mar de outras vozes internacionais. Talvez porque o menino Antônio não esqueça nunca que saiu da terra, da enxada, no interior mais remoto da Bahia, e conseguiu chegar, quase por milagre de sobrevivência, ao domínio da máquina de escrever.

Junco, Bahia, 1953. Antônio Torres, filho de agricultores assolados pelas intermitentes secas do Nordeste, teve a grande chance de aprender a ler e escrever com a professorinha abnegada que por lá peregrinou. Eram 11 filhos e Antônio devorou as seletas emprestadas pela professora, adquiriu o dom mágico de saber ler e a comunidade o consagrou: foi uma criança muito especial que percebeu o significado e o serviço a que se presta a escrita e a alfabetização. Era requisitado para ler e escrever cartas, único vínculo de tanta gente que saiu das agruras do sertão para nunca mais voltar. Viúvas de maridos vivos ou namoradas que perdiam seus companheiros, obrigados a partir. Era ele quem escrevia as declarações de amor e de dor. Segunda-feira, chegava o correio no lombo do burro e, com ele, a esperança de vida que fatalmente teria de passar pelos olhos abertos, atentos, de Antônio. Nos outros dias da semana, nas horas de descanso do campo, era os ouvidos do menino que se perfilavam para captar os romances, as estórias de pavão misterioso da fabulação popular.

Os auditórios de Paris, por ocasião do lançamento de Cette Terre, deliraram quando o escritor brasileiro falou dessas raízes. Nada de realismo fantástico, mas sim fantástica realidade. Disse mais para europeus estupefatos: desde sempre valorizou a palavra como serviço muito importante. Na hora em que morria alguém no Junco, chamavam-no para ler o missal. O compromisso com a escrita pesa sobre sua cabeça até hoje, mas foi só em 1975, em um debate público, que se conscientizou: é um escritor fatalmente engajado com a palavra escrita. Tudo o resto veio por acréscimo: conseguiu ir estudar no ginásio em Alagoinhas, descobriu as bibliotecas e suas almas – Tolstói, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Monteiro Lobato e tudo que caísse na rede. Trabalhava numa sorveteria e, sempre que dava, corria para o cinema, com programa duplo, os filmes mexicanos da Pelmex, as chanchadas brasileiras, os musicais de Hollywood; vieram também James Dean e Elvis Presley…

Já em Alagoinhas, menino metido, escrevia para o jornal local. Quase foi expulso do ginásio, porque tratou da escola sob o titulo – “A Casa Grande de Cunha”. Foi difícil tentar convencer Cunha, o dono da escola, que esse titulo não tinha nenhuma intenção… O jornal do ginásio também lhe serviu de prática na profissão que logo se impôs. Paralelamente, lia muito poesia. Como bom baiano, não fugia ao império de Castro Alves, mas também se deliciava com Gonçalves Dias e Augusto dos Anjos. Até aí, pura vivência de um mundo interiorano. Com o serviço militar, porém, deslocou-se para Salvador, a primeira grande capital em sua vida.

Jogou alto. Sempre. Um borracheiro de Alagoinhas, que veio a Salvador pelo trem Marta Rocha (não havia asfalto), o apresentou ao editor-chefe do Jornal da Bahia. Quase morreu de emoção, as pernas tremendo. Pois ficou no jornal e caiu na realidade imediatamente. Mandaram-no para o cais do porto fazer matéria, não viu nada acontecendo e morreu de desgosto quando, no outro dia, os jornais de Salvador falavam de contrabando naquele mesmo cais em que não descobrira notícia. Essa dura experiência jornalística só é compatível a outra, no mundo da intelectualidade, quando, no aniversário do patrão, as pessoas só comentavam Proust. Ele, homem da roça, guardou um trauma que o empurrou a vida toda à procura de uma permanente atualização nas leituras.

O jornalismo, tirou de letra. A literatura, descascou-a e descasca-a até hoje com empenho e paixão. De Salvador para São Paulo, para trabalhar na Última Hora, muitos quilômetros rodados. A reportagem de rua e a linguagem dos paulistas, de início, o assustaram, não entendia bem o que escreviam, mas prestou muita atenção e se desempenhou. Saiu da era da reportagem de bonde para a frota de jipe. O que sempre se ressaltava era o pulso verbal desse baiano treinado em cartas, missais, pavões misteriosos, poemas, crônicas, reportagens e outros desafios do cotidiano. Por isso, não foi difícil ele, da enxada em Junco nos anos 40, passar para a publicidade, em São Paulo, nos anos 60. Em 1965, já então um redator muito bem pago com perigo de se escravizar para sempre à publicidade, fugiu. Foi para Portugal conhecer outros mundos, provas de outra aventura. Desempregado, sem eira nem beira, um anjo bom veio em socorro, o recolheu à sua casa e alimentou-o da mais pura literatura.

Antônio Torres deve ao poeta português Alexandre O’Neill não um mecenato, porque o poeta é pobre em toda parte, mas uma amizade e uma bagagem de leitura. Nos quatro meses em que ficou desempregado foi plantado às margens de Guimarães Rosa, entre outros pelas mãos de O’Neill. Por incrível que pareça, o poeta português o levou para Mário de Andrade, João Cabral de Melo Neto, entre muitos autores de todas as latitudes. Enquanto seus companheiros de ofício ou afinidades procuravam os Estados Unidos para se aperfeiçoarem, Torres se achou em Portugal. Se achou e achou seu texto. Mais uma vez O’Neill teve um papel fundamental. Dizia ele, vocês, brasileiros, sofrem de um complexo de inferioridade cultural. Então ele percebeu e agarrou seu texto, um texto mergulhado no Brasil, sem traumas de Proust na consciência.

Deve também ao romance de 30 – Jorge Amado, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz –, de quem é eterno aprendiz, a inspiração ficcional, Transpira muito até dar forma ao texto. Terminar um romance representa muita morte. Persegue, no fundo, a auto-superação: só se dá por atacado se uma pagina o surpreende, se sente uma nova dicção. O primeiro livro – “Um Cão Uivando para a Lua” (1972) – marchou em compasso de espera muito tempo. Não achava a primeira frase, para ele essencial. Dois anos sem encontrá-la. Um dia, numa clínica psiquiátrica do Rio de Janeiro, diante do amigo alienado, ficou sob o impacto da cena Só se acalmou quando jogou no papel um conto em que uma pessoa, alucinada, fala consigo mesma. Daí parar o romance, se passaram oito meses, Mas Torres adverte: por trás desses oito meses, o período mais curto em que escreveu um livro, estavam 30 anos de vida.

O segundo livro – “Os homens de Pés Redondos” – nasceu ainda quando vivia em Portugal. Sentado na Praça de Londres, no primeiro dia de Lisboa, viu a gente que passava, sentiu como que os pés redondos, cansados de tanto rodar. Ao escrever seus primeiros romances, nos anos 70, sentia-se assim de pés redondos, a literatura saindo como quem arranca uma espinha da garganta. Para uma geração de direta convivência com o Cinema Novo com o Teatro de Arena e com a Oficina de São Paulo, cm a descoberta de Oduvaldo Vianna Filho (Vianninha) e com ele, o conhecimento do homem brasileiro, a construção de personagem, foi como que uma compulsão expressar algumas das estórias que se acumulavam no baú. O romance é o espaço preferido, justamente porque é uma estória cheia de estórias, uma base de conflito e tensão. Nunca abandonou o mundo de Junco, a infância cheia de narrativas, os casos da cultura oral. À medida em que entrou nas vísceras da cidade grande, pressentiu que este é um mundo sem fábulas. As fábulas vivem com seu pai, seu avô. Ele, no entanto, assumiu as conseqüências urbanas. O conflito básico, em ternos estéticos – também um grande desafio -, é plasmar a fabulação tradicional com a narrativa urbana, a toada com o rock’d roll.

Malcolm Silverman, estudioso norte-americano, ao analisar a ficção moderna brasileira (em livro editado pela Ed. Civilização Brasileira), cita essa variação de Torres a partir mesmo dos dois primeiros romances que seriam urbanos, e o terceiro (e mais bem-sucedido_, que seria rural: “As revoltantes realidades contidas nas limitações geográficas de Essa Terra variam somente em contexto, se comparadas às de Os homens dos pés redondos e Um Cão Uivando para Lua. O pandemônio urbano, embora menos de molde a produzir um trauma psicológico imediato (como uma seca ou uma enchente), submete a resistência humana a uma prova igualmente dura”. Silverman que estuda, neste trabalho, até o quarto romance (“Cartas ao Bispo”), concluiu que “Antônio Torres emprega a figura onipresente de Gil como uma espécie de trampolim para o tema esterno das vicissitudes da vida, e também como um espelho passivo das iniqüidades sociais (por exemplo, a pobreza endêmica nordestina)”. O que quer dizer, no fundo, é que Antônio Torres, não importa onde se localiza geograficamente – se no campo ou na cidade -, está do lado dessas vicissitudes. “A linguagem reforça esta temática, sendo espontânea, despretensiosa e repleta de imagens populares,” O Crítico norte-americano arrisca uma certa fórmula, percebida no quarto livro, que seria uma mistura da tese neonaturalista com a introspecção modernista: “O autor demonstra senso de objetividade na escolha dos seus temas e um calculado refinamento de linguagem”.

Foi exatamente essa linguagem de transfiguração da realidade sofrida do sertão ou da metrópole que levou os franceses a saudades Gette Terre como “um testemunho e porta-voz de uma população que se esforça obstinadamente por sobreviver em meio ao barulho e à fúria de uma terra e, transe” e, por outro lado, um testemunho traçado pelas mãos de “um poeta e pintor”. Torres, modestamente, se alia aos ficcionistas brasileiros e aponta para o esforço dos anos 70: beber das águas do mais modernos escritores, Machado de Assis, percorrer a ética e a estética do romance dos anos 30, entrar no grande rio de unidade nacional, Guimarães Rosa, prestar atenção a duas diferentes contribuições –  Antônio Callado ( em “Quarup”) e Clarice Lispector –  e dar as mãos a todos os da ativa (presentes neta série), cada um com seu sotaque, e solidificar a identidade nacional, unindo os séculos que convivem neste território, sem esquecer a grande modernidade literária do continente e do mundo.

Um novo romance sairá, se tudo der certo, em 84. O estímulo de Paris valeu. Há um ano e meio não daí das 30 páginas iniciais, vai trabalhando no pão nosso de cada dia (a publicidade) e acredita que agora o livro deslanche. A cada novo parto as exigências de auto-superação são maiores. “Essa Terra” ficou marcado tanto no âmbito do público (grande audiência em São Paulo, Nordeste, da Bahia para cima) quanto na sua esfera emocional. Confessa que o sente como mais abrangente. Talvez o que lhe deu maior resposta como escrita a serviço do outro. Os olhos se enternecem ao lembrar que foi chamado para ir a São Paulo, convidado por baianos anônimos do ABC, seus conterrâneos de Junco, que queriam abraçar esse escritor da terra.

Bilhete a Antônio Torres

Jornal Folha da Tarde – São Paulo, 06/09/1976.
Torrieri Guimarães

Capas de Essa Terra

Eis aqui uma antiparábola. Não é o filho pródigo que está voltando à sua casa farta, rica, para uma festa de reencontro que deverá durar muitos dias – “porque estava perdido e foi encontrado”; nem é o filho mais novo, no ardor de sua juventude, que tivesse desejado conhecer o mundo e tudo quanto ele oferece de oportunidades para a recriação da vida, pelo contrário é o irmão mais velho que esteve fora, que lutou e sofreu, e agora volta; nem é o filho que regressa depois de ter perdido toda a sua fortuna, de ter esbanjado a sua parte da herança paterna, e ter comido a mesma comida disputada aos porcos – em vez disso se vê um homem no caminho da completa maturidade, cercado de um halo de heroísmo, que venceu a Grande Capital e volta para trazer aos seus as esperanças de uma redenção.

É o anti-herói, da antiparábola. E entretanto todo o romance de Antônio Torres acaba constituindo-se numa extraordinária parábola, densa de ensinamentos, que se precisa colher devagar, sem pressa, na dinâmica dos diálogos e no estudo sereno das situações, no confronto dos personagens e nos quadros de decadência física e moral que ele apresenta. A parábola de um homem que retorna a sua terra e sua gente para acionar velhos mecanismos de lembranças e permitir, a partir da frustração de sua imagem, que se deteriora e se destrói, uma apreensão completa da realidade que a todos envolve e condiciona. Como se o pobre enforcado, com seus despojos gloriosos, o relógio de pulso e os óculos rayban, ligado à história de todos e de cada um, como produto do meio, deflagrasse um processo de tomada de consciência.

Agora  que ele esta morto, e com ele o mito e as esperança, quebrada a imagem da grandeza sonhada, destruída a ponto entre a realidade e o sonho, é preciso que cada um, na medida de suas forças, aceite a sua derrota ou a sua miséria, ou se insurja contra eles, tentando fugir ao circulo vicioso das tradições. Da cultura cristalizada, do conformismo, da aceitação passiva dos desníveis sociais, refazendo a frágil ponte entre a Grande Ilusão (São Paulo) e a Dura Realidade (Junco). Apesar do nome da cidade e de seus personagens, o romance pode situar-se no universal, porque a situação que encena afeta a muitos grupos sociais, diz respeito a coletividades inteiras, que tanto podem ser a dos insulados no sertão, com seus costumes centenários e seus condicionamentos, despertados por estímulos que não compreendem e por isso também incapazes de um comportamento adequado – isto é, o pouco preparo para as técnicas novas de cultivo e de financiamento bancário, que resulta em um conflito eterno entre o moderno e o antigo – como também a luta de quaisquer comunidades pobres, com os sonhos dourados da sociedade de consumo (o automóvel, o televisor, os gastos facilitados) e a miséria sabiamente controlada por computadores. Antônio Torres dá um grande salto de “Um Cão Uivando para a Lua” para este “ESSA TERRA”. Menos discursivo, contido e sóbrio em sua linguagem, ele sabe agora conter-se no essencial de sua narrativa, reproduzindo com mais verdade e menos demagogia (no sentido clássico, irmão) a realidade social resultante do entrelaçamento daquelas vidas do Junco. O mesmo que dizer que os tipos não são aqui vistos por uma perspectiva ideal, mas reproduzidos em toda a sua grandeza e suas misérias; como se o autor tivesse melhor dosado as suas emoções, sem deixar se dominar por elas, mas conduzindo-as no sentido de uma recomposição de momentos básicos para uma montagem a mais exata dos quadros de sua denúncia.

E ai esta a palavra: Antônio Torres não escreve por diletantismo, nem por simples e utilitária profissão. E um pesquisador atento. Na raiz de seus trabalhos esta a ansiedade do artista que busca decifrar-se e decifrar aos seus iguais (para não ser devorado). Depois de ter esperado e sonhado, como Totonhim, ele compreende: e tendo compreendido, não pode mais ficar indiferente, acomodar-se, aceitar a velha e insustentável problemática de sua existência. Ele também precisa partir (o eu significa tentar a mudança). Para o homem comum, que é Totonhim, é imprescindível atravessar a ponte entre a Realidade e o Sonho, para reconstruir-se (ou buscar a reconstrução), definir-se.

Para o escritor resta (ainda) a palavra. Ele compreendeu, ele denuncia essa problemática social: a dissolução da família, pela miséria, pelo desamor, pela prostituição; a exploração da ignorância, o abismo entre gerações e entre pólos culturais e econômicos; a violência e o esfacelamento do homem que perdeu as raízes e despersonalizou-se. E denuncia. Como quem enxerga além dos véus das aparências.


“Desde João Guimarães Rosa não se apresentou nenhum escritor brasileiro que descrevesse, poeticamente e com vivência, o panorama belo-horrível do Sertão: o isolamento da noite tropical, quando o espírito dos mortos vem à superfície e os morcegos voltejam na penumbra, o revérbero do mormaço do meio-dia, o impiedoso calor causticante. Antônio Torres, que como menino escrevia cartas para os moradores da vila ou lhes lia as que raramente chegavam das distantes capitais, consegue neste curto romance uma verdadeira obra-prima.”

Wolfgang Eitel, no Süddeutsche Zeitung, Alemanha

A Terra Nossa de cada dia

Tribuna da Imprensa – Rio de Janeiro, 11-12 de dezembro de 1976.
Leonor Basseres

Capas de Essa Terra

Quem sou eu?

Quem é você?

Que receita foi usada na produção do seu vizinho? Aquele a quem você sorri vagamente todo dia à mesma hora no elevador?

Quantas colheres de sopa, de mãe, o fizeram tão gordinho? Quantas, de pai, lhe deixam assim a fronte úmida mesmo nos dias de temperatura amena?

Quantas pitadas de tio bêbado, quantas gotas do louco da cidade?

O tempo necessário de colocá-lo na batedeira?

Do que é feito gente, em nome de que pai, que filho, que espírito, que santos?

Fiquei surpresa ao ler Essa Terra, de Antônio Torres. Baiano de Alagoinhas (o que só soube por mero acaso recentemente), nunca foi um autor regional. Aí estão as provas, Um Cão Uivando Para a Lua, seu livro de estréia e o admirável Os Homens dos Pés Redondos. Neles aceitou dissecar o homem qualquer que fosse o seu universo: o limitado de um hospital psiquiátrico, ou o amplo de um país em plena efervescência política, preste a explodir. E que explodiu. Proféticas previsões de artista.

Custei a entender. Mas quando o consegui foi um só deslumbramento.

Busco nas estantes os livros mencionados. Não os encontro. Minhas estantes são de alta rotatividade: não sou avara nem ciumenta das minhas jóias. Os homens dos Pés Redondos, talvez estejam com Nina. Lembro que não parou de folheá-lo num jantarzinho aqui em casa. Um Cão, talvez eu o tenha levado para Petrópolis, para reler nas noites frias de inverno. Assim, despojada, não posso citar trechos que confirmem a minha idéia. E você, leitor, tem que confiar apenas na minha lembrança e vago instinto. Ou então, compre-os para ler. Estará adquirindo clássicos, não enchendo sua casa de lombadas vazias.

Ainda vivemos num país de panelinhas literárias, de “donos da bola”. Livro chocante, grosseiro, meramente episódico, dá manchetes, infinitas badalações. Talvez porque fujam a esses negocinhos pára-literários, Antônio Torres e Ignacio Loyola Brandão, alguns dos mais límpidos e indiscutíveis talentos da nova geração, sejam tão pouco badalados. Talvez, num nível mínimo para não dar na vista.

Loyola ainda tem a glória pitoresca de ter sido publicado primeiro na Itália. E só depois encontrado uma jovem editora brasileira com peito e com visão bastantes para lançá-lo no Brasil.

Torres, desde o começo, teve mesmo que enfrentar os tupiniquins…

Essa Terra não é a historia de uma terra mas do seu produto humano.

O que fizeram dele e com ele.

E daí? pergunta você, leitor. Não tentaram todos os grandes explicar através do ambiente a criação do santo ou do monstro?

Sim tentaram. Do “Pére Goriot”, de Balzac, a Raskolnikov de Dostoyesky. Todos condenados antes de que a ação do livro se iniciasse. Repositórios de um caldeamento maldito e inelutável.

Então, qual é o grande achado, a novidade descoberta e desenvolvida por Torres?

Tão simples quanto inacreditável!

Todos os seus antecessores, na cauda da Renascença, jogaram o jogo do “chiaro oscuro”: sociedade alienizante e castradora, de um lado: personagem/ pessoa/ produto/ vitima, do outro.

Essa Terra não é nada disso. As pessoas e os cenários se somam, se absorvem, criam um organismo único que tem a obrigação de desafiar ou pactuar com a vida. Não há perdão, porque não há culpa. Nenhum ser leito, é conspurcado, vilipendiado. Todos vão ter que viver com o que são, e o que são é o terem sido.

O narrador de Essa Terra introjetou tudo. É tudo. Até a lembrança do irmão, primeiro vitorioso, depois morto. Que nunca consegue morrer completamente já que nunca viveu de vida própria, independente. E só perdura em Totoninho, enquanto lhe cravam os cravos do caixão.

Devorou, absorveu, transformou, somou ao seu quadro genético a loucura da mãe, as ladainhas do pai, cantadas ao amanhecer. O chefe de policia, diluído e vencido. Amores mal gastados, vinganças sem sentido.

Tudo, num só sentido. Que ele os viva todos. Ou que não se viva nenhum.

Não há vários personagens em Essa Terra. Há um só. Que, às vezes, como se descasca uma cebola, consegue se descascar e deixar um rastro sangrento. Consciente de que tudo será assim. E desse assim deve partir.

Porque ele é. E quando mais doa, mais será.

Estranho livro nordestino onde a natureza e o meio nunca são culpados. Apenas fatores de precipitação das paixões humanas.

Tempo e lugar importa? Se somos todos um mosáico cujo padrão podemos modificar apenas ligeiramente num esforço de consciência e auto-reconhecimento.

Se não há o crime original, pode haver castigo?

Piedade, paternalismos?

Livre arbítrio? Conversa, há séculos impingida e venerada.

Torres respeita os seus personagens. Contra eles não comete a injúria da pena. Quem pode realmente optar, se no escuro o sentido da palavra é escamoteado?

Com tudo isso, não quero dizer que Antônio Torres seja um fatalista. Longe disso. Apenas não procura esconder a cabeça na areia e, assim, sair lavado do pecado original.

Acho que desde o inicio da sua obra literária persegue o mesmo fio da meada. Se agora montou o seu coreto na Bahia, é porque lhe parecia um universo mais compacto, palmilhado. Tão limitado e vasto cenário como uma Grécia de Eurípedes.

É preciso, de vez em quanto, que a gente se olhe no espelho, que assista aos traços diluídos sôfregos por se adaptarem à máscara.

Forçar a isso é a obrigação e a meta do artista.

Nem sempre precisamos ser fantoches, se assumirmos essa parte nossa e, portanto, compreendermos de quê os fantoches são feitos. Em geral, do nosso sangue, da nossa ansiedade. Do nosso, nosso, que nos inibe de levantar a espada em causa própria.

Aí estaremos livres para dar os primeiros passos adiante.

Torres não lança mão do absurdo e do fantástico. Disso se encarrega a vida. Ele apenas registra, sublinhando, aqui e ali, a mão forte do “destino”.

Como arma, brande a palavra escrita, sua íntima amiga. E, com ela, para os sonhos de todos nós que, queiram ou não queiram, um dia se transformarão na rica semeadura.

Nesse livro, não há cronologia. As falas se misturam, às vezes num só período. Tudo se trança e se destrança, como na memória. Figura e fundo se alternam na conquista do primeiro plano, exatamente como nesse longo balé que é a vida.

Essa Terra, um brado de verdade de alguém que conseguiu ver, se vendo.

E retoma, não como uma pergunta aflita, mas como o desafio maior da humanidade, a velha frase: “E agora, José?”

Apenas uma amostra um pequeno exemplo:

“… Foi então que comecei a me sentir perdido, desamparado, sozinho. Tudo o que me restava era um imenso absurdo. Mamãe Absurdo, Papai Absurdo. Eu Absurdo. “Vives por um fio de puro acaso”. E te sentes filho desse acaso. A revolta, outra vez e como sempre, mas agora maior, mais perigosa. Não morrerás de susto, bala ou vício. Morrerás atolado em problemas, a doce herança que te legaram…”

Essa terra na cidade que se abre para a morte

Jornal da Tarde – São Paulo, 24/07/1976.
Leo Gilson Ribeiro

Capas de Essa Terra

A grande cidade não tem lugar no sofá das musas.

De Tchekov a Steinbeck, de John dos Passos a Eça de Queiroz, nos contrates entre “A Cidade e As Serras”, o campo perpetua a saudade dos contatos humanos e da relação artesanal que o homem mantém com seu trabalho, e a metrópole é a imaginação para o anonimato de um trabalho mecânico e sem dignidade. Como no cinema, o epitáfio do trabalhador moderno é a máquina que enlouqueceu o operário de Charles Chaplin em “Tempos Modernos”. Como nos romances naturalistas de Zola, a revolução industrial, no Brasil ou na França, não criou só a multiplicação do lucro: colocaram na linha de montagem, triturando-os, os próprios sentimentos humanos. Ao dividir tarefas, isolou os seres humanos numa produção brutal e mecanizada.

Na literatura contemporânea do Brasil, a transformação de uma sociedade rural em amontoados de favelas, cortiços e bairros elegantes  encontrou em São Paulo seu laboratório ideal. Antônio Torres , com “Essa Terra”, demarca nitidamente o contraste entre o interior – de estrutura feudal , miserável, mas de valores e feições humanamente reconhecíveis – e São Paulo, sem rosto nem forma, um falso Eldorado onde  ganhar a vida  significa perder o seu sentido. A alienação utilitarista do emprego que se dará à energia humana já tinha sido analisada pelo autor em seus livros anteriores, “Um Cão Uivando para a Lua” e “Os Homens dos Pés Redondos”. Neles, tanto o repórter de um jornal como o publicitário de sucesso são engrenagens desse mecanismo maior que eles apenas fotografaram, células desse organismo devastado pela leucemia.

Em “Essa Terra” seu alvo pertinente é o progresso formam, feito de lantejoulas; o homem da roça arruinado pelos empréstimos do banco, deslumbrado com o radinho de pilha, o relógio, o arado substituído pela oficina mecânica e pelo posto de gasolina. As famílias são igualmente pilhadas, de forma crescente: de suas propriedades, que diminuem de geração a geração, de seus filhos que emigraram para São Paulo, da autenticidade das relaçeõs humanas quando as pessoas tinham nomes e não cargos. De forma exacerbada, o escritor sugere que a caneta mata a palavra, o papel asfixia a fala.

Felizmente, Antônio Torres tem suficiente discernimento para não encampar a idéia de que a aldeia, com suas virtudes devoradas pelo asfalto, é aquele mundo inocente, do homem selvagem de Rousseau, ainda não corrompido pela civilização. Ele não vê o meio rural como uma paisagem bucólica, da qual a técnica foi abolida numa volta absurda ao passado anterior à revolução industrial. Como em seus livros anteriores, Antônio Torres acumula elementos para denunciar toda uma estrutura social, que abrange “a cidade e as serras”. Mostra que se a roça não isola seus habitantes, mantendo sua identidade no agrupamento social, por outro lado sufoca com o latifúndio, o conservadorismo, o patriarcalismo, qualquer perspectiva de melhora. O campo brasileiro é o atoleiro da ignorância, da fome, do desmantelamento. A cidade é a troca dessa injustiça particular por uma injustiça mais ampla e mais amorfa. É sintomático que logo no primeiro capítulo Nelo, o irmão que foi da Bahia para São Paulo, apareça enforcado: o suicídio é a impossibilidade de escolher entre as duas monstruosas opções: afinal, ficar ou partir desemboca tudo no mesmo fracasso.

Todo o livro passa a ser então uma evocação do passado que se alterna com o presente, em trechos de eficiente utilização estilística do flash-back. O irmão sobrevivente, narrador que alinhava os acontecimentos trágicos, se sente “como dois ponteiros eternamente parados” de um relógio: ameaçado pelos pastos que diminuem, gradativamente, é enxotado da terra pelo mero instinto de conservação.

Antônio Torres traz como elemento novo, de função inesperada, a mulher, a mãe que é o motor de transformação, o alvo da propaganda mentirosa e que incita o filho a emigrar, a procurar no formigueiro da grande cidade o poderio do salário, a força concreta do dinheiro como fuga daquele pântano cotidiano. O pai é que se apega à terra, como se ele fosse o porto seguro diante do naufrágio. Ponto de tensão entre esses dois extremos, o “filho pródigo”, na trágica ironia do autor, é o elo que se parte.

Na trajetória de seus três livros já publicados, o escritor, se aprofundou sua análise, no entanto não disciplinou o tom emotivo. Se obteve páginas excelentes na descrição patética dos personagens e na viagem da mãe para o asilo de loucos, foi infelizmente incapaz de eliminar expressões que abalam a força do relato. É o caso patente de “Papai nem queria ouvir se tocar no assunto – gargalham os dentes do passado” ou “Mais pesado do que o ar não era o sino. Era o coração dos homens”. Isoladas , essas frases involuntariamente “ Kitsch” não chocam tanto. Só na passagem em que a qualidade decai a um nível inesperado é que o autor, num diálogo imaginário com Deus, atribui-lhe características de um Clóvis Bornay, a desfilar na passarela do carnaval:

“Me visto de sol e de lua, me adorno de estrelas e tenho um raio em cada braço. Quer saber a verdade mesmo? Sou o campeão nacional de qualquer concurso de fantasia. Deve ser por isso que dizem que Eu Sou Brasileiro”.

Frases como esta desmerecem qualquer livro que não tenha sido assinado por José Mauro de Vasconcelos, Num escritor sério, de talento comprovável, causam mal-estar, embaraço, perplexidade. Destoam da colaboração elegíaca desta narrativa que se inicia com um suicídio que serve para iluminar outras vidas já mortas. Enfraquecem este painel comovedor em certos trechos da ineficácia da emigração como solução final para a miséria, deste teorema que se reconhece o falso progresso.

O romance social é possivelmente o gênero mais difícil pelos ardis maniqueístas que oferece ao escritor. De um lado o bem róseo, de outro o Mal monolítico e todo “do lado de lá”. Antônio Torres não sucumbe á tentação ingênua de propor soluções ideológicas que extravasam a diagnose radiológica que a leitura pode fazer de uma sociedade. Reconhece por detrás de qualquer materialismo, histórico ou não, o materialismo histérico que mina tantas visões primatas da complexa condição humana. Sabe que entre o Gorki de 1914 e o Brasil de hoje passaram-se décadas decisivas que reformularam as fórmulas da farmacopéia para os males que os homens infligem uns aos outros. E é justamente por ter a lucidez de não desembocar no proselitismo panfletário que seus livros deixam sua marca na literatura que se faz hoje no Brasil.

No entanto, é indispensável que o autor reduza de muito o âmbito de dizer. Caso contrário, o excesso de temas, abordados sem profundidade, como o do louco e o do veado, enfraquecerá inevitavelmente a importância do que ele tem a testemunhar para ao leitor. Não se trata de uma luta simplista entre a caneta e a enxada: a máquina de escrever coexiste com o trator. Por não se insurgir contra a mecanização da lavoura nem por advogar uma panacéia cifrada na volta pura e simples à Natureza agro-pastoril é que a sua criação precisa restringir-se para adquirir substância maior. Na lavoura como na literatura, o latifúndio e o minifúndio são tão enganadores como o binômio cidade-campo.

Senão, para continuar com o vocabulário agrícola, o melhor será esperar. Assim como as terras se esgotam, sem rotatividade de culturas, os autores também se beneficiam quando um intervalo de meditação fecunda sua própria gleba de talento.


“Torres, como Graciliano, optou pelo mais honesto: escrever sobre o seu Nordeste. E assim como Graciliano identificava as personagens de Vidas Secas mostrando que saíram de sua família, Essa Terra tem no lastro biográfico a sua força original.” – Affonso Romano de Sant’Anna/Veja

Essa Terra um clássico contemporâneo

Correio das Artes – João Pessoa, PB, 3 e 4/11/2001.
Aleilton Fonseca

Capas de Essa Terra

O romance Essa terra, de Antonio Torres, chegou à 15ª edição, pela Editora Record, comemorando 25 anos de circulação, já traduzido para cerca de dez idiomas, estudado em artigos, ensaios e teses no Brasil e no estrangeiro. O sucesso do livro começou já na estréia, em 1976, com edições seguidas, ao merecer da crítica a saudação como uma ficção madura e primorosa.

Essa terra focaliza, na experiência de uma família do sertão baiano, o drama da migração nordestina para São Paulo e suas conseqüências psicológicas e sociais. Sob a ótica do narrador Totonhim, o irmão mais novo, conhecemos a trajetória do protagonista. Nelo é o migrante que, ao deixar sua terra, sua família e sua identidade para trás, entrega-se à metrópole paulistana e nela se perde, desenraiza-se e termina derrotado. Ao retornar ao lar paterno, encontra-se doente, abandonado e desiludido. Não suporta o peso da frustração, ao sentir que não contemplara as expectativas da família, sobretudo de sua mãe, que o imaginava rico e vencedor. O suicídio de Nelo é, portanto, o nó do enredo, síntese do impasse, do desenraizamento e da frustração que destroem o personagem. Este drama pungente constitui uma ficção precisa, de grande força estética, uma espécie de depoimento sobre um aspecto dramático da sociedade brasileira de meados do século XX. Pode ser visto ainda como um memorial consubstanciado no contraste gritante entre os grandes centros desenvolvidos e o sertão esquecido à própria sorte, em que a redenção do homem se reduzia ao horizonte das tristes estradas.

Essa terra tem o toque mágico dos grandes livros, desperta no leitor o senso de reflexão comiserada acerca do semelhante e a suas condições de existência, açula a vontade de compreensão e a solidariedade, provoca uma visualização mais profunda do ser humano. Este romance nos faz enxergar mais profundamente a realidade dos excluídos, reconhecendo-os enquanto sujeitos e pacientes de um drama histórico. Ao lê-lo sentimos aquele mesmo apelo de Vidas secas, assim como a marca da hombridade que se capta no sertanejo de Os sertões. Trata-se de uma escrita densa, de economia formal medida, tecida com a maestria de um romancista que consegue aliar precisão técnica à ternura do relato, mantendo, apesar da tensão, uma “camaradagem” equilibrada com seus personagens. Enfim, esta é uma prosa que alicia o leitor fazendo-o mergulhar afetivamente na leitura e nos dramas as personagens.

A migração é um fenômeno universal, assim como o desenvolvimento desigual dos lugares. Campo, cidade, metrópole, essa é a rota que exibem todos os países, num fenômeno mundial. O drama da viagem, do desenraizamento, da diáspora, da perda de valores fazem de Essa terra um romance universal, pondo em relevo a feição particular que este assume em território brasileiro, na trajetória sertão/metrópole, como uma viagem de ida e volta, não só em termos concretos, no deslocamento dos corpos e das vivências, mas na transição de valores, comportamentos, imaginários e condições de vida.

É auspicioso para a literatura brasileira ter um romance dessa dimensão, surgido na abertura do último quartel do século XX. Um livro que se coloca na mesma linhagem de O quinze, Vidas secas e Vila Real, naquilo que esses romances têm de esforço para compreender a saga do nordestino, em condições tão adversas. Nesse sentido, pela fortuna crítica amealhada em suas 15 edições, pela saga em terras e universidades estrangeiras, em apreciadas traduções, Essa terra merece registro entre os grandes romances brasileiros. Um clássico contemporâneo que se tornará cada vez mais visível na pequena lista de livros que jamais caem no esquecimento, porque se tornam objeto constante de estudos, referências, matéria de exames e concursos, fazendo parte do cânone escolar corrente, lugar das obras consagradas. O romance de Torres tem a rara qualidade de ser ao mesmo tempo profundo e acessível a um público mais amplo. Rico em significações não só estéticas, mas também sociais, dialoga com diferentes dimensões do saber, interessando também aos estudiosos da cultura, da história, da geografia humana, entre outras.

Essa terra, essa vida, essa busca – uma viagem a que a leitura nos convida, de forma que ao final da trajetória, poderemos exorcizar o drama humano e social de Nelo pela forma narrativa e compreensiva que o narrador Totonhim nos ensina. Ensinar a compreender a vida não é o papel social do escritor, para além de seu irrecusável compromisso estético? Para compreender melhor essas questões, leiamos Totonhim, Totonho, Totinho, simplesmente Antônio Torres.


“Eu admiro muito a ironia, o calor e o estilo de Essa Terra, que tão brilhantemente descreve pessoas cujo destino é mudar de lugar.” – Doris Lessing