Melhor seria estar aqui para falar com ele, e não sobre ele

Antônio Torres

(Data da publicação: 27 de maio de 2017. Onde: Caderno de Sábado do Correio do Povo, de Porto Alegre. Motivo: o evento “Scliar a quatro vozes”, realizado na noite anterior no Teatro da Santa Casa de Misericórdia, com Luís Fernando Veríssimo, Ignácio de Loyola Brandão, Zuenir Ventura e o autor deste texto).

“Sou apenas um dos numerosos nomes que integram a extensa lista daqueles que fazem do estado do Rio Grande do Sul o cenário e a motivação para a sua literatura”.

Foi assim que Moacyr Scliar se definiu em seu discurso de posse à Academia Brasileira de Letras. Era a noite de 22 de outubro de 2003 e ali, tanto para o numeroso público que o assistia, quanto para os anais da Casa de Machado de Assis, Scliar levou as suas marcas de origem, oriundas de uma cultura própria expressa num vigoroso legado literário, reflexo, por sua vez, de uma história verdadeiramente épica, da qual ele fez o seguinte resumo:

“Conquistado aos espanhóis, o território rio-grandense foi cenário de ferozes lutas que resultaram em sua incorporação à coroa portuguesa. As vastas extensões territoriais foram divididas entre os conquistadores. Resultou, daí, o latifúndio, que deu à região a sua primeira riqueza: o gado, criado extensivamente no pampa. E aí surge também o gaúcho, que logo inspiraria os primeiros escritores rio-grandenses, notadamente Simões Lopes Neto”.

Moacyr Scliar foi recebido na ABL por um seu conterrâneo, o poeta e romancista Carlos Nejar, que o descreveu como um judeu aventureiro e universal, cujo reino era o Bom Fim de Porto Alegre: os habitantes de sua infância, existentes, existidos ou inventados, aos quais, aliás, o próprio Scliar havia se referido como os primeiros leitores de suas primeiras historinhas, passadas de mão em mão no bairro pelos seus pais. E todos diziam que ele era o escritorzinho do Bom Fim. “E a verdade é que nunca pretendi ser mais do que isto”.

Foi.

Ele o sabia. E sabem todos que já tiveram o prazer de lê-lo, aqui – dos leitores comuns aos especializados, a exemplo de Regina Zilberman, Luís Augusto Fischer, entre tantos outros, como o já citado Nejar, para quem o texto de Scliar encanta pelo domínio da palavra simples, humana, ágil; pela sua imaginação transfiguradora nos aspectos sutis, atônitos ou astuciosos dos seres e do mundo -; e para além das fronteiras gaúchas e do país, como o crítico do New Yo r k Ti m e s que o chamou de “mestre brasileiro”, enquanto na Suíça louvam o humor, o realismo e a poesia que permeiam a sua obra e, na França, a sua capacidade de dissecar a violência, a crueldade e a miséria com ironia e imaginação, enquanto na Alemanha destacam-lhe o talento para descrever a trajetória daqueles que escapam à norma.

Pronto.

O autor destas linhas chegou aonde queria. Pois foi uma alemã quem o apresentou ao protagonista deste relato. Passou-se isto no aeroporto de Frankfurt, onde o locutor que vos escreve e o escritor Silviano Santiago desembarcaram, na manhã do dia 11 de novembro de 1985, para um circuito de palestras por várias cidades da Alemanha. E lá estava, a espera-los, a dinâmica agente literária e tradutora Ray-Güde Mertin, que os pediu para aguardar o desembarque, dali a pouco, de dois outros convidados brasileiros: Antonio Callado e… Moacyr Scliar.

Até então eu só o conhecia das páginas literárias da imprensa. Esse conhecimento à distância começara por uma página-dupla de uma importante publicação semanal paulistaque circulou nas bancas nacionais de 1952 a 1993. Em sua edição de 14 de maio de 1973, a revista Visão fez um balanço da “jovem produção literária brasileira”, com uma análise nada indulgente do crítico Carlos Nelson Coutinho – um baiano radicado no Rio, onde era professor universitário -, na qual o recém-lançado romance A guerra no Bom Fim é saudado como uma das mais importantes criações narrativas brasileiras dos últimos anos:

“Tomando como ponto de partida a problemática humana dos judeus num bairro de Porto Alegre, Scliar generaliza essa problemática a ponto de aproximar-se de uma ampla reflexão estética sobre as contradições e o judaísmo no mundo de hoje. As misérias e grandezas do povo judeu, seus sonhos e seus desencantos, são apresentados com distanciamento auto-irônico, num estilo maduro e bem articulado”, escreve Carlos Nelson, destacando ainda que o primeiro romance de Scliar aborda uma temática de real significado para o ser humano, e o faz com um profundo domínio da técnica literária.

Eram cinco os jovens autores analisados, mas apenas dois deles passavam com louvores pelo crivo daquele crítico – o outro foi o que sobreviveu para agora contar a história, que se resume a um recorte amarelecido pelo tempo, a estampar as fotos daquele par de romancistas em começo de carreira, e que deviam ter sido puxadas dos arquivos da revista por Vladimir Herzog, o seu editor de Cultura de 1968 a 1973, dois anos antes de ser assassinado em um porão militar.

A partir dali Scliar iria demarcar o seu lugar na história da literatura de forma tão unânime quanto a votação que viria a ter ao ser eleito para a Academia Brasileira de Letras, num eloquente reconhecimento a um expoente da geração literária que começou a publicar em fins dos anos 60 e começo dos 70, no auge de uma ferrenha ditadura. “Naquela época escrever era uma forma de resistência. Resistência a que Ignácio de Loyola Brandão, João Antônio e tantos outros se engajaram de maneira admirável, percorrendo o país e falando para jovens nos mais remotos lugares”, escreveu ele em crônica publicada na Zero Hora de 9 de novembro de 2002.

Conquanto fizéssemos parte dessa geração, não tivemos qualquer tipo de contato, fosse pelo correio ou por telefone, antes de nos encontrarmos na Alemanha. Lá, palestramos juntos em universidades e bibliotecas públicas de Frankfurt, Colônia e Bielefeld, o que representava metade do roteiro organizado pela Ray-Güde. A outra metade levou Scliar com Callado para Hamburgo, enquanto Silviano e eu seguíamos para Bonn, Munique e Berlim.

Voltaríamos a nos encontrar no Rio de Janeiro, onde, a cada vez que ele me procurava, eu o levava a bater perna de Copacabana ao final do Leblon. Não demoraríamos a voltar às mesas literárias do Brasil e do mundo: Rio de Janeiro, Paris, Porto Alegre, Guadalajara, Porto de Galinhas (Pernambuco). E voltamos à Alemanha, na primeira vez em que o Brasil foi o país homenageado da Feira do Livro de Frankfurt (1994). Com este timaço: Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Ana Maria Machado, Ignácio de Loyola Brandão, João Ubaldo Ribeiro, Chico Buarque, Zuenir Ventura, Darcy Ribeiro, Ferreira Gullar, Roberto Drummond, Ziraldo, Josué Montello, Cícero Sandroni, Paulo Coelho. Primeiro a falar num painel intitulado “Brasil, um mosaico de províncias”, do qual Ubaldo e eu fazíamos parte, Scliar soltou a verve que lhe era peculiar: “Isto é uma covardia” – começou ele. “Botaram dois baianos contra um pobre de um gaúcho. Depois reclamam que o Rio Grande do Sul queira se separar do resto do Brasil”.

Assim era o Moacyr Scliar que conheci: rápido no gatilho. Tanto falando quanto escrevendo, como comprovam os mais de 80 livros que publicou em 40 anos de batente, passeando com a mesma desenvoltura pelo conto, o romance, a crônica e o ensaio. Mas, convenhamos: voltar a Porto Alegre para tecer-lhe loas póstumas não tem a mesma graça das vezes em que vim aqui para falar com ele. Já que a vida quis assim, só me resta fechar este curto tributo com 80 longos abraços em sua memória.

O Porto bebido e revivido

In: “Terceira Margem” no. 3/ 2002 – Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Portugal

Esta história começa na Regaleira, na rua Bonjardim, numa noitede verão do ano de 1965.

Personagens à mesa: o Sr. Coelho, um homem elegante, empertigado, calvo e poderoso; um irmão dele – talvez se chamasse José -, de aparência modesta, como se a sua falta de capricho na maneira de vestir-se fosse uma estratégia, para não ofuscar o brilho do outro, notoriamente mais importante e vaidoso; os demais, num grupo de seis pessoas, eram da mesma família, moças e rapazes que pareciam só ter olhos e ouvidos para o digníssimo cavalheiro que, naturalmente, iria pagar a conta.

Havia, porém, um corpo estranho nesse quadro familiar: um brasileiro de 24 anos, recém-chegado de São Paulo, para trabalhar como redactor de tuna agência de publicidade em Lisboa, chamada Belarte, uma empresa que, como o seu dono, tinha a sua origem no Porto, onde mantinha a sua sede ou casamatriz, O Sr. Coelho – eis o homem -, achou que era pelo Porto mesmo que o brasileiro faria o seu baptismo de fogo. Os dois, o patrão e o empregado, chegaram por via aérea, no final de uma bela tarde de domingo. Quando o avião começou a descer, o Sr. Coelho fez o brasileiro olhar pela janela, dizendo-lhe: “O senhor está a chegar a uma cidade de heróis.” Ao dizer isso, esboçou um sorriso, não apenas satisfeito por haver produzido uma frase de impacto (não fora ele o dono de uma agência de publicidade), mas por estar prestes a pôr os pés no chão onde havia nascido. Em seguida, tirou do bolso um espelhinho e um pente. Mirou-se no espelho, que segurava com a mão esquerda e, com adireita, ajeitou cuidadosamente os cabelos que ainda lhe restavam, nas laterais da cabeça. Voltou a sorrir. O brasileiro achou que era bom trabalhar para um homem feliz, que, com toda a certeza, devia se considerar um herói, por ser um filho do Porto. Só não entendia porque esse homem tão feliz o chamava de “senhor” Que infelicidade! No Brasil, isto era uma consideração para com os mais velhos ou uma formalidade para com os superiores hierárquicos. Lá não era costume chamar-se um jovem de “senhor”. Tratando-o assim, o Sr. Coelho fazia-osentir-se um ancião, aos 24 anos.

Em terra, uma caravana os aguardava. O irmão do Sr. Coelho parecia indócil, ao perguntar, várias vezes, pelo brazuca,que se sentiu uma ave exótica ao ser chamado desta maneira. Mas logo percebeu o tom afetuoso do tratamento. Foi recebido com efusivos votos de boas-vindas. Nada mal, para começar.

Do aeroporto seguiram todos para o Grande Hotel do Império, na Praça da Batalha. O Sr. Coelho e o seu redactor importado de São Paulo subiram aos seus quartos, que ficavam lado a lado, lá deixaram as suas malas e voltaram imediatamente ao saguão, para juntarem-se novamente àcomitiva e seguirem com ela até à Regaleira, onde o brasileiro seria batizado com vinho verde na sua opípara primeira noite no Porto.

A mesa regalava-se a cada garrafa comandada pelo Sr. Coelho. “Embriagai-vos! De vinho, de poesia ou de virtudes!”, pensava o brasileiro, já um leitor de Charles Baudelaire. Mas o irnão do Sr. Coelho tinha pensamentos mais prosaicos. Queria saber se era verdade que os papagaios do Brasil falavam. Ao ser informado que alguns até cantavam o Hino Nacional, ele entrou em êxtase, como se acabasse de ouvir a coisa mais extraordinária que alguém já tivesse lhe contado. E, revirando os olhos, com o enlevo de uma criança, confessou o maior sonho de sua vida: “Ali, gostava muito de ter um papagaio. E dos mais faladores!”

O brasileiro, embora sensibilizado com o desejo do seu afável interlocutor, o senhor portuense que o recebera tão efusivamente, temeu pelo rumo da conversa. E não sem razão. Não demorou muito para o irmão do Sr. Coelho dar a cartada definitiva, ao perguntar se ele por acaso tinha prestígio suficiente no Brasil para mandar vir de lá um papagaio. E agora? Papagaio! (No Brasil, essa exclamação significava: Caraças!). Como sair dessa, sem deixá-lo desapontado? A situação não era das mais fáceis, até porque o homem era irmão do patrão. Naquele momento ele, o brasileiro, deu voltas à cabeça. Finalmente entendia a razão da ansiedade daquele que tanto havia perguntado, no aeroporto, se o brazucaviera, e de todos os salamaleques da recepção. Tudo por um papagaio!

– Ternos problemas em relação a isso – disse o brasileiro. – A fiscalização da Sociedade Protetora dos Animais é muito rigorosa com a saída de aves e pássaros do Brasil. Há uma lei que proibe isto. Ufa! Foi duro dar essa resposta àquele que tanto sonhava ter um papagaio.

O homem murchou. E emudeceu, num deplorável estado de desilusão. Não seria de estranhar se, mais tarde, na calada da noite, ele viesse a dizer para o irmão que a vinda do brasileiro não tinha valido a pena. Uma providencial voz feminina quebrou o silêncio, que já se tornava tenebroso:

– Tem piada! Ele é brasileiro mas não se parece com os outros.

– Como assim?

– Ele não tem os cabelos encaracolados como os outros.

O estranhamento tinha a sua razão de ser. De brasileiros ela só conhecia os jogadores que atuavam no Futebol Clube do Porto, a cada temporada, pelo visto todos negros. Ele aproveitou a oportunidade para esclarecer que seu país era multifacetado, multiracial, multicultural, multitudo. O Sr. Coelho, que o ouvia com atenção e interesse, de repente se deu conta de que algo errado havia acontecido à mesa: o brasileiro havia deixado muita comida em seu prato. Num tom de voz exasperado, perguntou:

– Por que o senhor come tão pouco? É para não perder a elegância?

O brasileiro assustou-se com a pergunta, para a qual não tinha uma resposta convincente. Distraira-se com a conversa, com o vinho, com o brande depois do café… sabia lá por quê! Ou, vai ver, a Regaleira o deixara com saudades de um bar paulistano chamado Baiúca,onde, àquelas horas, o Zimbo Trio podia estar tocando: “Esta noite / quando eu vi Nanã / vi a minha deusa / ao luar…” E onde, no fim da madrugada, o último pianista tocaria Round About Midnight,a música dos músicos, a trilha sonora das noites das cidades grandes, São Paulo, Rio de Janeiro, Nova York, Paris. Qual seria a música do Porto?, ele se perguntava, enquanto a voz do Sr. Coelho interferia em seus pensamentos, superpondo-se aos sons transatlânticos que vinham em camadas, na sua memória auditiva – o piano, a bateria, o contrabaixo, Tom Jobim e Baden Powell, o sax de John Coltrane, o trompete de Miles Davis.

– Imagine se coméssemos tão pouco como o senhor! Como poderíamos ter dado um Dom Afonso Henriques, aquele que, com uma única mão, sustentava uma espada de oitenta quilos?! – disse-lhe o Sr. Coelho, visivelmente contrariado.

Todos riram às bandeiras despregadas, como se o patrão tivesse contado uma anedota impagável. E quem é doido de não rir de anedota contada por um patrão??? O brasileiro também riu. Aquela história de Dom Afonso sustentar uma espada de 80 quilos, com uma única mão, tinha piada, sim senhor. Não disse, mas pensou: “Caro Sr. Coelho: vim aqui para escrever os seus anúncios. E não para levantar espadas.”

E assim tenninou a primeira noite dos meus I5 dias no Porto, daquela vez. Houve outras. A penúltima durou 1 ano e 6 meses. E cá estou novamente.

2.

28 de Janeiro de 2000.

O brasileiro voltou e já está à porta da Regaleira, depois de um bordejo de reconhecimento da cidade, capitaneado pelo professor Arnaldo Saraiva, que o levou primeiramente a revê-la de cima, para a reconstituição de sua memória visual, como num feixe de imagens do tempo a ser reconquistado. Tudo como dantes: há 35 anos também não faltou quem o levasse a contemplá-la das alturas, no outro lado do rio. É vendo-a de cima que se percebe que esta cidade foi uma fortaleza que não facilitava a entrada dos seus invasores d’antanho. Percebe-se mais: que o seu casario, tão esplendidamente fotogénico, sobe a encosta na mais perfeita harmonia, como se cada casa tivesse sido montada por um artesão, que depois a encaixou à mão, tomando todo o cuidado para não destoar dos demais, que por sua vez haviam-se desempenhado com o mesmo critério e rigor. É de cima que se vê melhor o quanto o rio é baixo: suas águas ficam muito aquém das ribanceiras. Foi lá de cima, de um deslumbrante posto de observação, que, por um breve momento, tentei rever a mim mesmo, ou, pelo menos, um pedaço da minha juventude, quando perambulava no sobe-e-desce do lado histórico da cidade, que tanto fez parte da história de um pedestre anônimo, sem eira nem beira, no entanto a sonhar todos os sonhos do mundo, e que a um só se resumiam: tornar-se um escritor.

E nisto o Porto não me negou fogo, nas noites e dias gelados de seus longos invernos, nas suas chuvas de granizo a chicotear-me a cara, nos seus nevoeiros a fazer-me andar às cegas, nos seus verões de São Martinho em pleno novembro, quando a cidade sombria multicoloria-se, levando todos às tascas, na mais fantástica e compreensível das comemorações, em homenagem àquele que, por um período que em geral durava três dias, governava o Porto, fazendo jus a seu epíteto de astro-rei.

Havia sol também nessa tarde de Janeiro. Um sol esmaecido a produzir um efeito especial sobre o colorido das pontes, monumentos, paredes, portas e janelas. Como as águas do rio, tudo se doura, sob a luz tênue do entardecer. Suaviza-se a cidade granítica, que um dia a mim pareceu ter gerado homens empedernidos, que, subconscientemeute, viviam a levantar espadas de 80 quilos, e com uma única mão! Ora viva: este brasileiro tem que reconhecer a sua dívida de gratidão para com esta cidade que um dia lhe pareceu de pedra até a alma, naqueles idos dos 60, nos estertores do reinado de Dom António de Oliveira Salazar, diga-se. Como no título de Alexandre O’Neill, “Feira Cabisbaixa”, os homens aqui pareciam viver encastelados num círculo de desesperança, a darem voltas em torno da sua melancolia, como em todo o País. Nestas circunstâncias, espaço e tempo, o Porto franqueou-me umlaboratório para o meu processo criativo: aqui encontrei o cenário e os personagens de um romance chamado Os Homens dos Pés Redondos. São estes personagens e este cenário o que tento reencontrar agora, ao chegar à Regaleira,embora já sabendo que a cidade já não é a mesma de trinta e cinco anos atrás: repaginou-se, cedendo às pressões do inescapável destino da modernização, aqui, registre-se, encontrando soluções arquitetônicas surpreendentes, ao estabelecer umvisível equilíbrio entre passado e presente, tradição e modernidade. Mas vamos à Regaleira,que, trinta e cinco anos depois, continua no mesmo lugar. Com a sua mesma porta escura e o mesmo cartazete nela afixado: “Tripas à moda do Podo.”

Lá dentro, porém, já não parece mais a mesma. Entro e páro. O balcão, onde o ator João Guedes – que morava em Matosinhos – e eu bebíamos cerveja acompanhada de tremoços, às vezes contando com a alegria da presença da actriz Isabel de Castro, em temporada no Teatro Experimental do Porto, bem, o balcão da Regaleira parece mudado. Ficou maior e pior. Há agora um certo aspecto de decadência e vulgaridade num ambiente que antigamente assemelhava-se a um santuário, de tão intimista e aconchegante. No balcão, onde o João Guedes citava de memória trechos e mais trechos do Grande Sertão: Veredas, o romance monumental do brasileiro João Guimarães Rosa, para os seus amigos que aqui vinham reencontrá-lo sempre, o que há agora é tão somente um solitário leitor de um jornal desportivo. É uma noite de sexta-feira e, estranhamente, só uma mesa do restaurante está ocupada, por um casal de idade avançada. Pelo visto, a Regaleira jáconheceu noites mais felizes. Saudades do Sr. Coelho e seus familiares. Muito mais ainda do João Guedes. Tempus fugit. Como na música do pianista norte-americano Bud Powell.

Deixo a Regaleira e me ponho a andar. Vou até a esquina, à procura de uma tasca chamada Maria Rita. Ali, um desenhador chamado De Jesus, sempre com uma tesoura ao bolso e dizendo que iria enfiá-la na barriga do seu chefe, no dia seguinte, e o cabo Emílio, que toda noite contava a mesma história, na qual se via como um herói, quando, ao prestar serviço militar em Macau, deu um murro num tenente que lhe roubara a namorada, e fora posto num navio de volta, para amargar 5anos de prisão – pois estes dois memoráveis personagens do Porto já não estão entornando um copo atrás do outro, na Maria Rita, pela simples razão de que aquela tasca não existe mais. E eles? Ainda estarão vivos? E o que fizeram ou fazem de si mesmos?

Vagueio pela Bonjardim em sentido contrário. Dou de cara com o luzidio edifício de 5 andares, que era um dos pilares do dinheiro do Porto. Ostentava na fachada um logotipo formado por 3 letras: BPM. Um artifício, que transformou uma casa bancária em “Banqueiros.” Era isso o que dizia o “B” do logotipo, fazendo-se passar por “Banco.” O PM significava Pinto de Magalhães, quem não sabe? Cá estou a ver o Sr. Afonso, um homem muito simples, de origem humilde, que começou como cambista de moedas na fronteira da Espanha, ao tempo da guerra: ele está atendendo a várias chamadas telefónicas ao mesmo tempo, do Brasil, de Paris, de Nova York. Ao seu lado, de pé, o seu genro Rodrigo segura-lhe os fones, fazendo as trocas de instante a instante, para que o sogro converse um bocadinho com um, depois com outro, volte àquele cuja conversa foi interrompida e assim vai. Bom e obediente rapaz, esse seu Rodrigo. Sogro e genro já não pertencem a este nosso mundo.

O BPM também já morreu, O seu edifício ostenta agora o logotipo de outro banco.

Logo por ali, na Sá da Bandeira, 56, último andar, ficava a Pali – Publicidade Artística Ltda. Laborei lá durante um ano e meio, trazido de Lisboa por um brasileiro, que por sua vez foi importado da Mac-Cann Erickson do Rio de Janeiro pelo banqueiro Afonso Pinto de Magalhães. E assim o carioca Eugénio Lyra Filho transformou um departamento de publicidade em agência, e a agência em mais uma empresa do conglomerado BPM. O bom Lyra também já se foi, lá no Rio. E onde estariam os outros camaradas desse tempo, como o belga René Cooinans e o velho Mário Frazão? Foi dele que ouvi uma sábia declaração, sacramentada por um brande: “Escuta-me, rapaz. Bom não é ser pai. Bom é ser avô. O pai reprime. O avô deixa o neto fazer o que quiser.” Ele acabava de ganhar um neto. Estava em estado de graça. Impossível recordar o Frazão sem um bocado de afeto.

Ninguém mais precisa me dizer que A Brasileira está fechada. Meninos, eu vi. Era em tomo dela que homens soturnos gravitavam, até ficarem de pés redondos. Mas o Majestic continua vivo e ainda aqui, com toda a sua majestade, na rua de Santa Catarina, onde morei, lá mais para cima, dividindo um apartamento com o ator Luiz Alberto. Lembranças de um médico chamado Jorge Tunhas, que aqui lia um livro atrás do outro, enquanto aguardava ser chamado para a guerra. Uma noite, à véspera do embarque, tomou um pifa daqueles! Saiu urrando pelas ruas. Urros lancinantes, como uma fera ferida. O horror da guerra. O Majestic me recorda também uma moça que, nos fins de tarde, entre um café e outro, me ensinava inglês. No Majestic começo a leitura do Primeiro de Janeiro pelo expediente. Quero ver se o Manuel Dias ainda está lá e se já é o seu Director de Redacção, Editor-Chefe, qualquer coisa assim. Importante! Lembro-me dele como um gajo esperto, rápido, criativo e… bom de copo! Se talento vale alguma coisa neste inundo, Manuel Dias já deve  ser o dono do Primeiro de Janeiro. Decepção: o nome dele sequer figura no expediente, Deixo o jornal de lado. Não tem Manuel Dias? Não vai ter este leitor.

Falta-me coragem para subir a rua de Santa Catarina até o prédio onde morei. Saudades do Sr. Soares, o zelador. Ele adorava uma bagaceira, que bebia escondido da dona Angelina, nos fundos de uma pequena mercearia, no outro lado da rua. Depois da terceira dose, puxava a carteira do bolso e dela retirava um retrato de dona Angelina quando jovem: “Ela é bonita, não é?” – dizia, embevecido. Não dava para discordar dele. Mesmo entrada em anos, dona Angelina continuava uma mulher muito bonita. Todo domingo, religiosamente, ele assava um bacalhau, que cobria com imensas rodelas de cebola. E eu que não fizesse a desfeita de faltar ao seu almoço, servido sempre na sua pequena área de serviço. Jamais alguém neste mundo assou um bacalhau tão bom quanto o do Sr. Soares. Uma noite, dona Angelina me chamou à sua casa. Ele estava de cama e queria que eu fosse visitá-lo. Fui imediatamente. Sentei-me ao seu lado, perguntando se queria que chamasse um médico. Disse que não. Já estava entupido de remédios. De pé no quarto, dona Angelina reclamava: o marido não podia continuar bebendo do jeito que bebia, diariamente. Pediu-me para lhe dar uns conselhos, enfim, que o fizesse parar de beber. Enquanto ela saía resmungando, o Sr. Soares ordenou-me que levasse a mão por debaixo da cama, depressa, antes que a sua mulher voltasse. Obedeci-lhe. E fiz a caça ao tesouro escondido. Entreguei-lhe a garrafa. Com uma sofreguidão infantil, o Sr, Soares destampou-a e sorveu um trago. Depois estalou os beiços e sorriu, contente da vida.

Ao se recuperar da doença, procurou-me para dizer que dona Angelina o havia proibido de beber. Estava muito infeliz por causa disso, numa desolação de dar dó. Dei-lhe uma cópia da chave do meu apartamento, dizendo-lhe que quando sentisse vontade de um copo, era só ir lá e procurar um garrafão que estava na cozinha. Seus olhos brilharam. Ele voltava a ser uma alma deste mundo. Eu não podia negar esse favor ao homem que fizera de tudo para impedir os moradores – todos os moradores! – de me expulsarem do prédio, por causa da música que eu ouvia e de uma festa que promovi, para as bailarinas e bailarinos da Gulbenkian, em apresentação na cidade. O Sr. Soares conseguiu impedir a minha expulsão com um argumento tirado da manga, como o jogador que puxa a última carta, ainda que seja um blefe: “O senhor doutor não conhece bem os seus inquilinos”- disse ele ao proprietário do prédio, acrescentando: “Dia destes, às duas horas da manhã, uma moradora do segundo andar me acordou para fazer calar um cachorro que latia na rua. Isso é lá trabalho para um zelador?” O Sr. Proprietário sorriu e respondeu-lle que podia ir-se, mas que recomendasse ao brasileiro para nãomais fazer barulho. Estava farto de reclamações. Grande Sr. Soares. Nenhum advogado teria feito melhor. “A partir de agora, abaixe um pouco a música, senão vou ficar desmoralizado”- sentenciou o meu competentíssimo defensor.

No dia em que fui embora ele não apareceu. Dona Angelina chegou até a porta do edifício para um abraço de despedida. “E o Sr. Soares?” Ela então esclareceu que ele se recusara a se despedir de mim. Na verdade, estava de cama. Havia adoecido, ao saber que eu ia partir. Que porra. Ele doente e eu não iria estar mais ali, para caçar o tesouro debaixo da cama, o único remédio que seria capaz de curá-lo, junto com o meu afeto, quem sabe.

Recordações à mesa do Majestic,observando um cavalheiro de seus trinta e poucos anos, impecavelmente vestido, que pede café e água, depois abre o seu laptop, colocado sobre o sofá, e começa a trabalhar, como se estivesse em casa ou no seu escritório. De repente o seu telemóvel toca. Ele leva a mão ao bolso, pega o aparelho e atende a ligação telefónica. Depois, recoloca o telemóvel no bolso e volta à sua lida, em frente do computador. Passado algum tempo, desliga-o. Quando volto a observá-lo, vejo que ele tem uma mão sobre o laptop e a outra está a mexer e remexer com a colherzinha no açucareiro, e a olhar fixamente para a parede de vidro na frente do café. Penso ter finalmente reencontrado um remanescente – ou herdeiro – dos homens dos pés redondos, por este olhar tão parado e penetrante, como se fosse furar a parede. Era uma cena típica da Brasileira. Mas as minhas recordações dizem menos respeito ao cidadão com todo o jeito de executivo da era yuppie, do que de amigos de um outro tempo: onde estará e o que faz hoje o publicitário Carlos Guimarães, que me deu guarida, enquanto eu procurava um lugar para morar? Foi na casa dele que eu vi, pela TV, o Brasil levar urna surra de Portugal, na Inglaterra, na Copa do Mundo de 1966, o ano do Euzébio. E o lisboeta Manuel Pena Costa, director da Manpower Portuguesa, ainda passa temporadas por aqui, na condução de seus negócios, e a sorver uma ginginha, depois do expediente, para espantar o frio? E a actriz Mina Vaz, que papel andará desempenhando? A ex-Miss Objectiva de Portugal Lydia Franco terá voltado a apresentar-se aqui com o balé da Gulbenkian? Em que palco o Luiz Alberto será encontrado? E Isabel Ruth, teria voltado ao Porto, depois daquele ano em que actuou no filme Mudar de Vida, de Paulo Rocha, rodado ali perto, em Furadouro-Ovar? E Pauliniia Guedes, que conheci criança e se tornou uma bela actriz, alguma vez revisitou Matosinhos? O realizador de cinema José Fonseca e Costa ainda se lembrará que foi ele quem me trouxe de carro, num belo dia ensolarado, quando vim para morar, deixando-me na Brasileira, aos cuidados do Carlos Guimarães?

Essa peregrinação memorialística vai levar a uma noticia triste: amanhã o Manuel Dias nos informará, a mim e ao professor Saraiva, que o nosso grande amigo Alberto Sérgio, o bancário e jornalista esportivo, já não poderá mais, nunca mais, ser convidado para o almoço, como nos velhos tempos. Faz umano que ele mudou-se do Porto para a cidade dos pés juntos. E assim, o meu Porto revivido não deixou também de ter uma nota de melancolia, como que saída de uma página de Scott Fitzgerald, num de seus textos mais candentes, intitulado Minha Cidade Perdida.

3.

O meu centro de gravitação no Porto era esse mesmo que é chamado de “cidade histórica.” Das sombras do BPM à rua de Santa Catarina, almoço e jantar no Rei dos Fritos, na Praça de São Lázaro, onde havia um reservado para a malta da Escola de Belas Artes, a do Teatro Experimental e este redactor. Ao final das refeições, uma moça chamada Izilda, filha do dono da casa, trazia as contas e um livro comprido, no qual cada um procurava o seu nome e anotava a sua despeza do dia, para pagar no fim do mês. Especialidades do Rei dos Fritos: tripas á moda do Porto (naturalmente) e papas de sarrabulho. Mas o cardápio era bem variado. Ali comia-se a gosto, fartamenle, e barato. E ainda com a vantagem do pendura. Depois do almoço, café com brande no Belas Artes, na outra ponta da Praça de São Lázaro. Quando o dinheiro dava, íamos ao Chez Lapin, na Ribeira, agora o point da moda, da muvuca (tradução: agito, barulho, ajuntamento de pessoas, para beber, namorar, divertir-se), com todas as incoveniências disto, não certamente para os negócios.

Fora deste polígono, fico perdido, ainda mais agora, com as mudanças que a cidade sofreu, principalmente para além do seu perímetro histórico. Talvez precisasse morar mais um ano e meio no Porto, para adaptar-me às exigências que a contemporaneidade lhe impôs, e aceitá-las sem traumas, como o fazem seus habitantes, com um indisfarçável orgulho. A questão é simples e compreensível: se revivi o seu lado antigo e pouco ou nada vivi o novo, é porque foi no Porto histórico que tive uma história. Seja como for, “Biba o Puerto, carago!!!

Tributo a dois poetas: um de Lisboa e outro de Feira de Santana, Bahia

1.

Relações transatlânticas

Em homenagem a Alexandre O’Neill, “um poeta bestial, pá!”, neto de irlandês e parente de Santo Antônio

(Do livro Sobre Pessoas – Editora Leitura, Belo Horizonte, 2007)

AUTO-RETRATO

O’Neill (Alexandre), moreno português,
Cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
Nariguete que sobrepuja de través
A ferida desdenhosa e não cicatrizada.
Se a visagem de tal sujeito é o que vês
(omita-se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui uma frase censurada…)
No amor? No amor crê (ou não fosse ele O’Neill)
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor não há feito) das maneiras mil
que são a somovente estátua do prazer.
Mas sofre de ternura, bebe demais e ri-se
Do que neste soneto sobre si mesmo disse…

Lisboa, 25 de junho de 1965.

Ontem desembarcou aqui um brasileiro sem passagem de volta. E com apenas 600 dólares no bolso. Ele tem 24 anos, nasceu na Bahia, mas veio de São Paulo. Viera na classe turística de um navio italiano bonitão, o Augustus — que fazia a linha Buenos Aires-Gênova — no qual embarcara no porto de Santos, ao anoitecer de um dia cinzento. Chegou a Lisboa nesse domingo, num fim de tarde ensolarado, oito dias depois.

À primeira vista, a cidade de casario senhorial, coberto de telhas, a admirar-se no espelho das águas do Tejo, era mesmo cheia de encanto e beleza, como a cantavam, nos dois lados do Atlântico. “Se o que vês não é apenas um monte de casas velhas, tu a mereces”, ele se disse. Bela porta de entrada à Europa! Mas haja expectativa, ansiedade, incerteza diante de seu novo mundo, dali por diante.

De mala à mão, desceu do navio, despachou-se na alfândega sem problemas, recebeu e leu um telegrama, assinado por um desconhecido, que lhe desejava boas vindas e se desculpava por não poder recepcioná-lo, em virtude de um compromisso de última hora, intransferível. Grata surpresa. Sentiu-se a adentrar um território hospitaleiro. E pegou um táxi, que o levou para uma pensão na Praceta João do Rio. Precisava ficar perto da Praça de Londres, onde havia um emprego à sua espera, numa agência de publicidade, garantido pelo próprio dono dela – o senhor Coelho -, numa carta que ele portava, e à qual respondera informando o mês e o dia em que chegaria, daí o telegrama que lhe entregaram, ao desembarcar.

Instalou-se na pensão, onde a mesa era farta e o quarto confortável. Respirou os ares da praceta frondosamente arborizada, mergulhou numa banheira de água quente e dormiu o sono dos viajantes. Hoje acordou cedo, bem dormido, mas ansioso para apresentar-se à empresa que, logo descobrirá, fica num belo endereço. Marinheiro de primeira viagem, ele se regozija pelo mar de almirante em que navega até agora. Aguardemos, porém, a sua primeira tormenta, logo ao chegar ao que julgava o seu porto seguro, e ser recebido por um gerente que, do alto da sua franqueza gerencial, disse-lhe, de cara, na lata, sem mais delongas, que ele, o brasileiro, não devia ter vindo. Sua mudança para Portugal havia sido um equívoco: “Pensávamos que o senhor fosse um desenhador e não redactor”.

Imagine o pânico. Os seus 600 dólares mal dariam para uma passagem de volta. Irredutível, o gerente esclarecia-lhe que Portugal não precisava importar redactores publicitários brasileiros, pois os tinha de sobra, a maioria romancistas e poetas famosos, como José Cardoso Pires e Alexandre O’Neill, já os havia lido?

Nada a fazer. Só lhe restava (a ele, o senhor gerente), desculpar-se pelo mal-entendido e… “Passar bem”.

O brasileiro não se deu por vencido: “Quer dizer que a assinatura do seu patrão não significa nada para o senhor?” A pergunta desestabilizou toda a convicção com que o até então empedernido gerente o despachava. Percebeu isso pelos seus visíveis sinais de hesitação, ao vê-lo pegar um lenço e passá-lo na testa, a dizer:

– Deixemos que ele próprio decida.

E telefonou para o senhor Coelho, que se encontrava em casa, a cuidar de assuntos pessoais, informou. O patrão não hesitou em honrar o compromisso assumido através de uma carta transatlântica. E pediu ao gerente para passar o telefone ao redactor brasileiro. Para lhe dar as boas-vindas, desta vez de viva voz. Ufa!

Começará amanhã. Portanto, hoje terá tempo para flanar pela cidade. Desceu e engraxou os sapatos em frente ao Café de Londres, enquanto se refazia do transe vivido nas primeiras horas do dia. Aquela situação embaraçosa poderia ter sido evitada, se o tal gerente, ao agir como um cão de guarda patronal, tivesse raciocinado com rapidez, e consultado o patrão, antes de atacá-lo (a ele, o recém-chegado), com todas as unhas e dentes. Que cara, quer dizer, gajo, de raciocínio lento! Seriam todos os portugueses assim, e cheios de má vontade com um brasileiro? Mas não. Pela diligência e simpatia do senhor Coelho não podia botá-los num mesmo saco.

Ficou um tempo observando os homens que iam e vinham pela calçada, todos muito velhos, tristes, cabisbaixos, pesadões, um passo hoje, outro anteontem, a dar voltas em torno de si mesmos, num círculo de desesperança. Como se carregassem nas costas e na alma o fardo de quatro décadas de totalitarismo – na era de Dom António de Oliveira Salazar -, três séculos de inquisições, dois mil anos de cristianismo. Parecia não haver nesta cidade uma só viv’alma da sua idade. Os jovens estavam na guerra na África ou haviam fugido Europa adentro. Perguntou-se o que tinha vindo fazer aqui. Daí a pouco perceberia que a viagem havia começado a valer a pena.

Foi assim:

No Café de Londres, ainda a remoer um resto de angústia, pelo impasse que o tal gerente criara, lembrou-se de que precisava telefonar para um certo Galveias Rodrigues, o dono da Telecine-Moro, a maior produtora de filmes publicitários de Portugal. O motivo da ligação era um presentinho que ele trazia do Brasil – um boizinho de barro do mestre Vitalino -, enviado por um diretor de arte de São Paulo chamado Laerte Agnelli, que havia trabalhado seis meses em Lisboa. Desenhador podia, claro!

Apressou-se em comprar ficha e se valer de um telefone público. Galveias Rodrigues o atendeu prontamente. Em menos de uma hora já estava em seu gabinete. E dele sendo levado a conhecer os estúdios de filmagem, sala de projeção, filmes produzidos, story-boards de comerciais em produção e, por fim, a ala dos criativos. Foi aí que o nome de Alexandre O’Neill lhe foi mencionado pela segunda vez, nessa manhã. Logo, quase que o conhecia, antes de a ele ser apresentado.

O poderoso Galveias Rodrigues despediu-se, deixando-o aos cuidados do seu próprio redactor, “um poeta bestial, pá”, que adorava o Brasil, sem nunca lá ter ido. Deu para notar isso logo à entrada da sua sala, que tinha uma das paredes decorada com crônicas de Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Vinícius de Moraes e Rachel de Queirós.

— Com que então és brasileiro! – ele exclamou. – Nasceste num país grande e por isso andas pelo mundo como se estivesses atravessando um quintal.

– E o que dizer dos portugueses, que nasceram num país pequeno e se meteram em quase todos os cantos do planeta?

– Ó pá! Agora me destes uma volta.

Ato contínuo, Alexandre O’Neill levou sua inesperada visita à parede, na qual colara também poemas de João Cabral de Melo Neto. Ao mostrá-los, disse ter sido o organizador da primeira antologia de João Cabral publicada pela Portugália Editora, em 1963. E que era amigo dele. Costumava visitá-lo em Sevilha, onde o poeta brasileiro da sua maior admiração diplomaciava, como cônsul do Brasil. Encerrando esse capítulo, comentou o rigor de João Cabral com as palavras, que lhe parecia obsessivo:

– Ele afia tanto a ponta do lápis que ainda vai acabar cortando os dedos.

Antes de partirem para almoçar, ele pegou o seu paletó, que estava pendurado nas costas de uma cadeira. Enquanto o vestia, surpreendeu o brasileiro com uma observação prosaica:

– É bonito este teu casaco.

– O teu também é bacana.

– Mas não tem o corte e o caimento deste teu.

– Foi feito sob medida, para a viagem. No entanto, não tem lá essas diferenças do teu. A não ser na cor.

– Queres trocar?

Então o brasileiro passou-lhe o seu paletó azul e vestiu um marrom. Os dois encaminharam-se para um espelho. E concordaram que a permuta havia caído bem em cada um. Além de selar o começo de uma amizade, que atravessaria os tempos. Foi na casa de Alexandre O’Neill que o brasileiro encontrou guarida, ao ficar desempregado em Lisboa – e por quatro meses! –, sendo assim recebido, à Rua da Saudade, 23:

– Não precisas de emprego, mas escrever. Vou te tratar a pão e água, para que escrevas.

– E por que achas que tenho que escrever.

– Porque um dia, logo ao chegares, recitastes para mim, de memória, trechos e mais trechos de Scott Fitzgerald. Então eu pensei: “Tenho que levar esse gajo a sério”.

Amigo

Mal nos conhecemos

Inauguramos a palavra “amigo”

“Amigo” é um sorriso

De boca em boca,

Um olhar bem limpo,

Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,

Um coração pronto a pulsar

Na nossa mão!

“Amigo” (recordam-se, vocês aí,

Escrupulosos detritos?)

“Amigo” é o contrário de inimigo!

“Amigo” é o erro corrigido,

Não o erro perseguido, explorado,

É a verdade partilhada, praticada.

“Amigo” é a solidão derrotada!

“Amigo” é uma grande tarefa,

Um trabalho sem fim,

Um espaço útil, um tempo fértil,

“Amigo” vai ser, é já uma grande festa!

Claro está que aquele brasileiro ainda não havia lido isto. E que, até o dia 25 de junho de 1965, não fazia a menor idéia de quem era Alexandre Manuel Vahia de Castro O’Neill de Bulhões – por um lado, neto de um irlandês, e, por outro, parente de Santo Antônio, que também era um Bulhões. Portanto, não sabia que ele, aos 40 anos, era um dos maiores nomes das letras portuguesas do século 20, às quais legou páginas memoráveis, sobretudo em versos, como os de “Um adeus português”, “A pluma caprichosa”, “O poema pouco original do medo”, “O país relativo”, “Portugal”.

Sua obra poética está toda reunida num só volume, de mais de 500 páginas. Publicou livros de crônicas, com títulos curiosos, como “As horas já de números vestidas” e “Uma coisa em forma de assim”. Amou muitas mulheres (o brasileiro desta história conheceu algumas delas: Noêmia, a mãe de seu filho Xaninha, Pâmela e Teresa, com quem teve outro filho). Mudou de endereço uma vez, para a Rua da Escola Politécnica, 48. Teve um programa de TV, coluna em jornal, e muitos patrões, até não achar mais quem lhe desse emprego. Entre os altos e baixos, viveu à rasca, ou seja, com problemas de dinheiro. Viajou ao Brasil em 1983, quando conheceu o Rio, São Paulo, Salvador e Fortaleza, fazendo parte de uma delegação de escritores, que incluía José Saramago, Lídia Jorge, José Cardoso Pires e Lobo Antunes. (Ao embarcar de volta a Lisboa, no Galeão, disse: – Quem chega por este aeroporto pela primeira vez, fica a achar que está a chegar num dos países mais ricos do mundo.).

Alexandre O’Neill bebeu e fumou demais. Sofreu o primeiro enfarto aos 52 anos. Morreu no dia 21 de agosto de 1986, aos 62.

Em 6 de julho de 82, ele havia publicado no Jornal de Letras, de Lisboa, a seguinte crônica:

“Quando se está com pane cardíaca o universo míngua e um sujeito ‘desliga’. Passa para a categoria de ‘bom doente’ para ver se salva o canastro, mas não tem propriamente medo. Só tem medo que se enganem nos remédios e lhe enfiem os que são para algum vizinho… De resto, nada mais, a não ser que, quando se volta para casa, se sente tudo fora do sítio e não se acredita que o canastro volte à normalidade. Nem com um jornal na mão se pode andar. Nem se pode caminhar contra o vento. Nem… Nem… Nem… Até que um dia um sujeito se sente de repente melhor que novo e recomeça a fazer asneiras…”

*
Lisboa, 6 de novembro de 1995.
“Numa noite escura da alma são sempre três horas da manhã”.

Alexandre O’Neill: esta frase aí é de Scott Fitzgerald (lembra?) e serve à perfeição para revestir as horas já de números vestidas, sem que eu consiga pegar no sono. Vem um motorista me buscar aqui no hotel, às sete, para me levar ao aeroporto, onde devo embarcar para Roma, se sobreviver até lá. Que coisa estranha: rodei, rodei, rodei para, afinal, vir morrer em Lisboa. Estou com medo. E achando que desta noite não escapo. Não adianta mudar de posição na cama, deitar de lado até o ombro doer, esperando que o sono chegue. Já fui ao banheiro várias vezes, me olhei no espelho, pra ver se há algum sinal de morte na minha cara, que parece normal. Já bebi potes de água, e nada do sono baixar. É estranho mesmo. Muito estranho. Para piorar as coisas, vêm-me à memória uns versos da sua lavra:

Eu estava bom pra morrer

nesse dia.

Não tinha fome nem sede,

nem alarme ou agonia.

Comigo me desavenho nas horas que vão se vestindo de branco.

Estou no Hotel Tivoli, na Avenida da Liberdade. Ainda há pouco cheguei à janela e vi as árvores negras, peladas, desvestidas de folhas, como em todos os outonos de Lisboa. E pensei: “Provavelmente um dia eu já tenha vivido aqui. Mas isso faz muito tempo. Foi no tempo de Alexandre O’Neill”. O que escreveu:

Subamos e desçamos a Avenida,

Enquanto esperamos por uma outra

(ou pela outra) vida.

Estou aqui como jurado do Prêmio Camões, ora veja. E vim com o romancista Márcio Souza e o poeta Affonso Romano de Sant’Anna. O prêmio saiu para José Saramago, aquele que me deu uma carona da casa do nosso amigo Fernando Santos para a sua, numa noite de fevereiro de 1984, em que fui seu hóspede (outra vez!), por cinco dias.

Àquela altura, você estava passando a pão e água, eu me recordo. A ponto de catar tostões para uma refeição por dia, como me contou. E remoia-se em atribulações pelo fracasso de um casamento; um filho com problemas (parece que veio a se suicidar); nenhuma perspectiva de trabalho. Ainda assim, você se contorcia em dúvidas: se devia ou não aceitar uma bolsa mensal do Instituto Português do Livro, oferecida pelo presidente daquela instituição, António Alçada Baptista, seu amigo de todas as horas, até a última. (Foi ele quem me telefonou um dia, para me dizer, desolado, que você havia entrado em coma).

– Não achas que essa bolsa é uma espécie de esmola? – você me perguntou, num daqueles cinco dias em que me oferecia a sua casa, pela última vez.

– Aceite-a como um direito. Autoral. Como um pagamento do que os editores lhe devem. E isso está vindo em boa hora, não é? – foi o que lhe respondi, incitando-o a não vacilar mais, para não continuar se martirizando com a falta de dinheiro, até para o pão de cada dia.

Fui encontrá-lo no Instituto, depois dos seus acertos burocráticos com o Alçada Baptista, conforme o combinado. Quando cheguei lá, vocês dois conversavam animadamente. Você sorria. Gostei de vê-lo de novo ânimo, de uma hora para outra. O Alçada levou-me a um passeio entre ruas de livros. Estava orgulhoso do trabalho que vinha fazendo ali. E eu dele, pelo bem que lhe fizera. A você, Alexandre O’Neill, que por um momento voltava a sorrir.

Dali fomos almoçar com o bom Irineu Garcia, o brasileiro dos discos de poesia, amigo de toda a gente do meio literário nos dois lados do Atlântico, e que já havia se tornado um lisboeta. No entanto, confessou-nos estar em dúvida se deveria ou não voltar para o Brasil. Não teve muito tempo para se decidir. Acabou sendo encontrado sem vida, pelo Cardoso Pires, num dia em que marcara um almoço com ele.

Ainda há pouco o José Carlos de Vasconcelos, o do JL, em que você tanto colaborou, veio buscar o Affonso Romano de Sant’Anna e eu para um jantar de lordes. No caminho para o restaurante, o carro em que nos levava cruzou a Rua da Escola Politécnica. Olhei à direita tentando localizar o prédio onde você morava, mas não deu para vê-lo. Depois a jornalista brasileira Norma Couri me levou ao teatro, para assistirmos a uma peça de Hélder Costa.

Findo o espetáculo, o Hélder me deu uma carona para o Procópio, onde a atriz (e que atriz!) Maria do Céu Guerra nos aguardava. E, como sempre, para cobrar as minhas memórias de você, que são as do meu tempo de Lisboa, de Portugal, àquele tempo definido pelo Fernando Santos como “um doce país fascista”, então a atravessar uma das ditaduras mais longevas do mundo. E é esse o país que está ao fundo de seus poemas.

Agora, Lisboa já não parece a cidade de homens dos pés redondos, a dar voltas em torno de si mesmos, tal qual parecia ao meu primeiro olhar, naquela manhã em que engraxei os sapatos na calçada do Café de Londres, no dia 25 de junho de 1965. Agora a cidade está chiquezinha, engraçadinha, internetadazinha, globalizadazinha. Agora, sim, é que ela desfila no “luxo blindado dos seus automóveis”. Importados, pois, pois! Percebe-se uma nova classe nesse desfile. Resta saber de onde veio, o que faz e para aonde vai.

Hoje à tarde parei diante de uma vitrine aqui ao lado do hotel, atraído por um paletó bacanérrimo. Recordei-me do nosso primeiro encontro, na Telecine-Moro. Entrei na loja e perguntei o preço. 500 dólares! Ora, viva: Lisboa não era a cidade mais barata da Europa? Pensei: esse não vou poder permutar com o O’Neill. Desta vez fico-lhe devendo um novo paletó.

No Procópio, a Maria do Céu estava cercada de amigos, como o Raul Solnado, o comediante lendário. De repente me chamam ao telefone. Era a Leonor Xavier, que amanhã estará lançando um livro muito bem editado sobre Maria Barroso, a senhora Mário Soares. Falando nisso, me contaram uma história… engraçada? Vá lá. Consta por aqui que, quando você agonizava na cama de um hospital, disse que queria a presença, ao pé dela, do presidente da República, que não era outro senão Mário Soares. Ao saber disso, ele foi visitá-lo. Mas deixou o hospital sem entender nada. Você o teria enxotado, aos berros: “Tirem esse homem daqui! Quem o chamou? Não quero falar com ele!”

Feita essa digressão (para você rir aí um pouquinho de si mesmo), volto ao telefonema da Leonor Xavier: “Tu aqui e o O’Neill cá já não está”. Desligou e veio correndo, não sei se para me ver ou ao Raul Solnado, com quem andava estremecida, mas pelo que pude perceber acabaram voltando às boas.

Seja como for, gostei de revê-la. A última vez que a havia visto foi numa festa no Rio de Janeiro, patrocinada por ela, há muitos anos — para José Saramago! O que acaba de levar o Prêmio Camões. A propósito, estranhei um cidadão que me interpelou no Procópio. Ele havia me visto na televisão, a dizer bem do premiado. Disse-me, na lata, ao jeito lusitano sem peias, que não entendia o fascínio brasileiro pelo Saramago.

– Esse gajo é um chatarrudo, um antipático, que vive a dizer mal de Portugal — e continuou desatando uma data de impropérios nada glorificantes a respeito do velho Zé, que está famoso como um corno, e com toda pinta de Prêmio Nobel. Mas aqui lhe sovam. Imagine os estilhaços verbais que sobraram para mim, por ter participado do júri e dito na televisão que o prêmio era justo etc. Chiça! Tudo como dantes. Dizer mal de toda a gente é uma tradição portuguesa, com certeza.

Também diziam muito mal de você, eu me lembro. Quando você fazia um programa na televisão e tinha uma coluna no Diário de Lisboa. Deviam pensar que você estava de tripa forra, com dinheiro saindo pelo ladrão. Sem terem antes o cuidado de verificar o seu saldo bancário. A vida é assim. Ou será uma coisa em forma de assim?

Se sobreviver a esta madrugada que avança com as horas cada vez mais se vestindo de números, escreverei umas linhas a seu respeito, nem que seja apenas para dizer que você foi um amigo como poucos.

E não foi?

*
Rio de Janeiro, 6 de fevereiro de 2007.
Pois, pois. Cá estou, sobrevivendo às minhas próprias “mós de baixo”. E condenado ao seu auto-de-fé:
Folha de terra ou papel,
Tudo é viver, escrever…

2.

Eurico em Alagoinhas.

Uma temporada entre luz e sombra

(No centenário de nascimento do poeta Eurico Alves Boaventura – 1909 – 2009)

Todos os crepúsculos agora estão em mim…
Almas estranguladas passeiam com a minha alma de confidências,
pelas escuras alamedas do passado…
Porque vens, agora, sombra amiga,
quando esta longa noite do tempo veio para esquecer,
porque vens aflorar no meu caminho a sinfonia do meu tormento?
Perdi sonhos, perdi desejos infecundos, perdi de ouvir a música do tempo.

É como se fosse a vida que imitasse a arte. Assim pensa o autor destas linhas num dia do mês de março de 2009, ao ler um poema que Eurico Alves Boaventura escreveu em 1951. Trata-se do belo e melancólico Rondó das sombras consoladoras, cujo trecho acima ilustra à perfeição a memória de uma tarde de 1970, quando o poeta recebeu em sua casa, numa ensolarada e solitária rua que se chamava Manuel Bandeira, uma alma estrangulada pelo excesso de horas presa à poltrona de um ônibus comum, do Rio de Janeiro a Feira de Santana.

Foi uma breve visita. E de surpresa. Nada além de uma pausa a meio do caminho para outros nortes, e para acorçoar-se ao sabor de um café e dois dedos de prosa, que resultariam num passeio de confidências pela longa noite do tempo em alamedas escuras do passado, e que, revisitadas agora, desembocam na página de Luz em agosto na qual William Faulkner escreveu: É o conhecimento – e não a dor – que faz você se lembrar de centenas de ruas selvagens e ermas.

Erma, sim. Selvagem, não – poderia ter concluído o recém-chegado à ruazinha àquela hora deserta, e ao ser recebido com a fidalguia peculiar a um homem de letras citadino de reconhecível herança aristocrática rural. E Juiz de Direito, ainda por cima, embora já a viver os crepúsculos da aposentadoria na sossegada Rua Manuel Bandeira, a quem o autor da Estrela da vida inteira devia a homenagem, por razões que a esta altura, imagina-se, poeta algum ignora, pelo menos na Bahia.

Recorda-se aqui a entrada da casa por uma varanda lateral, onde havia uma cadeira de balanço. Acrescente-se ao impacto visual das singelezas à chegada, portas e janelas azuis, e paredes brancas, tudo a trazer para a arquitetura urbana do século XX uma evocação da era das mansões coloniais, se é que não se delira nessa recordação.

De certeza é que àquela hora o sol amenizava-se, já em queda para o poente. E que um vento morno regia a música do tempo, numa orquestra a farfalhar em memorável concerto a sua Antífona para depois de amanhã: O vento marca o tempo, o tempo que ouço uivando/ nas marchas dos moços sem rumo.

Elegantemente trajado, como de hábito, o doutor Eurico Alves Boaventura encaminhou o seu visitante a uma mesa senhorial ao centro da sala, na qual reinava o silêncio, quebrado apenas quando surgiu uma senhora (parente sua, talvez) para cumprir o sagrado ritual da hospitalidade sertaneja, ao portar uma bandeja com um bule e duas xícaras de café. O que faltava ali? Os convivas de outra sala há onze anos atrás, numa cidade chamada Alagoinhas, onde o anfitrião era o mesmo dessa tarde que parecia mais propícia a uma soneca do que a recepções não programadas.

Mas não. O protagonista desta história era, antes de tudo, um ser gregário, um mestre na arte do convívio. Recebeu a inesperada visita de braços abertos, e de forma tão calorosa que preenchia o vazio das ausências, a começar pela dos familiares, àquela hora cuidando de seus afazeres fora das instâncias domésticas. E de que cuidava ele, agora, à sombra dos seus sessenta e um anos? Dos retoques finais num livro de mais de mil páginas datilografadas, que lhe havia consumido, em pesquisas e elaboração, a maior parte dos anos já vividos. Com o calhamaço à mesa, de repente a sala povoou-se dos vaqueiros que traçaram a rota primitiva dos destinos da Colônia que Portugal criou neste lado do Atlântico, na saga que levaria à civilização do pastoreio. Ler em voz alta era para ele uma praxe que vinha há muito do tempo, certamente bem anterior às tertúlias na biblioteca de sua casa de Alagoinhas, em noites em que cintilava uma nova constelação da poesia brasileira, que em sua voz descia redonda em ouvidos até então mais afinados com a lírica d’antanho, que os anos não traziam mais, numa cidade que ainda se movia ao ritmo dos boleros, embora já a ensaiar os primeiros passos de Rock’n roll.

Se foi um privilégio privar dos saraus na intimidade do seu lar alagoinhense, a partir do que seus convivas não mais leriam poesia da mesma maneira, imagine o que dizer da honra de ser brindado com as primeiras páginas de uma obra inédita, cuja envergadura sociológica e histórica transcendia a dimensão do volume e o esforço ciclópico do autor para realizá-la. Mas de repente ele parou. E não por cansaço ou para fazer algum comentário. Com uma mão sobre a página (devia ser a quinta ou a sexta), cuja leitura interrompera, e, abaixando ainda mais os olhos, que se apertavam por trás dos óculos, disse, em tom sussurrante, como se falasse para si mesmo:

– Quando eu me lembro…

Perturbado pelos sinais de desgosto que a repentina lembrança estampava num rosto àquele instante visivelmente sulcado de mágoas, o eterno ouvinte do poeta, ensaísta etc. e mestre informal Eurico Alves Boaventura eclipsou-se entre a luz externa, porta e janelas afora, e a sombra interna em uma alma martirizada do tempo. Restava saber que martírio era esse.

– Você sabe o que aconteceu comigo?

A cena congela aqui, no retrospecto que se tenta fazer agora. Porque a memória só alcança até aquela pergunta, diante da qual o seu ouvinte não se sentiu uma sombra consoladora, mas uma presença incômoda, desassossegadora, que trazia para aquela sala a lembrança da cidade onde o que acontecera fora abominável demais para ter consolo ou remissão, embora não saiba, agora, se já chegara àquela mesa, naquela casa de Feira de Santana, e naquela tarde de 1970, sabendo o que se passara com o Meritíssimo Juiz de Direito da Comarca de Alagoinhas no terrífico ano de 1964, na sequência das arbitrariedades militares, cuja dolorosa lembrança o tornava (a ele, o Juiz) refém do estribilho do rondó que escrevera vinte e três anos antes: Todos os crepúsculos agora estão em mim… Pois agora, e por ironia do destino, ele devia estar sentindo deveras a dor que poderia então ter sido apenas um fingimento.

O que foi mesmo que lhe aconteceu?

– Sim, eu me lembro – diz Valdemar Paraguassu, que há muitos anos vive em Salvador, mas em 1964 morava em Alagoinhas, e a poucos passos da casa do doutor Eurico, como o chamam todos daquela cidade que o conheceram. – Fomos presos num mesmo dia. Assim que me soltaram, fui embora, para assumir um emprego no Banco do Brasil em outro lugar. Por isso não soube o que aconteceu com ele depois da sua prisão. O que me lembro é do clima de terror daqueles dias, quando um comerciante encrenqueiro de lá passou a acusar de subversivo todo aquele com quem ele tinha alguma contrariedade, ou simplesmente a quem não simpatizava. Foram tantas as prisões por denúncias desse tipo, que elas viraram uma esculhambação, a ponto de o comando local das repressões ter de exigir que só fossem feitas por escrito. E com firma reconhecida!

O que dizer disso agora? Que teria sido cômico se não fosse trágico?

No caso específico do doutor Eurico, porém, a maledicência fora engendrada por um Oficial de Justiça. É o que recorda Aristóteles Freitas Costa, que àquela época era um dos alunos que mais se destacava no Ginásio de Alagoinhas, e que, como outros estudantes intelectualmente inquietos, tinha em doutor Eurico um mentor extra-classe. Costumava visita-lo no Fórum, às vezes acompanhando-o a caminho de casa, parando numa esquina e outra, em conversações que podiam ultrapassar uma boa meia hora. Formado em Direito, o velho Arica hoje mora no bairro de Icaraí, em Niterói, RJ. O que lembrou mais, ao telefone:

– Ele me aconselhava a não parar de estudar. E me indicava autores, me incentivava a ler muito. E bem. Uma vez me emprestou um livro de poesias traduzido por Manuel Bandeira, que não devolvi, porque não o vi mais, depois da sua prisão.

– E por que você não o viu mais?

– Eu trabalhava numa sorveteria do meu pai e um dia vi o policial que prendeu o doutor Eurico parado na porta, me encarando. Deduzindo que ele estava de olho em mim, fui me esconder numa fazenda que a gente tinha, e por lá fiquei um tempo, esperando a poeira baixar. Quando voltei, o doutor Eurico já não morava mais na cidade. Os comentários eram de que ele havia sido transferido para Vitória da Conquista.

Foi o que aconteceu, confirma Juraci Dórea em seu ensaio Eurico Alves e a Feira de Santana. Está no livro A poesia de Eurico Alves – Imagens da cidade e do sertão, organizado por Rita Olivieri-Godet, e publicado pela Fundação Cultural do Estado da Bahia em 1999. Amigo de Eurico de longa data, o artista plástico, arquiteto e também poeta Juraci Dórea esclarece: “[…] com exceção dos períodos de férias, Eurico pouco viveu em Feira de Santana. Aos 14 anos de idade (1923) ele já se encontrava em Salvador, matriculado no Ginásio N. S. da Vitória […] Em 1934, recém-formado, estava em Feira de Santana, porém logo no ano seguinte transferiu-se para Capivari, hoje Macajuba”… E daí em diante: Tucano, Riachão de Jacuipe, Poções, Canavieiras, Alagoinhas, Vitória da Conquista “e, finalmente, Salvador”. O que significa que o doutor Eurico Alves Boaventura só voltou a viver na capital já perto de aposentar-se, e isto pouco ou nada influiria mais em seu destino literário.

Voltemos à sua temporada de Alagoinhas (1959-1964), não necessariamente Une Saison en Enfer, mas que só não se tornou uma página em branco na história de Eurico graças às incansáveis buscas biobibliográficas de Juraci Dórea e à memória de Maria Eugênia Boaventura, que era bem pequena naquele tempo, mas ainda se lembra que a casa ficava à Rua Carlos Gomes, 63, com a biblioteca na sala de visitas, e que era frequentada pela professora Normândia Azi Lacerda, o advogado Murilo Cavalcanti, um funcionário da Justiça do Trabalho chamado Giése (José Giése da Cruz, primo do autor destas linhas), o alfaiate que fazia os blazers do seu sempre elegante pai, que por sua vez fundou o Lyon’s Clube da cidade, tendo sido o seu primeiro presidente. Maria Eugênia recorda-se ainda que o doutor Eurico foi professor do Ginásio de Alagoinhas, onde dava aulas pautadas pela pluralidade de conhecimentos.

Entre as pessoas lembradas pela professora Maria Eugênia, há uma que poderia emergir das sombras reivindicando este epitáfio:

Tropeço, dentro da noite em cadáveres de sonhos…

Porém, mãos de suicidas,

As dolorosas e augustas mãos dos suicidas,

Vêem ensombrar a minha fronte para eu sonhar…

Todos os crepúsculos agora estão em mim…

No contexto destas memórias, esses versos evocam o trágico fim de um dos convivas das tertúlias à Rua Carlos Gomes, 63, Alagoinhas, Bahia. Nascido num distrito de Inhambupe chamado Junco (hoje a cidade de Sátiro Dias), onde fora batizado e registrado com um sobrenome de origem alemã como nome próprio, aposto ao de José, Giése cometeu o tresloucado gesto na casa do bispo de Juazeiro da Bahia, aí pelo ano de 1971, deixando uma carta cujo conteúdo o bispo jamais revelaria, por considerá-lo um segredo de confissão. Para que não se avente premonições do poeta, lembremos que o Rondó das sombras consoladoras é de 1951, e, também, que Eurico e Giése só vieram a se conhecer em 1959. Mas como evitar a tentação de dizer outra vez que foi a vida que imitou a arte?

1959-2009: Memórias, Sonhos…

Assim se passaram cinquenta anos: envoltos em sombras [que] abafaram os passos das distâncias/ para que não perturbassem o sono do silêncio…

– Atirador 22, sentido! Marche, marche! Do Tiro de Guerra 110 ao Ginásio de Alagoinhas, e de lá ao Fórum ou à Rua Carlos Gomes, 63 – em 1959!

Há um fabuloso tempo a ser reencontrado nessa marcha de volta.

Chegou a hora de fazer-se a luz sobre a sombra dolorosa e inexpressiva como um sonho morto que até aqui pairava na sua memória, porque você, por mais que se esforçasse, não conseguia enxergar com nitidez todo o impacto causado pela chegada do juiz-poeta Eurico Alves Boaventura àquela cidade das luzes verdes nas fachadas, em um ano de sonhos dourados de uma juventude que ele mesmo faria crer-se promissora. “Memória! Junta na sala do cérebro…” Sobre o que vocês conversavam? Nas tertúlias que promovia, ele lia seus próprios poemas? E que poetas lidos ou recomendados por ele foram verdadeiras revelações? Alguns deles chegaram a ser tão decisivos para sua formação literária, quanto os ficcionistas – Jorge Amado e Graciliano Ramos, por exemplo -, que o professor Carloman Carlos Borges levou você a conhecer, dois anos antes? Enfim, qual foi o seu real legado?

Resposta: só agora, e graças à memória do caro colega do Ginásio de Alagoinhas Aristóteles Freitas Costa, me dou conta de quem pode ter me levado a ler um poema de Federico Garcia Lorca traduzido por Manuel Bandeira, e que começa assim:

Cantam os meninos

na noite quieta;

arroio claro,

fonte serena.

OS MENINOS:

Que tem teu divino

coração em festa?

EU:

Um dobrar de sinos

perdido na névoa.

A lembrança desses versos, muitos anos depois de os haver lido em algum lugar do passado, e certamente num livro emprestado pelo doutor Eurico, levou-me a escrever o romance Balada da infância perdida, cuja primeira edição é de 1986, e que foi traduzido para o inglês com o melódico título Blues for a lost childhood. E agora também me lembro do meu segundo dia de trabalho como aprendiz de repórter policial no Jornal da Bahia, ao desembarcar de Alagoinhas em dezembro de 1959. Como no dia anterior eu havia fracassado na cobertura do movimento do porto de Salvador, onde não fui capaz de farejar uma manchete espetacular – um tiroteio cinematográfico entre policiais e contrabandistas -, me empurraram para o Necrotério Nina Rodrigues. Dali não iria voltar sem assunto. Logo à entrada via-se, estirado num estrado, o cadáver de um rapaz que se matara.

Corri para o jornal e comecei a matéria com um poema de Godofredo Filho que falava do absurdo de se morrer aos 20 anos, entregando-a em seguida, e com a ansiedade imaginável, ao chefe de reportagem, o poeta João Carlos Teixeira Gomes, que a passou ao chefe da reportagem policial, o também poeta Jeová de Carvalho, que por sua vez mostrou-a ao editor-chefe, o ficcionista Ariovaldo Matos que, de dedo em riste, disse ao aprendiz de repórter que ele estava ali para fazer jornalismo e não literatura, que poesia era coisa de… Bom, felizmente não perdi o emprego. Mas o que importa aqui é que com certeza foi Eurico quem me levou a ler Godofredo Filho. E Cassiano Ricardo. E Jorge de Lima – com quem se correspondia – de cuja obra hoje se diz que “permanece robusta e poderosa como um penhasco, na solidão incomparável do gênio”.

… Reflexões

Não dá para imaginar que Eurico um dia tenha tido pretensões de ser posto pela posteridade nas mesmas alturas de seus mais festejados (e fraternos) pares Manuel Bandeira e Jorge de Lima. Ele não era, como Gilberto Freyre – que reconhecia como grande escritor – “uma pessoa feita para se ver no espelho”. E sua obra continua “restrita a um pequeno círculo de amigos e especialistas”, como constata Juraci Dórea, mesmo em se tratando de “uma figura de proa nos primórdios do modernismo na Bahia”, no dizer do consagrado poeta Florisvaldo Mattos.

Tiremo-lo das sombras. Para que este não seja um tributo a cem anos de solidão.

Dois encontros com Glauber

Gênio ou doido? Agora que o transformaram em personagem mitológico, recordo que o vi de perto (e por duas vezes) e ele se comportou como uma pessoa normal. Foi em São Paulo, no lançamento lá de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Ano: 1964.

Confesso, porém, que quando o ator Geraldo Del Rey me disse que Glauber Rocha havia marcado a entrevista para as 8 da manhã (e de um sábado!), achei que a sua fama de doido tinha algum fundamento. Madruguei para chegar pontualmente à casa do Geraldo, onde ele estava hospedado. Nem acreditava que Glauber, a figura mais discutida daquele momento (um crítico carioca chegara a escrever 25 dias seguidos sobre o seu filme), tão endeusado quanto detratado, e assim atingindo todas as colunas da glória, fosse receber um dos editores (o outro era o Franco Paulino) de uma revisteca chamada Finesse, que lembrava uma marca de papel higiênico. E que ainda por cima fora herdada de um colunista social falido, pelo gerente do hotel em que ele morava, como pagamento da sua hospedagem.

Uma sucessão de acasos fez com que fôssemos convocados por um  repórter – de O Cruzeiro -, e poeta que admirávamos, o gaúcho de Rosário do Sul Carlos de Freitas, para tocá-la adiante. O nome da revista era ruim, ele disse, mas podíamos fazer do legado do mosquito de bunda de grã-fino uma folha de rosto da cidade. O hotel garantia os custos da gráfica, pelo direito a um anúncio permanente na quarta capa. O resto era conosco. Mas sem salário. Tudo pela arte.

Topamos.

E fizemos com que a Finessepassasse a circular no eixo boêmio entre o Teatro Oficina, de José Celso Martinez Correia, ao Arena, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri – estendendo-se um pouco mais dali até o Juão Sebastião Bar, de Paulo Cotrim, que comprava uma centena de cada edição, para oferecer a seus clientes mais ilustrados. A tiragem, porém, era modestíssima: mil exemplares. O que isso poderia interessar a um Glauber Rocha, cuja carreira subia como um rojão de São João, em todas as páginas?

Pois acredite. Glauber já estava de pé às 8 horas da manhã daquele sábado. E, pelo visto, era a única pessoa acordada naquele prédio da Rua Santo Antônio, logo ao final, à direita, do Viaduto Maria Paula, e bem próximo do Ferro´s Bar, onde Geraldo Del Rey e sua bela Tânia deviam ter varado a madrugada. Com certeza ainda estavam em sono profundo. Eles e toda a vizinhança. Sinais de gente ali só os das minhas pisadas ao deixar o elevador e me encaminhar à porta do apartamento. E os passos de Glauber Rocha atrás dela. O silêncio permitia perceber que ele rondava na sala, à espera do toque da campainha. Recebeu-me com um formal aperto de mão. E não fez qualquer menção para nos sentarmos. Vai ver uma conversa ali iria acordar os donos da casa, pensei. Então puxei do bolso duas laudas com as perguntas que pretendia lhe fazer.

– Posso deixar isto, para você responder depois? – perguntei-lhe, falando baixo. Ele tinha 25 anos, apenas um a mais do que eu. Daí não chamá-lo de senhor.

Com um gesto de assentimento, acompanhado de um “Hum-hum”, deu uma olhada rápida no questionário datilografado, colocou-o sobre um móvel ao nosso lado, logo à entrada do apartamento, e me convidou para tomar um café com pão e manteiga, no botequim da esquina. Seu mal era a fome, voltei a pensar. Se não, o que havia sido feito da voz daquele cabra que tinha fama de ser falador como o cão? Às 8 horas da manhã, Glauber Rocha não combinava com a lenda noturna a seu respeito, que circulava nos bares de São Paulo. Nem parecia o autor de um texto exuberante– Memórias de Deus e do Diabo em terras de Monte Santo e Cocorobó –,que me provocara um impacto tão forte quanto um conto de João Antônio, o Malagueta, Perus e Bacanaço, publicado na mesma revista, a Senhor, que era editada no Rio, e que todo paulistano “por dentro” lia. Hoje, traduz-se esse “por dentro” como cult, ai! Meus sais!

Mas ora! Ele ia se dar ao luxo de sentar-se diante de uma máquina de escrever para trabalhar de graça para uma revista nanica! E ainda tendo de pagar do próprio bolso o desjejum do seu entrevistador! Era pouco ou queria mais?

Sim, ia ter mais.

De pé, mal-ajambrado nas vestes matinais, a barba por fazer, o cabelo desgrenhado e o umbigo no balcão do botequim, já matando quem o matava, Glauber soltou o verbo. E disse que havia lido todo o último número da tal revistinha. Elogiou o projeto gráfico (também, era de Valdi Ercolani, um diretor de arte top– meus sais de novo! – de linha). Quanto ao conteúdo editorial, tinha críticas a fazer, com um pedido de desculpa por estar se metendo em meu trabalho. “Tenho alguma experiência em jornalismo”, ele disse, modestamente. “Editei cadernos culturais na imprensa baiana e agora colaboro regularmente com a revista Senhor, que é muito bem feita, como você deve saber”. Sim, sabia. Agradeci-lhe pelo interesse, leitura de tudo, comentários que quisesse fazer. Aí ele se sentiu à vontade para criticar os textos da revista, deixando-me embasbacado com sua capacidade de citar de memória trechos e mais trechos deles, não poupando os que considerava bobos.

– Veja se isso é lá uma boa maneira de começar uma frase: “Em sã consciência…”  Você devia ter copidescado essa bobagem!

Expliquei-lhe que o autor era uma estrela da imprensa paulista, assim como os demais, todos grandes nomes do jornalismo, das letras e do teatro, que escreviam de graça. A revista era apenas uma curtição, para quem escrevia nela. Nós, os editores, Franco Paulino e eu, não nos sentíamos no direito de mexer nos textos de uma turma com tanto espírito de colaboração.

Foi aí que ele disse:

– Sendo assim, o negócio fica complicado. Mas como paulista escreve mal, hein? Você não acha?

Não. Não achava. Mas o jeito que ele falou isso foi engraçado. Encerramos o nosso café da manhã com pão e manteiga e uma boa risada. De pé. Será que ele nunca se sentava?

Na despedida, Glauber prometeu entregar a entrevista na segunda-feira seguinte, à noite, na porta do cinema, onde me enfiaria para a estréia paulistana de Deus e o Diabo na Terra do Sol.

O segundo encontro

Cheguei lá à hora combinada. E lá estava ele, de barba feita, banhado, escovado e vestido com um paletó azul. E a entrevista num bolso. Fez a entrega dela, em mãos. E me empurrou para dentro cinema.

Vi o seu filme com os pés em suspenso, sem conseguir mantê-los no chão. Grande filho da mãe. Como havia chegado a tanto, mais ou menos na minha idade? Quando os aplausos cessaram, um homem começou a discursar, com a voz inflamada, no mais altissonante estilo revolucionário. Saio. E reencontro o Glauber, andando de um lado para o outro, na ante-sala do cinema. Parece que ele nunca se cansa de ficar de pé, pensei.

Ao me ver, parou. E perguntou:

– O que você achou?

– É o seu filme definitivo.

– Não diga isso. Ainda vou fazer muitos.

Ali fora, dava para se ouvir uma nova saraivada de palmas, em meio a assovios e apupos. Glauber balançou a cabeça de um lado para outro, visivelmente contrariado. Disse:

– Estou preocupado com essa assembléia aí dentro. Pode dar encrenca com os militares.

Então me contou que, naquele ano do golpe militar, ele fora obrigado a exibir o Deus e o Diabo na Terra do Sol para um grupo de oficiais do Exército, para obter a liberação da fita. Numa fala do “capitão” Corisco, interpretada por Othon Bastos – “Homem, nessa terra, só tem validade quando pega nas armas para mudar o destino. Não é com rosário, não, Satanás! É no rifle e no punhal!” -, ele sentiu uma mão bater-lhe no ombro. Apavorado, olhou para trás. E viu um major alagoano, que lhe disse: “Pode botar esse filme nos cinemas, cabra. É um filme de macho!”

Nunca mais o vi, em pessoa. Nunca mais ele teve 25 anos e eu 24. Nunca mais foi tão fácil chegar perto de um homem tão talentoso, já a caminho de tornar-se uma celebridade internacional, com tanta atenção para um qualquer, que tomava o seu tempo a troco de nada, sem que ele se sentisse assim. Glauber Rocha me entregou, numa segunda-feira, as respostas ao questionário que lhe passei, no sábado anterior. E isso num momento em que ele estava envolvido com o lançamento do seu célebre filme, ou seja, em que estava no centro das atenções. Visto isso agora, em retrospectiva, me impressiona tanto a disposição dele em responder a todas as minhas perguntas, quanto a epígrafe que escreveu para a entrevista, que vai abaixo, do jeito que ele fez, entre parêntesis e em letras minúsculas:

(se eu morrê nasce outro,
porque ninguém nunca pode
matar são jorge, santo do
povo – capitão corisco, plano
265, seqüência 446, de um fil-
me rodado em monte santo
e cocorobó, sertão brabo)

Epílogo

A entrevista de Glauber foi endeusada e detratada, como era previsível. Um sucesso! Mas, depois da sua publicação, a revisteca iria ficar com os seus dias contados. Só teve mais uma edição, com destaque para uma reportagem de Eurico Andrade, intitulada “Chapéu de Couro, o Cangaceiro Bossa Nova”.

A última reunião com o patrocinador:

– Um leitor da revista esteve aqui e me fez muitas perguntas – disse o gerente do hotel que bancava as faturas da gráfica. – E nenhum elogio ao trabalho de vocês.

Era um coronel.

Mesmo tendo o seu nome no expediente como diretor-proprietário, aquele gerente (chamava-se Pio) nunca se metera no que estávamos fazendo ou deixando de fazer. Agora estava se metendo, de uma vez por todas. Por medo, o mais humano dos sentimentos, já o disse o sábio Millôr Fernandes.

E assunto encerrado.

A entrevista de Glauber Rocha, aos 25 anos

(Com os devidos agradecimentos ao cineasta Eduardo Escorel, que a guardou, e a Anabela Paiva, que selecionou os trechos que vão aqui, republicados por elae Regina Zappa, na capa do Caderno B do Jornal do Brasil, em 27 de dezembro de 1997. Não menos: a Franco Paulino).

“Eu esnobo a técnica: não sei mexer em moviola, não manjo nada de som. E acho que câmera tem alma”.

Sobre Deus e o Diabo na Terra do Sol:

“Não tem nada de novo. Desde a criação do mundo que Deus anda de mãos dadas com o diabo. Apenas o velho fica sempre esquecido e por isso quando é redescoberto aparece com ar de novidade. O filme é tão novo como as baladas romanescas da Idade Média, como o Apocalipse, como a tragédia, como o latifúndio que só é novidade (mesmo) no nosso sertão”.

Técnica

“Segundo Alberto Cavalcanti, a técnica esconde o lixo. Eu esnobo a técnica. Pra seu governo, não sei pegar em fotômetro, não sei mexer em moviola, conheço mal o jogo de lentes, não manjo nada de som. Mas sei que a melhor técnica é aquela que expõe aquilo que a gente quer dizer. Assim, eu e o meu parceiro de fotografia, Waldemar Lima, estamos sempre em expectativa, observando os atores, a paisagem, a luz, buscando o clima. O clima vem quando a câmera fica mágica. Câmera tem alma. O negócio é fazer mandinga e esperar o santo descer. Aí então a gente é bem capaz de fazer um takede quatro minutos, na mão, entre luz e sombra, entre foco e fora de foco, balançando ou não. Será possível ir aos infernos de outra maneira?”

Repercussão no exterior

“Esse negócio de repercussão na Europa é conversa típica de gente subdesenvolvida e colonizada. Pra mim, fama na Europa não significa nada. É verdade, falando sério. A crítica francesa, falando bem ou mal, não muda nada. Eu não topo aqueles caras dos Cahiers – um bando de literatos, que vive na superestrutura, falando bobagem. Os italianos são melhores, mas são radicais, historicistas demais. Os ingleses são quadrados e frios. Assim, pouco me interessa o que me digam. Falaram bem de Deus e o diabo mas se tivessem falado mal eu juro que não me abalaria. A única opinião válida para mim é a da juventude e do público. A juventude gostou pra valer, e o público gostou e desgostou. Assim eu acho que vinguei 75% e isto já é muito, e isto me enche de vontade pra jogar pra frente e botar pra jambrar na próxima fita”.

O que Glauber quer?

“Fazer onda. Abrir bate-papo sobre assuntos sagrados. Demolir os figurões, os produtores boçais, os diretores comerciais, os exibidores ladrões. Discutir e achar que o cinema novo, o cinema de autor, é o que vale. Tudo o que digo pode não ter importância um mês depois, mas na hora funciona. Sempre. É por isso que eu tenho muitos inimigos. Mas tem colegas que compreendem e continuam meus amigos. Veja o (Walter Hugo) Khoury, por exemplo. É um autor, um artista sério, pesquisador, firme nos seus propósitos. Eu discordo do cinema dele, mas apenas no plano das idéias. E no fundo admiro a obsessão de um cineasta que procura um objeto difícil mas que, hoje acredito, será alcançado. Digo isso para esclarecer a quem pensa que eu combato o Khoury”.

Arte brasileira

“Não existe ainda a verdadeira arte brasileira. Estamos procurando. O Tom (Jobim) na música, o (Jorge) Mautner no romance, o (Lindolfo) Bell na poesia, o (Gianfrancesco) Guarnieri no teatro e muitos outros – todo mundo procurando, cavando a terra e a angústia, cavando a alma e o sistema social, cavando a estética e a linguagem. Todo mundo está atrás, trabalhando em várias veredas – como no sertão. Acho que a arte brasileira está nascendo desde o teatro de Anchieta – é um processo que vai levar mais 600 anos. A raça, a terra, a natureza – o nacionalismo vem desde aquele horroroso Basílio da Gama. José de Alencar, Lima Barreto, os poetas românticos, Augusto dos Anjos, Machado de Assis, Raul Pompéia, Nepomuceno, Mário de Andrade, Portinari, Volpi, Villa-Lobos, Niemeyer, Jorge Amado, Nelson Rodrigues, o poeta Vinicíus, Nelson Pereira dos Santos e Zé Kéti – estão todos na jogada. É preciso ter abertura, abertura mesmo, porque todo grande artista é um revolucionário. Arte e liberdade é um corpo só, cangaceiro de duas cabeças, como dizia o capitão Cristino, vulgo Corisco”.

O sertão

“Eu sou do sertão. No sertão tem muitas veredas, como diz o mestre Guima. No sertão, afinal de contas, a gente bebe uma selvagem metafísica. Aliás, sou do sertão, modéstia à parte, como também o mestre Villa-Lobos. Esta é a mistura – o resto é coisa do cão, do demo, do sol, do amor. Está por dentro?”

Público

“O povo entende na medida do possível. Não entendo direito de público. Acho que o negócio é não ser quadrado, isto é, dar chance para todos pensarem. Ser intelectual ou não ser é besteira. Intelectual, pra mim, é um camarada que fica falando em mesa de bar e pichando todo mundo”.

Influências

“Faulkner, Buñuel, Eistein e Joyce, Graciliano Ramos e bate-papo de esquina, a Bíblia e sobretudo Villa-Lobos, Kurosawa e os westerns americanos, Rosselini e Paulo Saraceni, a Bahia e a luz atlântica, o amor, o meu poeta Vinícius, Guimarães Rosa e música do Nordeste e Carlos Drummond, São Jorge, Sebastião, Parsifal, Visconti, Romeu e Julieta, Aquiles e Salomão, Didi, Pelé e Garrincha – sem os quais é difícil fazer com classe, eficiência dramática e malícia improvisadora que destrói os esquemas e transforma a tela em projeção da vida. Eu sou produto da minha vida mesmo e da minha razão que tenta emergir do caos, caos com K, se é que o Mautner aceita”.

Resistência cultural

“Acho que o melhor negócio agora é resistência cultural. O povo precisa de resistência cultural. Muita coisa está errada, os artistas pensavam mas não estavam com o povo. Só deve existir a estrutura pessoal, libertária, rebelde, incomodativa, revolucionária e transformadora do artista falando numa linguagem tão profundamente humana que todos entendam. Se não tivermos resistência intelectual vamos cair na mais negra miséria, vamos cair no fascismo, vamos ver a democracia ser apenas um rótulo demagógico. Quando um povo começa a ser amordaçado, o artista deve abrir a boca bem alto e falar tudo, denunciar. O inimigo da política é a Arte. Você veja na Espanha, veja na Rússia, veja nos Estados Unidos. Quando os caras engrossam de um lado, os artistas engrossam do outro”.

Gênio ou doido?

“Não sou nada disso. Talvez eu seja apenas inconseqüente. Deixa a maturidade chegar para eu ver direito. O que eu acho, como diz o poeta Vinícius, meu irmão mais velho, é que quem de dentro de si não sai entra direto pelos canos. O negócio é câmara na mão e idéia na cabeça”.

Entrevistas

“A gente deve falar pouco, porém firme. Agora, se é para falar mesmo, tem que ser como mestre Villa: os violoncelos tudo doido, as trompas tudo alucinada, os tambores tudo correndo, os travelling, tudo montado sem continuidade. Geraldo Del Rey e (Antônio) Pitanga gritando, Waldemarno rodopio, o mar atlântico rebolando – de uma forma que quando a razão recusa o coração aceita e perdoa. Não é assim no amor?”

Roteiro sentimental de um leitor de Jorge Amado

Para Myriam Fraga, a bela poeta que dirige a Fundação Casa de Jorge Amado, no Pelourinho, em Salvador da Bahia

Rio de Janeiro, 23 de julho de 2006.

Quando, na tarde desse domingo, uma voz ao telefone disse de quem se tratava, o seu ouvinte viu-se de volta a uma cidade de luzes verdes, cercada de laranjais. E aos sonhos dourados de uma juventude que “os anos não [lhe] trazem mais”. Ele, o senhor que em Copacabana atendia, tão surpreso quanto emocionado, a uma ligação de São Gonçalo dos Campos, onde nunca pusera os pés, tentou reconstituir os traços fisionômicos do dono da voz, sem êxito. Pelo seguinte motivo: lá se iam quase meio século desde que vira o seu rosto pela última vez. Mas como esquecer a figura de um sujeito esquisitão que apareceu em Alagoinhas, a festeira terra da laranja, da Micareta e das folias juninas, vestido como quem ia à missa?

À maneira de Frederico Fellini, amarcord. Eu me recordo. Era um dia qualquer, sem nenhuma solenidade religiosa ou social programada. Nenhuma posse de um prefeito ou um evento no Lyons e no Rotary, uma noite de gala nos seus clubes dançantes, coisas assim, que exigiam apuro nos trajes. Com toda probabilidade, ele, o tal transeunte enfatiotado, havia desembarcado na Estação da Leste, ou seja, da Viação Férrea Federal do Leste Brasileiro. Devia até ter chegado no “Marta Rocha”, o trem que ganhara esse nome, na boca do povo, por ser o mais bonito de todos que circulavam de Salvador para Alagoinhas e vice-versa. Seja lá qual tenha sido o meio de transporte que o trouxera, sua presença só iria ser notada no momento em que ele atravessou a bela praça J. J. Seabra – a das árvores artisticamente podadas em forma de pássaros -, em uma hora de pouco movimento, sem cumprimentar ninguém nem ser cumprimentado.

Seria aquele estranho personagem um caixeiro-viajante? – perguntavam-se os hoteleiros, cada qual ansiando, secretamente, por merecer a preferência da hospedagem. Não demorou muito para todos o perderem de vista, ao dobrar de uma esquina. Também logo se saberia que ele vinha do Rio, de mala e cuia, para passar a morar ali, junto a seus familiares, originários de Sergipe.

Isso dava asas às confabulações: por que o distinto cavalheiro trocava a efervescência da capital federal pela vida pacata de uma cidade do interior baiano? Coisa boa não devia ter arrumado no Rio de Janeiro. Vai ver era um comunista, em busca de refúgio num lugar que a polícia nem sonhasse onde ficava.

Mas não. Naquele ano de 1958, em plena era JK, respirávamos os bons ares da liberdade política. Tivesse ou não um passado nebuloso, o homem misterioso que, ao chegar, provocara interrogações, tinha em seu destino um emprego no único ginásio da cidade. Era um professor de Geografia, que surpreenderia os seus alunos pela intimidade com que falava de serras como a do Mar, da Mantiqueira, dos Órgãos, e do Pico da Bandeira. Aos poucos, revelaria outros domínios, que abrangiam da Matemática à Literatura. Cada vez mais surpreendente, esse professor! Não fiquei lhe devendo apenas a descoberta de rios, lagos, mares, continentes, capitais e países do mundo. Nem lhe sou grato somente pelo seu esforço para que eu não fosse derrubado, na prova final, por equações e figuras geométricas. Mais que tudo, devo-lhe a minha formação de leitor, ou, melhor dizendo, a minha descoberta da modernidade literária brasileira. No que ele se empenhou com um prazer inenarrável, fora das salas de aula. Agora, por trás da voz que vinha de longe, vejo-o trazendo Jorge Amado para o centro das minhas atenções.

Pois sim. Enquanto falava ao telefone, motivado por rememorações que lhe tenho feito na imprensa, como o responsável pela minha iniciação à obra de Jorge Amado – e para dizer que agora está morando em São Gonçalo dos Campos, e também que, mesmo depois de completar 50 anos de magistério, continua lecionando Matemática na pós-graduação da Universidade Estadual de Feira de Santana -, o professor doutor Carloman Carlos Borges fez mais do que dar sinais de vida. Aquele que um dia me ajudou a escrever um discurso, parecia ter adivinhado que este seu ex-aluno estava enrascado de novo. Por ter de escrever outro e não saber como começar.

Se lhe tivesse dito isso, o mestre de outros tempos certamente teria me apontado o mais antigo dos caminhos: “Comece pelo princípio”, diria ele, sabiamente. Outra, porém, foi a sua lição. O matemático, hoje também psicanalista e acima de tudo homem de letras Carloman Carlos Borges, encerrou aquela conversa telefônica recitando uns versos de T. S. Eliott, que podem ter alguma pertinência neste tributo ao imortal autor de A morte e a morte de Quincas Berro Dágua:

Morremos com os mortos.
Eles partem e com eles nos levam.
Nascemos com os mortos.
Eles retornam e consigo nos trazem.

O que retornou, e vivamente, na tarde de 23 de julho deste 2006, foi a memória do dia em que li Jorge Amado pela primeira vez. “Para começar a gostar da obra dele, leia este”, disse-me o professor Carloman, ao me emprestar o Mar morto, concedendo-me o prazo de uma semana para devolvê-lo. “Quando se começa a ler Jorge Amado, não se pára mais”, ele acrescentou. Dito e feito. Sim, ali estava um romancista encantador, cujo poder de sedução se exercia já na primeira frase de um breve prólogo do seu romance: “Agora eu quero contar as histórias da beira do cais da Bahia”. E, por começar deste jeito, em tom de conversa pessoal, íntima, de pé de ouvido, ele foi me levando em ondas nas quais eu me envolvia, entre a dor das labutas e sofrimentos dos seus marinheiros, e o prazer da leitura de um texto amoroso, memorável. No segundo parágrafo daquela mesma página inicial, este leitor encontrava-se completamente enfeitiçado pelo convite à navegação em frente.

“Vinde ouvir estas histórias e estas canções. Vinde ouvir a história de Guma e Lívia que é a história da vida e do amor no mar. E se ela não vos parecer bela, a culpa não é dos homens rudes que a narram. É que a ouvistes da boca de um homem da terra, e, dificilmente, um homem da terra entende o coração dos marinheiros. Mesmo quando esse homem ama essas histórias e essas canções e vai às festas de dona Janaína, mesmo assim ele não conhece todos os segredos do mar. Pois o mar é mistério que nem os velhos marinheiros entendem”.

Imaginem o encantamento que isso causou em quem nasceu num lugar onde nem rio havia. Nunca dantes tinha lido nada, em prosa, que me provocasse tamanho arrebatamento. O texto de Jorge Amado parecia uma versão contemporânea da poesia de Castro Alves, o que até então eu queria ser, quando crescesse – até porque o nosso mais querido vate era bonito como um corno e dava muita sorte com as mulheres.

Mas agora outro imenso valor se alevantava diante dos meus olhos. Alguém que escrevia num idioma do nosso tempo, sem os floreios gongóricos tão ao gosto do romantismo, portanto acessível ao mais comum dos mortais. E o que fazia (e faz) o encanto desse idioma era (e é) a sua humaníssima fala baiana, tão cheia de musicalidade, lirismo, malemolência, tempero, sensualidade. E que dizer da sua vasta galeria de tipos humanos?  

Neste particular, Jorge Amado parece contradizer Scott Fitzgerald, o laureado ficcionista norte-americano das décadas de 20 e 30 do século passado, que iniciou um conto (O moço rico) assim: “Começa-se com um indivíduo e, antes de se dar conta disso, descobre-se que se criou um tipo; começa-se com um tipo e descobre-se que não se criou coisa nenhuma”. Além de todos os seus predicados, Jorge Amado tinha um dom especial para criar personagens – e tipificá-los. Fossem eles marinheiros, vagabundos, prostitutas, retirantes, pastores da noite, coronéis truculentos, meninos de rua, ou sem-teto (diríamos hoje), que, como sabemos, vieram a se multiplicar nas cidades brasileiras do século 21, de forma preocupante, numa franca exposição e denúncia do quadro social deplorável que estamos vivendo.

Numa coisa ele podia dar razão a Fitzgerald, um escritor que floresceu em outro meio, outra cultura, outros patamares sociais e econômicos, enfim, na realidade do capitalismo já avançado dos Estados Unidos da América, após a Primeira Guerra Mundial. Refiro-me ao Fitzgerald que dizia: “Ação é personagem”. Ele, o São Jorge dos Ilhéus e da Baía de Todos os Santos, sempre soube pôr em movimento personagens de carne e osso, sentimento e consciência, instinto e razão. E muitos outros que se enquadram em outros perfis.

“Poucos ficcionistas dominaram tão completamente quanto Jorge Amado a arte de inventar gente” – escreveu Augusto Nunes, diretor de jornalismo do Jornal do Brasil, no Caderno Idéias de 5 de agosto de 2006. Ele prossegue: “Os personagens do escritor baiano, inspiradores de ilustrações magníficas, transformaram o leitor em diretor de elenco. Além de nome, têm cores e cheiro. Têm até corpo e rosto. Às vezes, existem. Gabriela, por exemplo, tem cor de canela, cheiro de cravo e virou gente com o nome de Sônia Braga. A fusão começou na novela da TV Globo. Consumou-se no filme de Bruno Barreto…”

Dir-se-ia ainda que poucos ficcionistas brasileiros dominaram tão bem a arte de escrever diálogos. Os criados por Jorge Amado são de uma naturalidade espantosa, dando-nos a impressão de que ele tinha os ouvidos afinadíssimos para a linguagem coloquial, o que o distinguia da maioria dos escritores brasileiros surgidos antes dele, e mesmo de muitos da sua própria geração. Nos seus romances, narração e diálogo têm marcas de origem e carimbo de autenticidade nacional. Ao ler um deles pela primeira vez (o já mencionado Mar Morto), a minha impressão foi a de que, finalmente, eu havia descoberto um autor nosso, ali à beira do litoral, a apenas 108 quilômetros de distância de onde eu o lia, que rompera com os modos e usos do fazer literário lusitano. Tanto quanto com a retórica barroca tropical.

Costuma-se dividir a sua literatura em duas fases: na primeira, ela é engajada, de marcante compromisso sócio-político, com prioridades regionalistas e nos valores do proletariado negro da cidade de Salvador. Na segunda, a partir da publicação de Gabriela, Cravo e Canela, em 1958, suas preocupações politicamente revolucionárias desaparecem, dando lugar a um comprometimento com a cultura popular, com ênfase na brasilidade negra e mestiça, em oposição à moral burguesa.

Verbetes reducionistas assim não estariam obliterando o repertório multifacetado, multirracial e multicultural da sua obra?

Não faltou quem o acusasse (notadamente na crítica universitária, digamos, chique, do eixo Rio-São Paulo), de explorar os aspectos pitorescos da vida baiana, mais predisposto a retratar estereótipos do que em ilustrar as verdadeiras causas e conseqüências das tensões sociais. Em contraposição à severidade de tais interpretações da sua obra, e refletindo a recepção dela pelos seus leitores, Augusto Nunes, em seu já citado artigo no Jornal do Brasil, traz à luz o que até um cego, lendo em braile, enxergará: “Na metade do século passado, a galeria de tipos inesquecíveis já informava a multidões de brasileiros que leitura pode ser puro prazer. O caso de amor de Jorge Amado e sua gente não foi interrompido pela morte. A homenagem da festa em Paraty [acontecida no mês de agosto de 2006] permite acreditar que nunca será”.

Bem, muito do que foi exposto nestas linhas é público e notório. Agora, tratemos de voltar ao princípio, para retomar o fio da minha meada.

Alagoinhas, Bahia, 1958.

Em êxtase, passei duas noites em claro, para, ao amanhecer de um dia, salvar a estrela matutina:

Estrela matutina. No cais o velho Francisco
  balança a cabeça. Uma vez, quando fez o que nenhum mestre de saveiro 
faria, ele  viu Iemanjá, a dona do mar. E não é ela quem vai agora de pé
 no Paquete Voador?  Não é ela? É ela, sim. É Iemanjá quem vai ali. E o 
velho Francisco grita para  os outros no cais:
- Vejam! Vejam! É Janaína.
Olharam e viram. Dona Dulce olhou também da janela da escola. Viu uma mulher forte que lutava. A luta era seu milagre. Começava a se realizar. No cais os marítimos viam Iemanjá, a dos cinco nomes. O velho Francisco gritava, era a segunda vez que ele a via.
Assim contam na beira do cais.

Fim do Mar Morto.

O professor Carloman iria ficar surpreso com a devolução tão rápida do livro que ele me emprestou. E logo passaria a um segundo empréstimo: Capitães da areia, também lido sem pestanejar e devolvido num piscar de olhos. E, com os devidos agradecimentos, o dispensei de me passar outro, pois, ao ver que a única livraria da cidade (chamava-se São Jorge) tinha todos, ou quase todos os livros de Jorge Amado, até o que fora publicado naquele ano (Gabriela Cravo e Canela). Então criei coragem e pedi crédito ao seu proprietário, um amável senhor chamado Teófilo Maciel. Meu desejo serviu-me de fiador. E, no ato, me tornei o feliz proprietário de uma imensa livraiada, carregada em duas viagens – e a ser paga em suaves prestações, tão a perder de vista que o primeiro pagamento só foi feito mais de três meses depois, quando voltei das férias escolares.

Todos aqueles livros foram lidos numa rede de uma casa de roça, lá no Junco, digo, Sátiro Dias, a quinze léguas de distância de Alagoinhas. Ainda ouço ao longe a voz da minha mãe, dona Durvalice, a mostrar-se preocupada com a minha aparente inatividade, pois eu parecia estar ali apenas para ler, ler, ler Jorge Amado sem parar, dia e noite, enquanto não era vencido pelo sono, levantando-me da rede somente de vez em quando, para atender a necessidades incontornáveis, comer, beber água (e as outras decorrentes dessas), ou, muito mais de vez em quando ainda, para ir prosear com João Escrivão na coletoria do lugar, por este simples motivo: ele conhecia, de cor e salteado, todas as histórias que eu estava lendo. E aí trocávamos figurinhas – as figuras de Jorge Amado.

A bem da verdade, minha mãe sempre fora uma incentivadora da leitura. E olhem que ela pertencia a uma geração de mulheres da roça, cujos pais as proibiam de estudar, para não aprenderem a escrever cartas aos pretendentes a um namoro, e sabe-se lá o que mais, imaginavam eles, os senhores que as geraram. Ainda assim, dona Durvalice, graças às suas artimanhas, teve aulas particulares, clandestinamente, com um professor chamado Laudelino Mendonça, o “Pai Lau”, que veio a dar nome a uma rua de Sátiro Dias.

Ela, aquela menina Durvalice, que ao se tornar uma mocinha me traria ao mundo, pagava essas aulas em trabalho, numa plantaçãozinha de fumo que o professor Laudelino tinha, num pasto ao fundo da casa de um certo senhor chamado Adelino, que viria a ser o meu avô. E, também às escondidas, com a ajuda da luz da lua ou de um candeeiro, aquela menina chamada Durvalice sacrificou-se em silêncio para um dia poder ensinar os filhos a ler, antes que eles fossem para a escola.

Minha mãe me contou isso recentemente, como se erguesse um troféu guardado em segredo por toda uma vida, e que agora lhe ergo, lembrando-me do dia em que ela me mostrou um abêcê e me disse os nomes de todas aquelas letras, sem as quais eu não estaria aqui, para contar esta história.

Por que então ela se preocupava, ao ver o seu filho mais velho a ler Jorge Amado, o tempo todo? Ainda ouço a sua voz ao longe, a dizer-me:

– Menino, vou lhe dar um conselho. Leia só de dia. Lendo tanto de noite, com essa luz fraquinha de candeeiro, logo, logo você vai ficar ruim das vistas.

Felizmente seus temores não se confirmaram. Ler Jorge Amado, e compulsivamente, à tênue luz de um candeeiro, não causou danos aos meus olhos.

Houve outros, porém. À minha reputação, sob o ponto de vista religioso, pronto a apontar um cordeiro de Deus que poderia estar se desviando do rebanho. Foi no regresso ao Junco (digo, Sátiro Dias), de um homem que antes eu nunca tinha visto por lá. Era um filho daquela terra que a ela regressava coberto de glórias, por ter participado da Segunda Guerra Mundial. Reformado como tenente da Marinha, ele vinha a ser meu primo em segundo grau. Recordo-o a adentrar a igreja, inesperadamente, na hora da missa, chamando a atenção de todos não só pelo seu porte musculoso, mas, principalmente, por apresentar-se em uniforme de gala, cheio de medalhas no peito. E por ali ficou bestando durante uns tempos, a beber cerveja, a jogar dama, a contar suas proezas nos mares, sem, no entanto, perder a sua empertigada postura monumental, diante da qual até minha mãe batia-lhe continências:

– Mô fio, por que você não vai para a Marinha? Vá perguntar ao primo Tenente como é que se faz para entrar lá.

Fui. E foi fácil encontrá-lo, no seu posto de comando: a venda de um bom homem chamado Antônio Lopes, onde o nosso herói combatia à sombra, derrubando uma garrafa atrás da outra. Conversa vai, cerveja vem, toco no assunto Escola de Aprendizes de Marinheiros. Interessou-se. E quis saber do meu desempenho nas atividades físicas. Respondi-lhe que era mais chegado à leitura do que aos exercícios. Também se mostrou interessado em saber o que eu gostava de ler. Contei-lhe.

Resultado: delação. Conseqüência: inquérito familiar. Quer dizer que estes livros que você anda lendo são de um comunista? E dos mais descarados, conforme o Tenente garante, jurando por essa luz que nos alumia?

Com a boca cheia de autoridade, não necessariamente literária, ele, o glorificado Tenente, havia garantido mais: que Jorge Amado, além de não ter fé em Deus, como todos os comunistas, era um despudorado, que enchia as suas páginas de palavrões cabeludos, de fazer corar até os mais safados dos adultos. Xibio pra lá, embocetar pra cá… E com certeza nunca tinha sido visto na missa. A religião dele era o candomblé, cruz, credo! Em resumo: eu estava indo por um mau caminho, seguindo um mau exemplo. Só restou à minha mãe me botar contra a parede: aqueles livros estavam mesmo me afastando das leis de Deus?

Naquele momento eu tinha o ABC de Castro Alves nas mãos. Pensei que a única coisa que podia fazer em minha própria defesa era ler um trecho daquele livro para ela, que um dia havia se orgulhado, até às lágrimas, ao ver e ouvir aquele mesmo filho recitar em praça pública, diante de uma multidão: Auriverde pendão da minha terra/ Que a brisa do Brasil beija e balança/ Estandarte que a luz do Sol encerra/ As divinas promessas da esperança. Eu me recordava: fora num palanque em frente da porta da escola da professora Serafina, num dia Sete de Setembro. Dia da Pátria. Todo um velho povo viu pérolas de chuva a descer-lhe dos olhos, ao ouvir estes versos de Castro Alves. E mais ainda a mãe do menino que os recitava.

Voltei à página de Jorge Amado em que havia parado, e li um parágrafo para ela, que pode ter sido este: “Amiga, mais forte, mais poderosa e mais bela que a voz maviosa do poeta que canta em São Paulo é a voz que chora nas senzalas do Recife. Porque não há nada mais belo que a voz do povo. E o gênio é aquele que a interpreta, que lhe dá forma, o que vai na frente de todos os que clamam. No Sul cantavam, no Norte ele ia começar a clamar o seu clamor, gritos e apóstrofes de vingança, ameaça e profecia, seria o mais lindo canto do seu tempo”.      

É assim que Jorge Amado escreve, mamãe. A senhora achou que  alguma dessas palavras que acabei de ler, é contra as leis de Deus?

– O que achei é que ele escreve bonito como um corno – ela disse, me premiando com uma boa risada. E nunca mais tocou no assunto.

Tempus fugit.

Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 1972.

Já estava aprontando a mala, para uma rápida ida a São Paulo.

O telefone tocou. Ao atendê-lo, reconheci a voz de um amigo paulista chamado Oswaldo Assef.

– Fala, turco!

– Tenho duas notícias para você. Uma boa e uma ruim.

– Já posso adivinhar qual é a ruim. Está chovendo aí!

– Para a nossa sorte, hoje o sol brilha na Paulicéia. Mas, para o seu azar, Jorge Amado vai fazer uma noite de autógrafos no mesmo horário da sua. Como qualquer lançamento dele dá enchente, o seu pode ficar às moscas.

Achei que o Assef tinha razão. A coincidência dos dois lançamentos, no mesmo horário, ia me ferrar.

– Agora conta a boa, turco!

– Leia o “Estadão” de hoje.

Fui em frente, à cata da boa notícia.

Comprei o jornal O Estado de S. Paulo na livraria do aeroporto Santos Dumont. E lá estava, na página 10 do seu primeiro caderno, uma matéria supimpa sobre os dois lançamentos, o do baiano universalmente consagrado e o do seu conterrâneo estreante, ilustrada com as capas de Tereza Batista cansada de guerra e de Um cão uivando para a Lua, este, do tal já devidamente avisado de que ia se ferrar. E que, ao se encaminhar para o avião, achou que de modo algum aquela seria uma viagem perdida. A julgar pelo espaço que lhe coubera no poderoso “Estadão”, e junto logo de quem, a ganhara, por antecipação.

São Paulo, mesmo dia.

Cheguei à Francisco Alves, no Largo do Arouche, às cinco e trinta da tarde. Já estava tudo pronto para a inauguração da livraria, com a noite de autógrafos de Um cão uivando para a Lua. Havia pilhas dele bem à entrada da loja, que tinia de nova. Dirijo-me a um balcão e me apresento. Um rapaz me cumprimenta, se desmanchando em sorrisos e salamaleques, como se tivesse acabado de apertar a mão de uma estrela. E logo descubro a razão de tanto entusiasmo com a minha chegada: Jorge Amado acabara de sair dali. Antes de ir para a livraria onde estaria autografando, na Rua Barão de Itapetininga, também no centro da cidade, passara naquela outra, naturalmente movido pela matéria do “Estadão”. O mais surpreendente: ele havia comprado o meu livro, que deixou com o vendedor, pedindo-lhe para enviá-lo naquela noite mesmo ao hotel onde estava hospedado, assim que eu o autografasse. Também deixou um bilhete para mim, dando o seu endereço em Salvador, e dizendo para   procurá-lo, quando fosse lá.

Ainda de pé em frente do balcão, vejo uma moça chegar, para o segundo autógrafo, antes da festa começar.

– Meu pai me telefonou de Feira de Santana recomendando que eu não deixasse de comprar o seu livro – ela disse.

– Quem é o seu pai?

– Eurico Boaventura.

Meu Deus! Era a Maria Eugênia, que conheci em Alagoinhas, quando ela era ainda uma criança. Agora, já estava na universidade. E logo faria uma respeitável carreira acadêmica, na Unicamp, a Universidade de Campinas.

Freqüentara muito a sua casa. O pai dela, o poeta e ensaísta Eurico Alves Boaventura, fora juiz de Direito da Comarca de Alagoinhas, até ser preso, depois do golpe militar, em 1964. Acusado de subversão, ele foi brutalmente torturado, como um cão sem dono, nas desertas areias do Cachorro Magro, que todo alagoinhense sabe onde ficam. Depois disto, aposentou-se. Juntou a família a seu desgosto e voltou para Feira de Santana, sua cidade natal. Ali, ele morava numa pequena rua, que batizou com o nome de Manuel Bandeira, seu amigo. Quais teriam sido os atos subversivos do doutor Eurico Boaventura, que poderiam ter atentado contra as instituições, os valores estabelecidos, e a segurança nacional? Saraus de poesia, na biblioteca da sua casa, quando jovens estudantes o ouviam recitar o que havia de melhor na poesia modernista. Sei disso porque fui um dos mais assíduos participantes desses saraus, tendo o privilégio de privar da intimidade do seu lar – e da sua amizade.

Histórico fim de tarde paulistano! Com o generoso gesto de Jorge Amado, e o aparecimento de Maria Eugênia Boaventura, ali representando o seu pai, e o meu próprio tempo numa cidade que jamais esqueceria, eu podia dar o assunto por encerrado. E pegar o avião de volta de coração ao alto, podendo até gritar no saguão do aeroporto de Congonhas, para quantos quisessem ouvir: “Orra meu, foi porreta!”

Poucos meses depois, o telefone toca e era o próprio Jorge Amado no outro lado da linha, me convidando para dois dedos de prosa em seu apartamento de Copacabana, onde eu, de uma vez só, conheceria pessoalmente ele, dona Zélia e Calazans Neto, o também já finado Calá, o artista plástico que ilustrou alguns de seus livros.

Naquela tarde, nossa conversa não evoluiu muito, por causa das ligações telefônicas, a todo instante. Dos jornais, das TVs, dos embaixadores de diversos países, da Academia Brasileira de Letras.

– Eu queria mesmo era ficar conversando contigo. Mas não me deixam. Vá à Bahia. Quem sabe lá dê para a gente conversar?

Fui. Só que quando cheguei à sua casa, na Rua Alagoinhas, 33, no Rio Vermelho, ela mais parecia uma estação de televisão. Sua ampla sala de visitas estava totalmente tomada por câmaras, cabos, refletores. Uma equipe da TV argentina o entrevistava longamente, invadindo quartos, escritório, cozinha, tudo. E ainda pedindo-lhe para mudar de camisa, nas mudanças dos sets de gravação. E pior: a toda hora ele era interrompido, pelos toques na sua porta. E lá ia ele para ser fotografado. Ora por bandos de japoneses, ou de paulistas. Não sei como agüentava esse tranco. E ainda conseguia escrever.

Voltaria a visitá-lo mais algumas vezes, em Salvador e no Rio. E também esbarrei nele em algumas esquinas de Paris. E dele guardo duas lembranças que me fazem rir. Uma, é a do que ele disse, ao me levar à porta do elevador, na primeira vez em que nos encontramos:

– Mire-se no exemplo de Glauber Rocha, que nunca perdeu o sotaque baiano.

A outra, é a das vezes em que ele me telefonava, às sete horas da manhã, perguntando:

– Te acordei?

Claro que este seu ouvinte jurava que não, de pés juntos. Eu era lá besta de deixar alguém que se chamava Jorge Amado contrariado?

Por ter feito o bem que pôde a seus pares, ao país, ao mundo. Porque ele era, antes de tudo, um ser utópico. E o capitão de longo curso do barco de um tempo que naufragou, convenhamos. Deixando-nos a mirar a linha do horizonte, na fronteira da melancolia.

Análise da obra de Antônio Torres por Jorge de Souza Araújo

Por Jorge de Souza Araújo, doutor em letras pela UFRJ e prof. da Universidade Estadual de Feira de Santana, BA.*

Designer da neurose urbana, atuando ao mesmo tempo como um sismógrafo e um enxadrista das repercussões emocionais e psicológicas dos indivíduos submetidos à bateria dos fenômenos sociais na contemporaneidade das cidades grandes, Antônio Torres é reconhecidamente um romancista do depoimento visceral, sincero e honesto sobre a condição humana. Sua narrativa depõe e reproduz além do texto, ampliando a sentença exata do jogo do bicho, onde vale o escrito.

A inequívoca fragrância de colagens autobiográficas (ou, antes, de impressões e reminiscências tingidas de agudezas sobre fatos, acontecimentos e pessoas) na obra de Torres se inicia com Um cão uivando para a lua (1972), título, aliás, que reconstitui, de forma pânica, um dos mais expressivos versos do árcade português João Xavier de Matos, pouco conhecido inclusive por seus compatriotas. O romance de estréia encena o trajeto agonístico de um jornalista ético na estreita sociedade dos grandes conglomerados de comunicação na fechada época da ditadura militar no Brasil.

Nesse universo complexo, o percurso do herói é o da busca desesperada de interlocução com a consciência pública para relatar os frutos e derivações do transe por que passara toda uma geração nos episódios culminantes do rabo-de-foguete histórico pós AI-5 e recrudescimento do regime a partir de 1968. O período e o poder baniram dos meios políticos e sociais qualquer possibilidade de reação, em meio à voga propagandística das realizações patrióticas em tempo de booms, pontes Rio-Niterói, Transamazônicas, Itaipus etc. O ritmo do discurso narrativo de Um cão uivando para a lua é de desespero latente explodindo as comportas da violência agregadora das repressões, acumuladas com o desaparecimento físico de muitos e as barreiras explícitas ao exercício de determinadas profissões.

Nesse embate de antagonismos entre a resistência e a alienação, a epígrafe de Faulkner — “Entre a dor e o nada eu escolho a dor” — avulta como mote pretextual para a desenvoltura do texto, que escorre a água do relato com a fluidez dolorosa de quem escorre o sangue e o pus das exasperações. O interior humano com suas mais intrincadas teias de complexidades psicológicas reativas ao mundo exterior, de que é reflexo e conseqüência, anima o feixe emocional do romance. As personas não têm identificação (ao menos no sentido da convenção onomástica) e são nomeadas por suas iniciais. A sonegação do explícito apenas dissimula não um recato esquemático, mas um voluntário e progressivo movimento de expiação e contemplação do indivíduo deformado pelas agressivas e hostis injunções de uma verdadeira central de anulamentos da personalidade individual e coletiva.

Um cão uivando para a lua atua, assim, depondo sobre uma escala de valores que se desmoraliza, valores derrogados ante a subserviência e pusilanimidade de uns, a delação e servidão voluntária de outros, as hostes antípodas entre a empulhação e a busca caótica da verdade e de um sentido para a existência. A. e T. representam o duplo investimento expressionista do herói em sua derivária e inquieta investigação ontológica, recorrendo ao álcool e às drogas, ao êxodo presumível e às fugas programadas, vistos como manobras diversionistas para escapar ao aniquilamento projetado por um invisível e todopoderoso Sistema. A perplexidade e o aturdimento não salvam ou curam o herói de suas encruzilhadas e o resultado fica entre o desbunde e o retorno entregue e impotente à rodaviva do que procurava escamotear.

O romance de Antônio Torres tem o impacto de dolorosas revelações não recomendadas a cardíacos. Não trata a denúncia pela denúncia alcoviteira de intangíveis proselitismos. Antes descarna o indivíduo solitário no mais recluso depoimento das vísceras morais, comovendo pela expressão verdadeira do testemunho. O cão uiva sozinho, mas sua linguagem renovadora e atenta devolve ao leitor a sensação de partilha das epifanias definitivas. O cão uiva buscando eco dentre os que se disponham a semelhante mergulho na épica (e ética) estóica de outros seres verdadeiros em igual sintonia. O que emerge da narrativa é sua impressionante carga de intensidade confessional, expressa num discurso desconcertante, de que são exemplos ilustrativos algumas imagens colhidas aleatoriamente da voz narrativa em primeira pessoa:

Minha memória é uma cova funda, onde enterrei todos os meus mortos.

Minha cabeça é uma montanha esburacada, por onde escoam todos os detritos do mundo.
Meu coração não bate, apanha.
E os meus pés estão sempre tropeçando.
Cit., 101)

E é como trôpego e hesitante que o ex-sofisticado repórter vitorioso em São Paulo irá reaprender o ofício de reexperimentar embates com o contingente. Entre o feijão e o sonho, debatendo-se embora e reaparelhado pela oportunidade que dá a si mesmo, o herói perplexo fará ecoar seu protesto mudo.

Em Os homens dos pés redondos (1973) a narrativa tripartite abarca (e dissolve) o indivíduo em três esquizofrênicas personalidades correspondentes às três seções (ou Livros) do enredo romanesco. A técnica inovadora não se constitui apenas em técnica, ousa redividir o herói em três perspectivas dinâmicas e atemporais, permanecendo o indivíduo em instâncias e quadrantes diferenciados pela intensidade das ações que sofre e em que pontifica. A memória pessoal se intensifica e se amplia em Os homens dos pés redondos. O relato alterna o passado em flashs de reminiscências proveitosas cotejadas com a dureza de um presente competitivo e cruel, que provoca deslocamento, embriaguez e náusea, sono profundo e pesadelos apavorantes. Manoel de Jesus, filho reprimido de pai sacerdote católico, é o herói que vive a promiscuidade entre irmãos dormindo numa mesma cama na miséria do subúrbio. Os planos do real e do delírio não têm uma fronteira nítida, de sorte que se confundem e confundem o leitor na sua apreensão do real no estético.

A própria narrativa, conquanto densa e com forte carga de inconsciente dramático, tem sua trama determinada pela aparência de caos discursivo misturado ao caos instalado na vida de indivíduos emparedados. A máscara de dor e impotência ante um sistema de opressão faz todos os indivíduos parecerem um único, fortalecendo o dualismo impactante das identidades individuais e dissolvendo-se num coletivo de angústias. Discurso e personagens em círculo lembram um beco sem saída, com as inerentes ansiedades de todos os becos sem saída. A linha de pânico seguida na composição narrativa de Antônio Torres exibe o universo existencialista de um Camus menos preocupado com questões ontológicas e metafísicas e mais inquieto ante o contingente. Daí o existencialismo ancorado mais no político que no filosófico, mais expressionista e patético — circunstancialmente afetado por problemas materiais concretos — que especulativo sobre os dramas imanentes.

Em estado permanente de tensão e ansiedade, a narrativa de Os homens dos pés redondos descreve cortes cinematográficos, com instantâneos sobre fatos e personagens, de forma abrupta ou programática. Os conflitos e dramas se passam numa intangível Ibéria (recurso semelhante ao percorrido por Gonzaga nas Cartas chilenas para melhor refletir o caos) e as personagens mais atuantes (Manoel Soares de Jesus, publicitário, pai de 5 filhos, vivendo de miséria e opróbrios, o escritor Adelino Alves, sua mulher Lena, o instável Emílio, o inominado Estrangeiro etc.) são simulacros do perfil de asfixia na ditadura militar no Brasil dos anos 70. Por isso a voz narrativa percorre a primeira pessoa de cada uma delas e Ibéria assume alegoria da fala nacional obesa e preconceituosa, prostituta penetrada por um Estranho a quem se entrega prazerosamente.

A despeito do esforço de distanciamento, o Estrangeiro é apresentado como oriundo de um país onde um monarca gordo andava com bolsos atulhados de frangos e um outro, seu filho, não passava de Casanova gaiato e promíscuo que não contraíra uma única doença venérea. Antônio Torres tangencia aqui o nouveau roman com anotações atemporais e a-espaciais e com a pulverização de uma temática antes atomizada por sucessivas crispações, onde a memória desempenha um papel fundamental e o relato se distribui entre o emergente, o cósmico e o provinciano, com direito a reminiscências da infância interiorana. O contingente apronta sustos e o ufanismo disfarça as neuras, escondido nas mensagens cretinas dos climas festeiros.

Por fim, o Estrangeiro assume seu lugar de origem: o Junco, onde uma gente estranha, em condições precaríssimas, vive cantando para não perder o juízo (Cit., 136). Em seu burgo, o nativo Estrangeiro se despersonaliza na alienação amorfa e bisonha de um dissolvente amargurado que se refugia no álcool e no sexo inconseqüentes.

Com Essa terra (1976) Antônio Torres inicia o núcleo referencial de qualidade superior em sua novelística. Conquanto o romance evidencie a primeira e direta menção à personagem Totonhim, podemos antes desentranhá-la, por citação indireta e lateral, nos discursos anteriores. A obra de Torres, aliás, desenvolve um denso e cíclico percurso de retorno do autor a si mesmo e à sua mais marcante geografia sentimental e humana, a épica e lírica paisagem do Junco, uma Yoknopatawa especial na nebulosa memória do narrador, que declina o verbo afetivo de um espaço modesto no mapa emocional do sertão da Bahia. Ao contrário do que supõe o próprio Antônio Torres, em carta ao primo José Giése da Cruz (no anteprólogo do romance Essa terra), de que o Junco não ocupa um espaço decente no mapa do Mundo, interpõem-no o conceito de geografia física e a rica moção postulada por Oscar Wilde, que dizia não reconhecer legitimidade num mapa-múndi que excluísse a Utopia.

Pois Antônio Torres, com Essa terra, inscreve definitivamente o Junco num legítimo e renovado globo terrestre. Seu terceiro romance é marco original a partir do qual a geografia literária baiana ganha contornos de novos signos, situados no Recôncavo Norte, na região capitaneada por Alagoinhas, matéria descritiva de um sertão mais amplo. Pela própria aferição autoral, Essa terra assinalaria uma autêntica viagem de volta à aldeia, às referências mais enriquecedoras e fecundantes da inscrição existencial humana. Escrita e temática se incumbem do risco amarronzado sobre a terra arada. A cunha seletiva do narrador incursiona pelo épos, pela lira, pelo drama e testemunho, mas também pela sátira mordaz, assim traduzindo o famigerado Produto Nacional Bruto: gente se alimentando de farinha de telha, sopa de farrapos e carne de rato.

Isso explica a obsessão autoral em dissecar o Brasil doente, o país verdadeiro amortizado pelas empulhações simplificadoras e mortificantes. O Junco é símile metonímico, anti-paradigmático, dessa noção de deserto e o romance Essa terra é invocativo dessas diferenças, recuperando, mediante caráter ficcional, o documento transfigurado paradoxalmente. A teia de interlocuções do discurso textual não oblitera, mas alarga o conceito do real. A razão e os diálogos do romance convalidam e invectivam à reflexão e à consciência crítica a propósito da forma como nos debruçamos sobre a realidade social brasileira.

Por conta dessa realidade, de suas repercussões ou dos descaminhos dela conseqüentes, o texto induz a pensar no Advento bíblico, na culpa consciente, deliberada e do inconsciente individual ou coletivo, culpa absorvível desde o êxodo, o fascínio abstrato da redenção na cidade grande, o nicho paulistano como edênico de transformações. E o insucesso, a noção de fracasso, o amargurado retorno, tudo, no fundo, dirigido pelos desequilíbrios nacionais de natureza econômica e social. As mudanças traumáticas operadas no Junco catapultam outros sofrimentos, mesmo aqueles a princípio sinalizados como progresso — o Banco, a tevê, a circulação das idéias, as novidades urbanas, a moda etc. A ira do doido Alcino reverbera os velhos anátemas desde os referenciais sertanejos mais emblemáticos, Antonio Conselheiro e Canudos.

O Apocalipse ganha então revestimentos de coerência no discurso alusivo, reforçado tragicamente com o suicídio de Nelo. Delírio, culpa, expiação, punição exemplar seguem um encadeamento lógico na narrativa, que expõe os conflitos decisivos para qualquer tomada de decisão por parte de Totonhim mesmo em face da diáspora familiar entre os conceitos redentoristas exteriores da mãe e o desejo do pai em permanecer no solo sagrado, visto como curador da integração familiar. O telurismo da roça é antagônico da dispersão citadina. A todos os contextos de exclusão o narrador-protagonista reage pela incorporação da culpa, purgativa do excesso mítico e da antevisão profética a ela associados. As lembranças podem até ser aleatórias, menos suas causas e conseqüências no repertório memorial do narrador. Fatos presentes (mesmo os acidentais) podem deflagrar reminiscências graves e dolorosas, pois se relacionam ao evento mais constrangedor: a morte de Nelo por enforcamento. Os cismas familiares como que se dissolvem ante a dimensão trágica do desaparecimento do Irmão. O esforço de compreender leva o narrador à auto-gnose e ao entendimento de suas referências mais profundas (a cosmogonia do lugar de onde provêm as dissensões familiares, a ambivalência de sentimentos), como se houvesse uma estreita relação de causa/efeito entre o indivíduo e seu espaço nativo.

Desde aí as fantasias são circulares, deixando ou não aflorar impropriedades comportamentais na cidade grande (a embriaguez, a dubiedade moral, a instabilidade de afetos), dentre as quais ganham relevo o pêndulo e a alteridade do amor e do ódio à terra de seu nascimento, origem de seus conflitos. Totonhim é o germe (em flash-back) sobre o qual se projetam os protagonistas narradores dos romances anteriores de Antônio Torres, coincidentemente designados A. e T. em Um cão uivando para a lua e De Jesus, o Estrangeiro e Alves em Os homens dos pés redondos. Em todos esses relatos o indivíduo se desintegra, fragmentário e exilado, desfigurado identitariamente e à cata de um porto salvador onde ancorar a esperança de continuidade.

Essa terra não é tão somente uma história de ou sobre migrantes desterrados para São Paulo, onde e de onde acorrem e decorrem misérias e grandezas materiais e éticas. O tema do retorno também não se circunscreve apenas aos ensaios de esperança frustrada e impossibilidades. Isso talvez seja dizer pouco. Nelo volta de São Paulo e faz a retrospectiva de seus passos desde a ida triunfalista ao retorno desalentado. O filho próspero, no entanto, voltaria ao Junco para encontrar a morte, enforcando-se em casa, para surpresa e mistério gerais. O porque do gesto conflagra decifradores desconstruindo idealizações redentoras. O herói mitificado não passaria de um sobrevivente brutalizado por uma existência atormentada entre carências materiais e afetivas, abandonado pela mulher e pelos filhos paulistanos.

Aos olhos do narrador Totonhim passa o filtro das sensações de frustração, impotência, despeito e desolação. O irmão-herói descalçara os sapatos (de cromo alemão) da prosperidade para realçar (e recalcar) as alpercatas de couro cru, pisando o pó das intempéries sertanejas, mantendo mortas as chamas de qualquer projeto de redenção familiar e o eco das ruínas do sonho nos circunstantes. O retorno de Nelo — sem nenhum aviso — revela a instabilidade de sua condição social e psíquica, contrastando com as gerais expectativas. Ao narrador Totonhim são apresentados os primeiros sintomas de desequilíbrio dos retornados de São Paulo, flagrando no irmão Nelo as alucinações e delírios de um homem infeliz, alienado e só, descompensado por sucessivas e brutais perdas, anulando-se no lugar de suas origens, atando as pontas de um ciclo de culpas e auto-punição. Impotente em prover imagens de heroísmo referencial conciliadoras à decadência de seus projetos, Nelo escolhe o Junco para por termo à dor.

Ao narrador (e irmão mais novo, Totonhim) só resta o retrospecto de primitivas lembranças traumáticas, relacionadas ao cosmo familiar e do Junco, ermo longínquo e próximo onde a venda de Pedro Infante representa o abrigo de todas as queixas. A linguagem dos afetos será pulverizada em um fundo de ressentimentos, amarguras e intolerâncias.

Carta ao bispo (1979), de certa forma, seqüencia Essa terra. No quarto romance, Antônio Torres cumula de testemunho retrospectivo e prospectivo o êxodo do indivíduo ao recôndito de si mesmo. É romance-sonata, cujo primeiro movimento ordena uma lógica cruel: recolhido a uma casa do bispado, isolado com suas amarguras, Gil decide morrer ingerindo veneno. Antes escreve (ou vai escrevendo enquanto aguarda o desenlace) sua confessional Carta ao bispo, refazendo o itinerário de suas perplexidades, começando pela primeira comunhão, ao jogo de futebol, à descoberta das primícias sexuais, daí cortando para o Gil adulto, a atividade política, a Prefeitura, o idealismo, o comício (onde repete falas do comediógrafo Gil Vicente e do pacifista Martin Luther King).

O perfil do protagonista-narrador é do típico político do interior acossado por intrigas e ameaças de morte física ou simbólica (acusado de safado, ladrão, comunista e homossexual) e dividido entre o idealismo ideológico e o oportunismo espoliador. As imagens do remetente epistolar se misturam, passado e presente se entrechocando, a conversa encabulada, cheia de atalhos. O depoimento suicidário corta qualquer fio de esperança na redenção humanista. A Carta ao bispo punge e choca porque revela o quanto somos emparedados nos macro ou micro cosmos de angústias, de nada valendo obstinações nas geografias sem sentido das cidades sem alma, condenando ao esforço inútil a comunidade de sobrevivência dos párias, fustigados pela hostilidade do meio. Como Essa terra, Carta ao bispo é o romance dos sem-lugar, dos deslocados, destituídos do mais remoto ânimo, seja na infinita São Paulo ou no deserto do Junco.

Gil não contemporiza: quem come miséria não caga nem merda (Cit., 39); Deus me deu a pátria, o Diabo me deu a angústia (Cit., 40). A escritura romanesca investe em inovações formais, buscando, pela fragmentação da linguagem, a representação psicológica de desintegração moral e social. O jorro de palavras desconexas, substantivando e expondo Gil como o herói atomizado, expele-o de um eu primordial, remoldando desertos em amargurados despistamentos. Por isso as conclusões de imobilismo reativo na Carta ao bispo, onde Gil se despede da verticalidade do existir: Os pecados mortais são só três, Dom Luís: nascer, crescer e viver (Cit., 47). As instâncias dramáticas repassam, como num filme, as imagens constituintes do desespero do herói, sua raiva impotente contra pessoas, instituições e cidades como Feira de Santana e Alagoinhas, as muitas idas-e-vindas São Paulo/Bahia, o amor frustrado por Marília, os delírios da embriaguez do álcool e das sensações imprimidas no espírito contrafeito.

O fundo humanista determina o final do romance. O bispo chega a tempo de levar Gil ao hospital e a sugestão e expectativa de salvar o idealista no atormentado suicida.

Confrontos e entrechoques entre o Brasil arcaico e o Brasil moderno permanecem singularizando a obra de Antônio Torres em Adeus, velho (1986). Levando em conta uma estruturação molecular no conjunto de desintegrações do cosmo familiar e de referência aos núcleos sociais do interior brasileiro face à fragmentação identitária, o novo romance de Torres contextualiza em Salvador a reduzida apetência da sociedade humana dilacerada por imperativos econômicos e sociológicos.

Adeus, velho obedece às dolorosas circunstâncias do descompasso que acompanha todo processo de mobilidade social do interior à metrópole, fotografando graus e degraus de dispersão e ruptura da personalidade, síndrome que acompanha cataclismos pessoais e coletivos acarretando os mais bruscos atavios da organização sócio-psicológica. A protagonista (pela primeira vez na obra de Torres) é uma Virinha representando emblematicamente a luta da mulher na sociedade corrompida por valores forjados pela competição estigmatizada como natural num mundo zoomorfizado, conquanto pobreza, miséria e degradação sejam males coletivos co-naturais ao nordeste brasileiro.

Como o passado não se apaga e o presente só delega desencanto, cansaço e deserção, quanto mais conformistas se revelarem, mais soterrados serão os indivíduos em seus mecanismos de imobilidade. Entre degradar-se e desiludir-se, Virinha parece aproximar-se perigosamente da convivência com os dois verbos mais perversos na trajetória dos que se empenham no esforço da alteridade. O Adeus, velho do título sugere invocação de despedida, mas também o despedaçamento, renúncia excludente a um tempo olvidado e substituído por outro que, não sendo novo, muito tem de ausente por inércia.

A odisséia de Virinha (nome civil: Maria Elvira) começa com o galanteio fácil, logro, sedução e abandono por um motorista de caminhão, à vista da cidade distante. Os passos da lograda Virinha atordoam o relato com a vertigem da rápida sucessividade dos fatos. Acusada de assassinar o sedutor, aos 40 anos, Virinha é presa em Salvador e vira notícia preconceitualmente repercutida no Junco, sobretudo pelos requintes do crime hediondo que cortara ao motorista o pescoço, a língua e o membro viril. O irmão caçula de Virinha, Mirinho (Zulmiro, ou Zu) realiza a versão dramática do resgate da família repartida em surdos ressentimentos e atavismos de herança.

O velho a quem se declina o Adeus é o velho Godofredo, pai de 17 filhos perdidos na solidão dos desertos metropolitanos e diaspóricos. A família se desintegra como um álbum que, aos poucos, vai desbotando. Os filhos, premidos pelo sonho da redenção individual, arribam na estrada de chão, tangidos pelo visionário umbral de liberdade ao meio cada vez mais mortiço do Junco. Nesse sentido, Adeus, velho é uma extensão do ciclo de êxodos e expatriamentos dos sertanejos para outros destinos, ciclo aberto por Antônio Torres com Essa terra. Os diálogos dos irmãos tangenciam a aspereza, sem a boa lembrança de qualquer intimidade ou aos lugares de suas referências. O encontro por ocasião da morte e funeral do velho Godofredo só aprofunda a litigância dos irmãos, aqueles filhos da verdadeira vereda tropical, que liga o mundo ao nada e vice-versa (Cit., 138).

O Adeus ao velho é emblemático das variadas orfandades. Como pausa às dissensões por direitos de herança, Virinha e Mirinho passeiam suas desilusões pela praça e ruas da aldeia. Mais uma vez Antônio Torres se presentifica no repertório de imagens do passado recuperadas pela reminiscência psicológica. O epílogo do romance alterna constrangimentos e asceses, revelando um narrador atento às simuosidades da alma em todos os quadrantes e fisionomias morais deflagradas pela eterna incógnita da condição humana.

No exemplo aproximado de Um dia na vida de Ivan Denissovitch, de Alexander Soljenitzin, a Balada da infância perdida (1986) repassa num só dia — ou noite, de insônia, mal-estar e bebedeira — um quarto de século da experiência psicológica de um ser mutante no esforço de permanecer ele mesmo dentre os muitos que intenta. Neste seu sexto romance, Antônio Torres permanece reescrevendo os delíquios do migrante miticamente retornado ao chão da origem geográfica, lúdica, psicológica e existencial, conjugando as tensões do impossível retorno ao passado remoto e harmonizando o presente aos influxos revitalizadores das expressões afetivas e memoriais.

Nessa Balada da infância perdida, ao império da sociologia e psicologia dinamizadas por conflitos interiores das personagens, o narrador acumula 25 anos de reflexões sobre o destino dos indivíduos num país combalido em suas forças vitais, vítima de sucessivos equívocos institucionais. Ou seja: à introdução psicológica — que flagra o contínuo das instabilidades pessoais evidenciadas pelo narrador e suas diferentes personas e vozes — o romancista adere e cola fatos políticos da História recente (golpe militar de 1964 e seus desdobramentos), comprometendo ainda mais a mecânica explosiva das emoções humanas.

A memória afetiva do Junco acompanha, mais uma vez, o fabulário narrativo de Antônio Torres, subsidiando a obra romanesca de temas e linguagem convergentes. Um mesmo e polívoco Totonhim, ainda que derive a persona para outros nomes (A., T., Estrangeiro, De Jesus, Nelo, Gil, Mirinho, Virinha et alli), muito mais evoca a infância simples e residual. Balada da infância perdida arrebata a memória coletiva de paisagens, seres, lugares, mitos e personalidades de todo interiorano do nordeste brasileiro, cumprindo um avatar sertanejo desequilibrado em suas bases emocionais de permanência nômade, espécie de Ahasverus do sertão das secas, cujas asperezas emergem do solo e da ecologia agreste para a alma crestada das pessoas.

Tanto neste quanto nos outros romances de igual signo, a presença de um velho pai, de origens rurais e aversão à cidade, é fenômeno circular. Progenitor de muitos filhos (12, 15, 17) e em conflito discreto ou escancarado com a figura da Mãe, o velho percorre as páginas memoriais da obra de Antônio Torres com ou sem a caducidade dos estigmas, em contexto problemático, mas nunca indiferente. A aversão às cidades é justificada em função do seqüestro e fascínio que exercem na sociologia afetiva, roubando-lhe os filhos, minando a família e provocando-lhe a diáspora de contornos entre o drama, a tragédia e o trauma. Tentando compreendê-lo em sua mudez, o narrador é sempre exclamativo na referência ao velho, com a carga evidente de sentimentalidade devocionária. Por isso o romance sugere constantes fusões do épico com a lírica e recorrentes serão a sonoridade e o eco dessa Balada da infância perdida.

Antônio Torres talvez seja o mais proustiano dos narradores contemporâneos da Bahia. Seu texto advoga recuerdos dos pathos, repondo em pé a memória viva, telúrica e sinestésica, embalado pelo cheiro de alecrim. O delírio alcoólico é pretexto para reproduzir cenas memoráveis, algumas de teor cômico insuperável de harmonia. O humor corresponde ao sarcasmo dos desiludidos, sobretudo dos que viviam imprensados entre regimes a fórceps. Mas o forte mesmo — que mais comove, tanto quanto o conhaque de Drummond no famoso poema — é o rescaldo da memória do narrador escavando lembranças do pai cantando aboios, dos irmãos desterrados no mundo sem endereço, do retorno ao coração selvagem das sondagens íntimas. Por isso o narrador se interroga inquieto entre o peso do passado e as incertezas do futuro, enquanto convive com o terror de suas alucinações e a presença ininterrupta de seus mortos (o primo Calunga, a tia Madalena, a mãe, os irmãos anjinhos no caixão azul feito pelo próprio pai). Encurralado no tédio da cidade grande, o narrador-protagonista bebe sua solidão e se embriaga de angústia.

Romance expressionista como os anteriores, o pathos anima os cordéis da Balada da infância perdida, presente também no espírito parodístico dos hinos e poemas declamados na escola. O ritmo de vertigem cinge o relato ao círculo intermitente das elucubrações afetivas.

Um táxi para Viena d’Áustria (1991) é o texto mais cosmopolita dentre os romances de Antônio Torres. De humor esquivo e pouco à vontade, reflete os desencontros do indivíduo na cidade grande frente à náusea e o descaminho, a desorientação de quem procura rumor num tempo disperso. A narrativa adensa o pânico desse desnorteamento fixando-se, de forma fragmentária, num conjunto de impressões, cortes e colagens expressionistas da complexidade sem pistas de decifração ante o nervo exposto da simultaneidade dos traumas urbanos.

O discurso se afasta da linha até aqui seguida. O cenário não é mais a Bahia (citada direta ou indiretamente nas ações) e sim o Rio de Janeiro, e mesmo assim um Rio de Janeiro sem uma incisiva noção de identidade e permanência, acossada por assaltos e outros golpes na conformada passividade urbana. As reações percorrem a afirmação da beleza do jazz na meia-noite e a ironia sarcástica das tribos na ambiência urbana. O protagonista se ressente de um pouco à vontade comum também ao narrador e à própria narrativa.

E por que Viena? Porque a capital da Áustria é também a capital da música e lá as pessoas dançam nas ruas, lugar de liberdade de movimentos e das sensações estéticas. O romance resvala no gênero policial sofisticado pela substância do merchandáising da úrbis. O impressionismo das descrições recebe a unção do registro das sensações ciclotímicas da cidade que dispersa fluências identitárias, cidade cósmica, planetária, que pode ser qualquer uma em sua fúria de desconfortos. Por isso que Viena d’Áustria é a pátria regularmente dos refugos, dos manobristas do diversionismo espiritual.

O protagonista-narrador mata um amigo, mas o ato e o crime são praticados a-serviço do próprio assassinado, à semelhança de uma eutanásia em rito de eliminação da dor de um doente terminal. Sem dúvida, é o relato mais sombrio na obra densa de significados afetivos de Antônio Torres. Documenta a insatisfação pessoal contaminando a deserção coletiva de um universo em profundo desencanto, expandido a determinadas categorias profissionais que não vislumbram valores em seu ofício. O exemplo ilustrativo é a publicidade, onde as relações são corroídas pela competição estupidificante e o império extorsivo dos mercados. O protagonista é assassino piedoso, banalizando sua crueldade como os exilados urbanos sufocando-se de inação.

O cachorro e o lobo (1997) assinala o retorno de Antônio Torres ao território cosmogônico da memória de sua infância, o Junco, sua Aracataca ainda não desmitificada, apesar dos arranhados signos de uma modernidade suspeitosa (televisores, antenas parabólicas, telefones, supermercado).

Há duas décadas na São Paulo dos iludidos, o Narrador refaz brevemente um retorno sempre problemático à sua terra, em visita ao pai octogenário, que vive fora da cidade deserta de glórias e convivendo com seus fantasmas, medos e mortos, enquanto cumpre um rito de sol, roça, animais e paisagem rústica. Pela linguagem, cujo arcabouço é também persona decisiva no traçado do discurso, com O cachorro e o lobo Torres retoma o fio proustiano das tensões do eterno retorno às raízes míticas pendentes do lugar para a inteireza existencial. O indivíduo-narrador vive o espectro das lembranças e dos entrecruzamentos afetivo e emocional das histórias que a todos implicam e enredam, inclusive os leitores, mesmo aqueles que não tenham o sertão como origem. O universo dessas recordações sugere uma condição especial da náusea existencialista, do convívio com a memória agônica dos desterrados cíclicos.

O contra-senso da era moderna também chega ao Junco, interferindo nas relações e conflitos e determinando os rumos de uma herança de afetos no romance que reinveste na emoção e na ironia, filtrados pelo sinete da forma. Matéria de memória, O cachorro e o lobo retoma explicitamente Essa terra, mas ultrapassa o clamor do migrante pela iconografia da canção popular (cujas letras se interpõem quase como entidades no contexto do romance), retratando, por extensão diaspórica do Junco, uma Feira de Santana sem glamour, meio do tempo, meio do mundo, corredor polonês no rumo obrigatório da distante São Paulo.

Retirado numa casinha simples de uns restos da outrora próspera propriedade rural, o Pai, o Velho do Narrador, aos 80 anos de idade, vive isolado do mundo, mantendo conversas excludentes com os mortos, em longos serões, tão logo chegue a noite. E já que a obra de Antônio Torres se desenvolve em ritmo e rito cinematográficos, a alusão temática que a ela parece melhor caber é à filmografia de Frank Capra. Na forma literária, a melhor lembrança que a leitura de O cachorro e o lobo associa é ao conjunto Pedro Páramo/O planalto em chamas, do mexicano Juan Rulfo. Texto permeado de metáforas involuntárias, também sem competidor é o lírico desdobramento da recordação da primeira namorada de Totonhim, a professora Inesita.

O cachorro do título é referência afetiva de tratamento a Totonhim, narrador e filho caçula do lobo solitário, o velho pai recolhido em seu ensimesmamento de octogenário recluso no sítio, conversando à noite com os mortos e, durante o dia, com as galinhas e demais bichos da roça. Sem dúvida, é este o mais convincente em comoção espontânea dos romances de Antônio Torres, também o mais sincero e obstinado no resgate dos afetos positivos e o texto mais inteiriço, amarrado e sem eventual desmaio de composição. Com O cachorro e o lobo o romancista do Junco se inscreve na singular galeria dos narradores que escrevem com os nervos expostos da emoção mais forra e mais fecunda, de maior empatia e verdade intrínseca.

Em seus dois últimos romances (sem contar Pelo fundo da agulha, lançado no segundo semestre de 2006, refazendo o ciclo começado por Essa terra), Antônio Torres percorre a metaficção historiográfica, centrada tematicamente em episódios alusivos às invasões francesas no Brasil (mais especificamente o Rio de Janeiro nos séculos 16 e 18) e à trajetória dos verdadeiramente invadidos e profanados em seus direitos e valores.

Conforme acentua o narrador de Meu querido canibal (2000), como os índios não dominavam a escrita, seu destino sobre a terra esfumaçou-se em lendas (Cit., 9). Por isso talvez que Meu querido canibal pode ser lido como um romance que emerge de uma dessas lendas, tendo os tupinambás como atores coadjuvantes e Cunhambebe como protagonista metonímico e adversário das cruentas rupturas impostas à Colônia brasileira desde o seu primeiro século. O livro pode também ser lido como esforço revisor da perspectiva colonizadora, esforço considerado neo-romântico, exposto às flechadas da história oficial, essa velha dama mui digna, aqui sujeita aos retoques da nossa indignação (Cit., 9).

Antônio Torres constrói narrativas explorando o menor espaço como ampliações do olhar para questões universais, seja no plano ideológico, telúrico, metaficcional. Assim, compreende o romance, conforme Camus, como um exercício da inteligência a serviço (ou filtrado) da sensibilidade estética, nostálgica ou revoltada, reunindo indignação e ternura. Sua leitura do passado é feita como opção repensadora (e recompensadora) do presente. Nessa visão pós-colonialista, o passado não se ressente de mero fruto de contemplações monumentalistas, nem matéria de ressentimentos estéreis. Em Meu querido canibal, signos de devoração antropofágica oswaldiana fazem o indivíduo revisto e revisitado, ampliado ou deformado das intrínsecas e renovadas configurações históricas e literárias.

O romance revisa o tratamento dado ao índio, atribuindo-lhe persona e identidade anímica, predicados completamente ausentes dos compêndios escolares e acadêmicos. Sob a forma da representação ficcional a partir do divergente da construção dos discursos, Meu querido canibal põe em relevo a voz do índio, num rumo ruptor do caráter dependente e subalterno do oficialismo. O rito discursivo passa a operar em sintonia com o penhor da fragmentação do real objetivo, visando a uma reconstituição reconstrutora, pondo termo à utilização de meios e recursos convencionais da cultura fora da natureza.

Se o romancista de Essa terra narrou e descreveu o homem fragmentado e descosido, sujeito a impactos, choques culturais, marginalização e periferismo, supremacia hegemônica das metrópoles sufocando individualidades; se a perda de identidade é conseqüência das marcas apagadas da nostalgia de um passado que ruiu, o narrador denunciando a angústia humana pelo desenraizamento, claro que o autor de Meu querido canibal balisará o romance se não pelo anulamento do passado colonial que, de forma consciente e historiográfica, contribuiu para o aniquilamento moral dos autóctones, parodiará, como Oswald de Andrade, escarnecendo da força, reinserindo a pessoa civil do índio. Em conseqüência, canibalizará o passado oficial e seus modelos de culto à convenção, desvelando fisionomias obscuras ou esmaecidas pelo apagamento das marcas.

Assim, Meu querido canibal desmonta eixos de etnocentrismo concentrador do pensamento único. O retorno ao passado só terá sentido se permitir ressignificações dialetizadoras e o romance de Torres recria esse passado em dimensões repensadoras, estabelecendo novos fluxos discursivos e possibilitando a crítica da cultura e das relações temporais passado/presente. O objetivo é a assunção de uma consciência dos sujeitos e objetos históricos sem a hierarquização paralisadora dos efeitos dominantes nas versões opacas dos vencedores. As três partes do romance convidam a uma agudeza crítica, reorientando o discurso histórico em torno de uma nova Confederação dos Tamoios.

Ao passo que o Romantismo de Alencar disseminaria a idéia do índio manso, o bom selvagem atado ao jugo discreto do mito do bom senhor, Meu querido canibal erigirá uma imagem do chefe guerreiro, do bravo e incansável refugador das tiranias colonialistas em voga no Novo Mundo, ampliando o choque cultural ao corpo-a-corpo do debate. Como Cunhambebe, o romance de Antônio Torres é reagente à imagem pródiga do índio ingênuo e prosaico, burlado por espelhinhos e bugingangas, tendo sua história asfixiada por superstratos violentadores. À herança apagada dos dizimados, a reagente e canibalesca nova versão dos fatos, dissolvendo-se fronteiras postiças entre História e Literatura e dos objetos exclusivos de cada uma.

Entre o verossímil e o factual, a obra de Antônio Torres inova pelo leque e o prestígio diferenciadores das versões. Incontáveis trechos do romance ajudam a pulverizar a farsa do pensamento excludente, oferecendo novas angulações do problema, na forma avessa às mistificações e ombreando-se ao que caracterizamos como culturas de resistência, pelo reconhecimento da diferença e seus valores permanentes. Cunhambebe não teria melhor representação étnica e epopéica do que a que lhe é conferida no romance Meu querido canibal: um guerreiro tupinambá no tempo da pedra polida, a combater os inimigos de seu povo. A faceta anti-portuguesa e pró-interesses dos franceses escamoteia o convívio hedonista e sensual a uma festa civilizatória, esquecida da violência dissolvente da corrupção, das doenças, dos vícios, deserções e mortes patrocinados pelos europeus — fossem portugueses, franceses ou holandeses.

A narrativa de Antônio Torres prima pelo dialogismo com a ciência e a cultura e, mais, o contrapontístico intercurso temporal, citando referências, conhecimentos de homens e mulheres do passado e do presente indistintamente, socorrendo-se, por exemplo, do pensamento de Einstein, de que é mais fácil destruir um átomo do que um preconceito (Cit., 20). O presente do narrador completa o percurso de sua reavaliação do país e do romance. O querido canibal de hoje seria trucidado pelas balas perdidas ou pela liqüidação de qualquer identidade na Barra da Tijuca (in)devidamente maiamizada, made in USA.

Já em O nobre seqüestrador (2003), com o pretexto de seu segundo romance histórico, o romancista reflete sobre a cidade do Rio de Janeiro, refém ontem, como hoje, das impropriedades de seus seqüestradores, municiados de cinismo e arrogância e o beneplácito de nativos e governos, pagando a vilania com a pusilanimidade cúmplice, a hipocrisia volante e a indiferença aliciadora. Muitas dessas reflexões provêm da própria análise do corsário René Duguay-Trouin, que monologa e se diverte com o pânico que instalou no Rio de Janeiro em princípios do século 18 inflado de invasões e efervescências. É desse narrador soberbo e melífluo, aliás, a análise precisa e cortante de que Canalhas não têm pátria. Têm interesses imediatos (Cit., 17).

De uma certa maneira, O nobre seqüestrador complementa o roteiro de contrafações historiográficas de Meu querido canibal. As peripécias conquistadoras do corsário Duguay-Trouin, tutelado por Luiz XIV (o rei-sol), não apenas tomou de assalto o Rio de Janeiro em 1711 (tendo antes pensado em saquear a Bahia, ainda centro administrativo do Brasil Colônia) — pretendendo a re-instalação da França Antártica, compelido pela febre do ouro em Minas Gerais —, como antecipou a visão do caos noturno de um país modular em desorganização e arbítrio, submetido à lei do mais esperto. O monólogo de Duguay-Trouin presentifica-o como alter-ego esquivo e irônico do narrador, perspectivando uma atualidade ainda mais irônica.

É possível que o nobre do título seja também irônico (da aristocracia ou da distinção de caráter). Mas isso não nos ocorre da leitura da primeira parte do romance, onde a estátua falante de Duguay-Trouin expõe e dispõe de suas aventuras de marinheiro e almirante vingador do prestígio de uma França quase arruinada por tantas guerras. O narrador dialoga com um desconfiado interlocutor, assente em quase tudo com o que vai ouvindo e transformando em biografia temperada de picaresco e glosa sarcástica. O romance histórico, então, deriva para o romance-reportagem sobre personalidades históricas e a cidade do Rio de Janeiro ilha-se em confinamento de medo de novos saques, assaltos, seqüestros e profundas concussões na vida civil transtornada em paranóia, onde se sepulta diariamente qualquer sopro de racionalidade cordial. Por isso o narrador conclui que a história dela (da cidade do Rio de Janeiro) é a dos seus próprios arrasos. E não foram poucos (Cit., 147).

A terceira parte do romance registra alegoricamente a cidade do Rio lastimando seu destino de invasões e estupros, fenômenos sociais e bélicos de que sai sempre aviltada e com surtos de baixa estima moral, quase sempre entregue à sua própria sorte e ao discurso retórico de quem a deveria defender e a abandona ciclotimicamente. As querelas históricas são denunciadas e o relato épico se despe da epopéia para vestir a túnica da humildade lírica, pois O nobre seqüestrador, no fundo, é uma elegia e um canto de afeto do romancista ao Rio de Janeiro metonímico da afeição e cordialidade que tributamos ao próprio país. Isso, apesar de a cidade ter perdido sua aura de Cidade Maravilhosa, vitimada por perversos ciclos de invasões mil vezes piores que as do passado remoto e seus seqüestradores fossem nobres ou meros capitães de pirataria e rapinagem.

Na contramão do Pindorama, de Xavier Marques, o romance histórico de Antônio Torres tem um projeto escancaradamente revisor, crítico e anti-apologético.

*Do livro Floração de imaginários, o romance baiano no século XX, de Jorge de Souza Araújo, premiado pela Academia de Letras da Bahia / Braskem S/A, e publicado pela Via Litteranum Editora: Itabuna/Ilhéus, Ba, 2008.