Texto publicado na revista Leitura, da Biblioteca Nacional, em Maio de 2008
Comecemos lembrando que feira vem do latim feria e
significa dia de festa. Daí o seu caráter festivo, seja ela do que
for, do gado aos livros, em local onde se faz mercado, em épocas fixas.
E onde acontecem as reuniões de vendedores e compradores, estes
atraídos por motivações as mais variadas, como o atendimento a
necessidades básicas (produtos alimentícios e de vestuário, por
exemplo), novidades, vendas a preços reduzidos, entretenimento,
animação.
Suas origens remontam à Grécia Antiga, em Delfos e Delos. Mas foi na
Alta Idade Média, com a renovação comercial da Europa, que as feiras
se tornaram o centro da vida econômica internacional. A partir de então
passaram a ser favorecidas pelos senhores e pelos reis, que concediam
privilégios a seus participantes (garantia de herança, garantia contra
prisão por dívida, autorização de empréstimo a juros), e se tornaram
também Bolsas de Valores que aceitavam letras de câmbio e pagamentos a
termo. Isso proporcionou o surgimento de grandes corredores comerciais
nas cidades situadas ao longo das encruzilhadas das estradas que
levavam da Itália aos Países Baixos, e nas que iam da Hansa à
Île-de-France.
Sim, foi na França, e no século VII, que as feiras progrediram. Mais
precisamente: em Saint-Denis e no Lendit. Chegaram ao apogeu no século
XII, quando o renascimento comercial europeu e o recuo do Islã puseram
em relevo as cidades de Champagne e outras próximas do Mediterrâneo,
na região de Languedoc – Nîmes, Carcassone, Saint-Gilles. Do século
XIII em diante, feiras como a de Beucaire, cidade situada no vale do
Ródano, cresceram de importância. Instituídas em 1420, as de Lyon se
tornaram ponto de encontro internacional e de concentração de bancos.
Fora da França, destacaram-se as de Bruges, Antuérpia, Ypres e Torhout,
nos Países Baixos; Stourbridge, na Inglaterra; Colônia, Frankfurt,
Nuremberg, Leipzig, na Alemanha; Milão, Veneza ou Piacenza, na Itália.
Depois do século XVII, a maior parte delas viria a desaparecer, em
função da melhoria das comunicações, o que levou as companhias
comerciais a distribuir os seus produtos através de uma rede de
sucursais.
Evolução mercadológica alguma, porém, seria capaz de decretar o fim
das feiras. Elas haveriam de sobreviver à vertiginosa expansão dos
sistemas de distribuição de mercadorias, com as facilitações dos canais
de vendas (supermercados, shoppings, redes de lojas globalizadas,
telemarketing, web, tudo que está aí, ao alcance das nossas mãos).
Adaptaram-se aos novos tempos e diversificaram-se, de acordo com o meio e
as modas. Das feirinhas semanais de cada povoado ou cidadezinha, às
dos bairros nas cidades maiores, elas cresceram e se multiplicaram, em
cenários ideais para lançamentos de produtos, promoções, alívio de
estoques, convívio, festa. No Brasil, há até uma cidade que deve o seu
nome a uma feira de gado, evocada numa música que os boiadeiros
cantavam pelas estradas de uma vasta região do país: “Mundo Novo adeus/
adeus minha amada/ eu vou pra Feira de Santana/ eu vou vender minha
boiada”. A história dessa feira começa em meados do século XVIII, numa
fazenda chamada Santana, no estado da Bahia, que se tornou pouso para
tropas de gado que vinham do Piauí, Goiás, Minas Gerais e do próprio
interior baiano. O ajuntamento resultou em feira e daí à fundação, em
1873, da Cidade Comercial de Feira de Santana, que em 1938 teria o seu
nome reduzido para o atual. Autoproclamada “a princesa do sertão”,
Feira de Santana é hoje a maior cidade do interior baiano, com cerca de
800 mil habitantes. O seu desenvolvimento fez com que o campo do gado
desse lugar à ocupação urbana e se tornasse apenas uma referência
histórica.
Igualmente memorável é a feira de Caruaru, em Pernambuco, aquela que
“dá gosto a gente ver”, pois “de tudo que há no mundo, nela tem pra
vender”, conforme a imortalizou Luiz Gonzaga, o rei do baião. E quem
não se lembra de Simon & Garfunkel cantando “I’am going to
Scaborough fair?” A dupla cantante alardeava que estava indo à feira de
uma cidade do estado de Nova York, que pelo visto devia ser famosa. E
agora passemos ao real motivo destas linhas: as feiras de livros. Claro
que estas têm propósitos idênticos aos de quaisquer outras, mas de
algumas delas se diferenciando pelo histórico menos enciclopédico. Entre
o célebre poema de Castro Alves, O livro e a América,
declamado com grande sucesso pela atriz Eugênia Câmara em 3 de julho de
1867 (“Oh! Bendito o que semeia/ Livros… livros à mão cheia… / E
manda o povo pensar! / O livro caindo n’alma/ É germe – que faz a palma,
/ É chuva – que faz o mar”), a fundação, em 1918, da primeira editora
nacional, pelo escritor Monteiro Lobato, e o surgimento das feiras de
livros no Brasil, muita água rolou debaixo das pontes. Mas onde?
Quando?
Uma cidade: Porto Alegre.
Data: 16 de novembro de 1954
A cidade adentrara a década de 1950 com 400 mil habitantes. Seu
local de maior movimento era a Praça da Alfândega. Diante da badalação
bem ao centro da capital gaúcha, um jornalista chamado Say Marques
achou que ali estava um lugar perfeito para a instalação de uma feira
de livros. Sua idéia não surgira do nada. Ele se inspirara em algo do
gênero que havia visto na Cinelândia, no Rio de Janeiro. E assim, no
dia 16 de novembro de 1954 os gaúchos tiveram um motivo a mais para
badalar na Praça da Alfândega: a inauguração da Feira do Livro de Porto
Alegre, que se resumia a 14 barracas de madeira em torno do monumento
ao general Osório.
Um começo modesto, diríamos hoje, já acostumados aos mega-eventos
que a indústria editorial tem promovido. No entanto não se pode dizer o
mesmo do objetivo daquela feira, que se iniciava com uma conceituação
ambiciosa: “Se o povo não vem à livraria, vamos levar a livraria ao
povo”. Tal slogan encarava um problema que perdura no país através dos
tempos, escancarando uma realidade irrefutável: nossas livrarias são
para poucos. Se não chegamos a ter, em todo o nosso imenso território,
menos pontos de venda de livros do que a cidade de Buenos Aires, como
se costuma alardear, ainda não dá para nos ufanarmos dos nossos números
já alcançados. Segundo a revista Panorama Editorial (no. 35/
outubro 2007), da Câmara Brasileira do Livro, um diagnóstico do setor
livreiro desenvolvido pela ANL aponta a existência de 2.600 livrarias
no Brasil. A maior parte (53%) está concentrada na região Sudeste e
distribuída da seguinte maneira: 48% em São Paulo; 24% no Rio de
Janeiro; 25% em Minas Gerais; e 3% no Espírito Santo. Os outros 47%
estão assim divididos: 15% na região Sul; Nordeste, 20%; Norte, 5%.
Centro-Oeste, 4%; Distrito Federal, 3%.
O quadro exposto acima não é nada favorável em relação ao acesso da
população aos livros. E isto mais de meio século depois do brado
porto-alegrense, que vale a pena ler de novo: “Se o povo não vem à
livraria, vamos levar a livraria ao povo”. As estatísticas comprovam
que o apelo publicitário dos livreiros, em 1955, continua atualíssimo.
De acordo com recomendações da ONU (Organização das Nações Unidas), o
ideal é haver uma livraria para cada 10 mil habitantes. “Estamos muito
longe dessa realidade”, diz Vítor Tavares, presidente da ANL, a
Associação Nacional de Livrarias, à já citada Panorama Editorial.
Ele dá como exemplo o estado de São Paulo, onde há apenas 676
livrarias – o maior número do país – para uma população de mais de 40
milhões de habitantes.
Tudo isso reforça a necessidade de mais e mais feiras de livros
Brasil adentro e afora, a exemplo de Porto Alegre, que entrou para a
história menos pelo pioneirismo da sua iniciativa e mais pelas
inovações que iria introduzir em relação às incipientes, precárias e
esparsas realizações do gênero em outras praças. Já na sua segunda
edição (1955), a Feira do Livro de Porto Alegre apresentava como
novidade as sessões de autógrafos. Na terceira, passou a vender coleções
pelo sistema de crediário. Nos anos 70, introduziu uma programação
cultural que lhe deu mais abrangência. Na década de 1980, abriu espaços
para livros usados. A partir de 1990 veio a ter a adesão de grandes
patrocinadores. Cresceu e apareceu no calendário de eventos anuais da
cidade, consagrando-se não só por se tratar de uma das mais antigas e
maiores feiras de livros do país, cujo interesse se tornou nacional,
mas por se manter fiel à velha praça onde foi inaugurada, com todo o
seu charme histórico e colorido popular. E porque há registros de sua
origem, continuidade e desenvolvimento, até em livro (do escritor gaúcho
Walter Galvani), não deixa de ser um marco dos empreendimentos
congêneres bem sucedidos da indústria e comércio livreiros. E, de
alguma maneira, serviu (e serve) de modelo às de cidades que as
realizam em praças públicas, em vez dos fechados e sombrios centros de
convenções, como as de Ribeirão Preto (SP) e Caxias do Sul (RS), esta
já entrando na sua 24ª. edição, significando isto que ela existe desde
1984.
Lobato ia gostar de ver isso,
ou diria que ainda é pouco?
No eclético elenco de suas criações figura um slogan indelével: “Um
país se faz com homens e livros”. Hoje há quem conteste isso. Pouco
adiantará produzir-se livros e livros à mão cheia num país ágrafo.
Melhor cuidar antes da formação de leitores. Seria, então, a porção
editor de Monteiro Lobato que havia pesado mais, quando ele investiu em
tal campanha?
Polêmicas à parte, o certo é que as idéias que mais o consumiram não
foram em vão. A começar pela que ficou conhecida como “O escândalo do
petróleo”. Hoje pareceria até inacreditável que um brasileiro tenha ido
parar na cadeia por querer provar de todos os modos a existência de
petróleo em território nacional, quando todo o aparelho do Estado, em
conluio com uma empresa norte-americana chamada Standard Oil, fazia de
tudo para negá-la. Por ironia do destino, o primeiro poço de petróleo
aberto no Brasil surgiu no Lobato, na periferia de Salvador, Bahia, no
ano de 1939. Mas era agora, ao saber que o país se prepara para entrar
no cartel dos 10 maiores produtores de petróleo do mundo, que o
polemista José Bento Monteiro Lobato (1882 – 1948) poderia se sentir um
visionário. E também ao constatar que avançamos a passos de gigantes
na indústria editorial, que é hoje a mais poderosa de toda a América
Latina. E é essa indústria a maior incentivadora das feiras de livros,
que funcionam como canais de escoamento de uma produção que nem sempre
está ao alcance dos leitores nos limitados espaços das livrarias.
À medida em que cresceram e se multiplicaram, as feiras passaram a
ter outras designações. Foi então que surgiram as bienais, a começar
pela de São Paulo, inaugurada em 1968. A do Rio de Janeiro seria
instalada pela primeira vez em 1981. O próprio crescimento do mercado
empurrou-as para o gigantismo e para a participação internacional:
países homenageados, número cada vez maior de escritores estrangeiros
convidados etc, tudo isso inspirado no Salão do Livro de Paris, que
homenageou o Brasil em 1987 e 1998 – a idéia dos cafés literários veio
de lá -, e na Feira de Frankfurt, que o fez em 1994.
Por sua vez, as bienais do Rio e São Paulo inspiraram outras, de
Campo Grande, MS, a Fortaleza, CE, de Goiânia, GO, a Maceió, AL. No
rodízio geral, somam com as feiras anuais, que chegaram à marca de 150,
informa a Câmara Brasileira do Livro. Segundo a CBL, as menores
congregam em média 100 mil pessoas. O recorde de público ficaria com a
Bienal de São Paulo de 2006: 811 mil participantes. A do Rio de Janeiro
também costuma fazer bonito na passarela, pois há muito tempo vem
ultrapassando os 600 mil visitantes, conforme o Sindicato Nacional dos
Editores de Livros tem divulgado.
Cronologicamente, o Rio Grande do Sul volta a merecer um capítulo
especial, pelas também bienais Jornadas Literárias Nacionais de Passo
Fundo, criadas em 1981, com 750 participantes, que atualmente chegam a
cerca de 20 mil, no espaço de maior movimentação cultural do país,
aliando a formação de leitores à venda de livros, num feirão que começa
dentro da UPF – a universidade que idealizou o evento e, em associação
com a prefeitura local, o organiza, promove e divulga -, às mais de
dez livrarias da cidade, cuja existência se deve às Jornadas Literárias,
promotoras ainda de um dos maiores prêmios brasileiros (100 mil
reais), que tem o nome da empresa que o patrocina, Zaffari & Bourbon.
Tudo sob o comando da dinâmica professora Tânia Rösing. Resultado: uma
outrora obscura cidade interiorana de 170 mil habitantes, para lá da
serra gaúcha, foi guindada ao título de Capital Nacional da Literatura,
sancionado pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva,
através da lei federal no. 11 264, de 02/01/06. É preciso dizer mais?
Na seqüência, vem o caso da Flip (Festa Literária Internacional de
Paraty), cuja repercussão supera as das iniciativas similares européias
(são mais de mil), que lhe serviram de modelo. Pelo menos essa é a
avaliação de sua idealizadora, a inglesa Liz Calder. Por sua vez a Flip
fez moda nos trópicos e inspirou os encontros de Ouro Preto, MG, e,
mais visivelmente, a Fliporto (Festa Literária Internacional de Porto
de Galinhas, Pernambuco), e Brasil vai. O ano de 2007 acrescentou um
ponto a essa história, com a entrada em cena da Feira do Livro de São
Luís, organizada pela Fundação Municipal de Cultura e o Sesc Maranhão.
Tantas feiras, bienais, salões, jornadas e festas de livros seriam
inimagináveis ao tempo de Monteiro Lobato. Mas não é necessário ser um
crítico tão radical quanto ele foi para dizer que ainda falta muito
para chegarmos a um nível ideal. Basta fazer a conta: 150 feiras por
ano, num país de mais de cinco mil municípios. Entre os não-feirantes
de livros inclui-se a próspera Feira de Santana. “Mundo Novo adeus…”
Vida de viajante
Novo mesmo é isto: nunca dantes se viu tanto escritor rodando de
feira em feira como nos últimos tempos. Nesse ir-e-vir cruzam-se nomes
em princípio de rodagem com outros já bem quilometrados, entre eles um
pop-star oitentão, o popularíssimo Ariano Suassuna, aquele cristão que,
ao contrário do seu personagem João Grilo, não nasceu antes do dia.
Outro da mesma faixa etária que bomba nos auditórios é Carlos Heitor
Cony, tão bom de prosa escrita quanto falada. E neste exato momento
deve haver uma platéia em algum lugar se divertindo muito numa palestra
de Nélida Piñon, de Moacyr Scliar, de Ignácio de Loyola Brandão, de
Ferreira Gullar… só para lembrar alguns dos mais falantes.
O autor destas linhas faz parte do time dos que vivem de escrever e
falar sobre isso. E atesta que houve um progresso considerável quanto à
exposição pública de escritores nas mais variadas regiões do país.
Tudo obedece a uma estrutura com apoio logístico, quanto a transportes,
hospedagem, alimentação, e algum respaldo econômico. Esse tempo de
estrada, porém, vem de longe. A bem dizer, começou em 1975 com um debate
no Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro, organizado pelo contista
João Antônio e mediado pelo filólogo Antônio Houaiss. Três dos
componentes da mesa passaram a ser convidados para falar em tudo quanto
era canto, às vezes juntos, em outras separados. Foram eles o já
citado Loyola (conferir no livro dele, Veia bailarina, de
1997), o próprio João Antônio e o locutor que vos escreve. Um dia foi
Campos, outro Bauru, depois Assis, Marília, Campinas, Americana,
Araraquara. Parecíamos uma trupe mambembe, a ciganear de cidade em
cidade, e logo cruzando com outros escritores, de diferentes gerações e
tendências, em rodoviárias, estações de trens, aeroportos, hotéis. Mas
também dormíamos em casa de professor ou em alojamento de estudante,
sempre correndo o risco de sermos proibidos de falar, como aconteceu na
Universidade Federal de Juiz de Fora. (Na semana seguinte, a mesma
proibição recairia sobre Darcy Ribeiro e Ferreira Gullar). Tudo parecia
uma aventura, nem sempre confortável, mas com seus encantos.
Um deles era a descoberta dos nossos pares. Márcio Souza em Manaus;
Moacyr Scliar e Tânia Faillace em Porto Alegre; João Ubaldo Ribeiro em
Salvador; Benedicto Monteiro em Belém do Pará; Newton Navarro em
Natal; Domingos Pellegrini Júnior em Londrina; Lygia Fagundes Telles,
Edla Van Steen, Ivan Ângelo, Moacir Amâncio, Wladir Nader, Hamilton
Trevisan, Márcia Denser e Raduan Nassar em São Paulo; Oswaldo França
Júnior, Wander Piroli, Sérgio Sant’Anna e Roberto Drummond em Belo
Horizonte; Luiz Vilela em Ituiutaba, onde no ano de 1976 houve uma
feira de livros, à qual cheguei num ônibus que partira de São Paulo, e
rodou por mais de mil quilômetros, quase nada, para quem havia estado
na capital do estado do Amazonas poucos dias antes. Vida que segue:
Curitiba, Criciúma, Itajaí, São José do Rio Preto, Mossoró, Fortaleza,
Recife, Manaus e Belém outra vez, Ipatinga, Teixeira de Freitas,
Jequié, Alagoinhas… de pequeno em pequeno público, acaba-se fazendo um publico, eis a esperança de quem vive de escrever e falar sobre isso.
Às vezes, de onde se espera muito não acontece nada, ou quase nada
(os tais mega-eventos, por exemplo, de Rio e São Paulo), podendo-se
comprovar também o contrário, como no modesto Salão do Livro do Piauí,
realizado num centro de convenções de Teresina, onde um auditório com
800 lugares fica completamente lotado. E daí para mais, embora de forma
previsível, em Paraty e Passo Fundo. Pois acredite: no mapa dos
eventos literários nacionais, quem surpreende mesmo é Teresina, que
acaba nos convencendo que quanto menor é a feira de livro, melhor.
No mais, é a solidão de um país grande.