Clique para ver maior em uma nova aba: Navegações, Porto Alegre, v. 2, n. 2, p. 163-166, jul./dez. 2009.
entrevista_revista_navegacoesEntrevista a Janir Holanda
Revista Para Saber e Conhecer Nossa Língua.
Clique para ver maior em uma nova aba: Entrevista a Janir Holanda.
entrevista_janir_holandaEntrevista a Joba Tridente
Correio Braziliense – Segundo Caderno, 8 de agosto de 1976.
Joba Tridente
Nessa Terra
ITABUNA, 28/7/76, 10 horas da manhã, Hospedaria da Ceplac:
– Você conhece este livro, NUMA TERRA ESTRANHA?
– Deixa eu ver…; não é este aqui?
– Ah, não!
– Este eu também tenho, é o ESSA TERRA de Antônio Torres. Eu comprei e estou lendo; quero botar em pauta quando eu voltar a Brasília, agora este aqui é o livro de James Baldwin…
– Acho que vi ou li, não sei, em inglês!
– Eu gosto dos livros de Antônio Torres, se bem que este, ESSA TERRA, é o primeiro livro dele que leio. Os títulos dos outros dois livros, dele, são incríveis. Ainda não pintou de eu ler não, mas vai pintar.
– Qual são os outros livros dele?
– O primeiro foi UM CÃO UIVANDO PARA A LUA e o segundo OS HOMENS DOS PÉS REDONDOS…
– Se você tivesse chegado ontem, dava tempo de você fazer uma entrevista com ele…
– Ele estava por aqui?
– Ele veio fazer o lançamento do livro; mas acho que já foi embora.
– Espera um pouquinho…; deixa eu ligar pra um amigo…; é ele já
foi embora, está em Salvador, vai fazer o lançamento do livro lá, na
sexta-feira…; acho que vai dar tempo da gente falar com ele…
N’ESSA TERRA HÁ TERRA E N’ESSA HÁ OS HOMENS DOS PÉS REDONDOS
SALVADOR, 31/7/76, 10 horas, da manhã, Livraria Civilização Brasileira:
– Olha, eu não sei onde ele está hospedado não…; e lançamento do livro dele, foi ontem à noite, aqui…; deixa eu ver com um pessoal aqui…; olha, me parece que ele está na Pousada Colonial…
– Tem telefone lá?
– Alô… Antônio Torres?… Tem um amigo meu aqui, de Brasília, jornalista do CORREIO BRASILIENSE, que estava a fim de fazer uma entrevista…; espera um pouquinho que você fala com ele…
– Alô, Torres?… Você está bem?… A gente podia bater um papo…; a que horas?… OK, estamos indo…
SALVADOR, 31/7/76, 11:30 da manhã, Pousada Colonial
– Podemos começar?
– Olha, vai ser um bate-papo bem informal…
– O Antônio Torres, como está sendo a aceitação do ESSA TERRA pelo público – leitor?
– Muito boa. O livro está acontecendo de uma forma tão incrível que as vezes sinto até medo…
– Você sabe que sempre vi os seus livros, fiquei com uma vontade incrível de ler, mas nunca pintou…; e eu sou realmente apaixonado pelos títulos deles…
– Eles estão com edições esgotadas…; mas devem ser relançados brevemente. Eu ainda estou estudando as possibilidades do relançamento com as editoras que estão interessadas.
– Tem muita editora interessada?
– Tem!
– Agora né!!!!
– Eu acho que OS HOMENS DOS PÉS REDONDOS, você ainda encontra.
– E o leitor como está agindo e reagindo ante ao ESSA TERRA e ao Antônio Torres?
– Bom eu acho que o livro tem um grande poder de penetração, por se tratar de um assunto, que de certa forma é uma realidade de cada um. O leitor está conseguindo se encontrar no contexto do livro e eu acho isto muito favorável. O livro é de uma linguagem de fácil compreensão e interação do público-leitor…; ele se liga muito mais no livro, quando deixa o autor de lado.
– Você fez uma palestra para os alunos da Universidade Santa Cruz, de Itabuna, não fez? Como é que foi a reação do pessoal?
– Fiz sim…; aliás este é um trabalho que a gente já começou a desenvolver há algum tempo…
– … Ele deve ser a terceira pessoa?
– Terceira pessoa?
– É o seguinte, a gente estava conversando com o Telmo Padilha, e falamos da possibilidade de se trazer o pessoal do Bum-Literário para fazer palestras em Itabuna; nós sabíamos que os escritores que estavam fazendo estas palestras pelas universidades eram três: Loyola, João Antonio…; mas o terceiro a gente não sabia quem era…; esta terceira pessoa é você?
– É, sou eu. Este trabalho que a gente está desenvolvendo é muito bom. A gente quebra aquele “tabu” que existia com relação ao escritor, que sempre foi colocado num pedestal…; num ponto inatingível e se coloca frente-a-frente com o leitor, para dialogar com ele a problemática abordada no livro. É como escrever outro livro, sabe? A gente dialoga com o pessoal, fala do processo de elaboração do livro…; nós somos três escritores de estilos diferentes; abordamos literalmente problemas sociais…; mas cada um com um ângulo de visão, então o englobamento dos trabalhos faz as obras mais compreensíveis. A importância maior, mesmo, eu acho que está no fato de podermos levar o romance, a obra até o público-leitor e dialogar com ele sobre o trabalho da gente…
– Quanto tempo você levou para escrever ESSA TERRA?
– Dois anos…; Terminei em julho de 75
– E foi fácil para editar?
– O editor foi ao Rio buscar os originais, em 24 horas já havia lido e relido e me disse que faria uma tiragem de 30.000 exemplares…
– É realmente o livro está muito bem elaborado, a diagramação, a programação visual, as ilustrações do Elifas Andreato estão sensacionais…; você que chamou o Elifas para ilustrar?
– Não, foi o próprio editor. Eu só vim conhecê-lo no lançamento do livro. O Elifas disse que este era um dos melhores livros que já havia lido. Leu umas dez vezes. Viajou para varias cidades do nordeste fotografando os lugares por onde ele passava, procurando se integrar cada vez mais no contexto do livro…
– Acho que o Elifas está muito em evidência…; acho que ele devia dar um tempo…; a gente vê ele em tudo quanto é lugar…; é capa de disco, revista, jornal, livro… acho que ele vai acabar cansando e vai ser uma pena porque ele é um cara incrível…
– É, eu no principio, cheguei a ficar com medo de que não conseguisse passar a realidade do meu romance…; já o conhecia do livro do Murilo Rubião e do Roberto Drummond, e o meu é de um temática completamente diferente…; mas me enganei ele conseguiu para o leitor a essência de cada personagem, numa sequência maior que a do livro; ele deu uma nova estrutura. Eu gostei muito…
– … A Ligia Chiappini, a prefaciadora, eu também não conhecia.
– O Torres, você escreve a muito tempo?
– Há muito tempo, desde guri. Aos 17 anos comecei a trabalhar como redator em jornal, aqui mesmo na Bahia. Aos 21 comecei escrever ficção.
– Você sempre escreveu romances…; quer dizer, você também escreve contos, poemas…
– Eu escrevo mais é romance. Eu comecei escrevendo só contos, contos, contos, até que acabei escrevendo romance.
– E este seu trabalho anterior, os contos, há possibilidade de editá-los?
– Não! Eu acho impossível, estão todos sem terminar, não tem técnica nenhuma de escrita…; eu acho que não…; não vejo esta possibilidade…
– Ué, você poderia fazer uma edição de Contos Inacabados!
– HA! HA! HA! HA! HA! HA! (risos).
– Eles realmente são muito fracos, sem estrutura, cheios de defeitos…; aproveitável eu acho que somente o “Na Ilha”, se passa em Ilha Bela, mas mesmo este vejo dificuldade de recuperação. Houve uma grande evolução desde os meus primeiros escritos, até o ESSA TERRA…; e UM CÃO UIVANDO PARA A LUA, está cheio de defeitos, mas eu jamais conseguiria reescrevê-lo. Já se passou muito tempo.
– Mas a crítica sempre aceitou muito bem os teus livros!
– É, realmente eu sempre fui muito bem aceito pela crítica, mas sabe o que acontece; você escreve, escreve e vai desenvolvendo uma técnica de escrita e então você percebe os erros cometidos anteriormente…
– Você acha que antes de ESSA TERRA você era um autor conhecido pela crítica ou pelo seus livros?
– Pela crítica evidentemente. Se bem que os livros estão esgotados, mas há o problema de distribuição…; e naquela época a gente não fazia palestras, e as editoras só distribuíam os livros nos grandes centros. Hoje, está havendo uma melhor distribuição e uma melhor elaboração na apresentação do livro. A Editora Ática, está fazendo um trabalho incrível, distribuindo o livro no Brasil todo e a um preço bem acessível…
– O ESSA TERRA, tem alguma coisa a ver com os outros dois livros?
– Tem! Mas tem mais a ver com o primeiro…; é UM CÃO UIVANDO PARA A LUA às avessas.
– Com a estrondosa aceitação do ESSA TERRA, mudou muita coisa, em termos editoriais, para você?
– Ah, mudou muito. Agora, já uma série de editores a fim de publicar trabalhos meus, inclusive interessadas na reedição dos anteriores.
– Torres, você aconteceu no Bum-Literário?
– Esse negócio de Bum-Literário, é criação do Pasquim!
– Pode ser, mas eu acho que realmente houve um Bum-Literário e foi muito importante esta explosão. Ela trouxe uma “pá” de gente nova e ainda muita gente já conhecida mas inéditas…
– Eu concordo contigo, houve uma conscientização maior em termos literários. Houve uma maior mudança temática e formal. A gente, realmente, com este Bum-Literário, pode mostrar ao público-leitor um trabalho novo, criativo, que supera qualquer “enlatado”…
– … Eu cheguei a conclusão, que a gente está fazendo uma literatura, melhor que muitos gringos por ai.
– É o trabalho literário dos novos está muito bom. Se bem que novo-novo eles não são, inéditos sim. Os que estão acontecendo agora, muitos deles estavam nas gavetas ou prateleiras…
– Eu dou muita força sabe, o leitor brasileiro ainda não acredita no
escritor brasileiro, ou melhor ele não acredita no brasileiro em
qualquer que seja o trabalho que ele se propõe a fazer, em qualquer
campo artístico. Agora, quando um brasileiro acontece lá fora, ai é que
ele vira BRASILEIRO, é incrível meu irmão, mas a verdade é esta e é
por isso que eu dou a maior força a este Bum, sabe? Ele está provando
que temos condições de fazer um bom trabalho e de alto nível em
qualquer área…
SALVADOR, 31/7/76, 13:30, da tarde, Pousada Colonial:
– O Antônio Torres, você tem alguma outra profissão, além de escritor?
– Tenho, sou publicitário!
– Publicitário?
– É sou Redator de Publicidade da Standard…; a gente tem que sobreviver não é?
– Você escreve para alguma revista?
– Sou correspondente da Escrita e Versus.
– Você pode adiantar alguma cosia do seu próximo romance?
– Não! Eu apenas fiz uma pauta, antes de sair de férias, e deixei na gaveta da escrivaninha, só quando eu voltar é que vou vê-la, estudá-la e me preparar pro próximo livro.
– Você pretende fazer o lançamento do ESSA TERRA em Brasília?
– Não vai ser possível, devido ao tempo. Aqui na Bahia, eu já fiz o lançamento, aproveitando minha férias…
Entrevista a Patrícia Moreira
A Tarde – Caderno 2, Salvador, 01/05/1997
Patrícia Moreira
Um autor, um cachorro e um lobo
Aos 56 anos, o escritor e publicitário baiano
Antônio Torres, que fez parte do seleto grupo de autores brasileiros
traduzidos no exterior e cuja obra é alvo de inúmeras teses acadêmicas
em universidades brasileiras e européias, está em Salvador, onde lança,
amanha O cachorro e o lobo. Na sexta-feira, ele estará no
projeto “Com a Palavra, o Escritor” (às16h30min, na Biblioteca central
da UFBA). Oitavo romance da carreira e uma continuação de sua obra mais
consagrada, Essa Terra, o novo livro é segundo o autor, “uma
tentativa de enternecer o mundo”. Entre um lançamento e outro, Torres
concedeu entrevista exclusiva ao jornal A Tarde.
PM – Você diz que O Cachorro e o Lobo é uma viagem de volta. Por que esse retorno ao ambiente do Junco?
AT – É um pouco uma espécie de fuga dessa realidade tão pesada, da violência urbana do Rio de Janeiro e de São Paulo. Antes de começar O Cachorro e o lobo, estava escrevendo um romance que se passava entre o Rio e São Paulo e ele acabou desandando. Passei a não mais suportar o peso dessa realidade. Daí surgiu a idéia da volta ao tema de Essa Terra e sentir prazer em fazer isso. Foi o livro mais prazeroso da minha carreira. É terno, leve, uma espécie de retorno à terra que me pariu. O que espero é que o leitor sinta esse mesmo prazer que tive ao escrever o livro, no fundo uma homenagem aos velhos contadores de historia que a pós-modernidade acabou.
PM – Entre Essa Terra e O Cachorro e o lobo o que mudou?
AT – Essa Terra Foi escrito num período muito pesado, em plena ditadura e o lançamento em São Paulo foi no auditório Waldimir Herzog, do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. Em função disso, as pessoas começaram a ver o livro como uma metáfora da tortura e da violência (o jornalista Wladimir Herzog foi encontrado enforcado na prisão e a ditadura tentou passar a versão de que ele tinha se suicidado. Em Essa Terra o personagem principal é um baiano do Junco que parte para São Paulo, para tentar a sorte, volta para a Bahia 20 anos mais tarde, não suporta a cobrança do lugar por não ter vencido na vida e acaba se suicidando). Embora a linguagem seja bem poética, o livro é bastante trágico. Em O Cachorro e o Lobo, Totonhim é o irmão do outro personagem que também vai para São Paulo, onde fica 20 anos sem dar notícias, período em que convive com um fantasma na cabeça, achando que se retornar ao Junco vai repetir o gesto do irmão. Um dia recebe uma carta da irmã, dizendo que o pai vai completar 80 anos. Ele então decide retornar e, na convivência com o lugar, vai revendo sua própria história e recuperando a memória local. Quando escrevi Essa Terra, a jornalista Ana Arruda Callado, que é minha amiga, me disse que eu parecia estar querendo enlouquecer o mundo. Se fosse para fazer um paralelo, O Cachorro e o Lobo parece que quer enternecer o mundo, como se estivéssemos cansados dessa tragédia.
PM – Até que ponto você, enquanto autor experimenta o envolvimento com seus personagens?
AT – Uma certa vez, um estudando de Letras me disse uma coisa fantástica: que eu escrevia uma espécie de autobiografia abstrata. Meus livros não são autobiográficos, se baseiam nas minhas referências, mas tudo acaba virando ficção. Sou ficcionista, tudo passa pela estratégia do romancista, o cachorro e o Lobo foi escrito em primeira pessoa, uma forma de me colar ao personagem como se fôssemos uma mesma coisa. Tento quebrar o distanciamento entre o autor e personagem, o que também, permite ao leitor se colar à história.
PM – Que avaliação você faz do mercado editorial nacional atualmente?
AT – A literatura, de alguma maneira, está perdendo espaço no mundo. Há uma certa tendência a se fazer produtos – biografias encomendadas, projetos- que se vendam em larga escala. Mas ainda acho que há espaço para tudo. Veja, por exemplo, o Manoel de Barros, que fez um livro de poesia e ganhou o Prêmio Nestlé. Foi uma surpresa pra todo mundo. Outro caso é a Record (editora), que tem como tradição editar best ssellers, mas está criando uma nova griffe com autores nacionais, que está dando certo. A questão é como se faz e como se promove.
PM – Você trabalha como publicitário e também escreve livros. Como consegue conciliar as duas atividades? Quanto tempo você levou parra escrever O Cachorro e o Lobo?
AT – Tem gente que faz piada e diz que quem escreveu o livro foi minha mulher, Sônia. Na verdade, levei quatro anos para concluir a obra utilizando férias, feriados, alguns carnavais, Semanas Santas. Nesse período foram vários avanços, recuos, paradas. Em 1995, estava na Itália, lançando Essa Terra e durante uma discussão, na Universidade de Roma, comecei a fazer a viagem de volta. Se em 95 ainda se discutia um romance de 1976, eu estava no caminho certo. Durante a discussão, foi dito que talvez o que esse velho mundo precisasse era de uma velha história bem contada. O Cachorro e o Lobo é isso.
Entrevista a Diego Damasceno
Salvador, domingo 19/09/2010
Diego Damasceno
“Não sou sambista de uma nota só”
Pode ser o tempo, pode ser a distância. A verdade é que, ao viajar do Rio de Janeiro, onde mora, para a cidade de Sátiro Dias, sua terra natal, Antônio Torres sentiu-se como alguns de seus personagens: fora do lugar. “Já não há mais aquela sociabilidade dos fins de tarde, a rua fica deserta, todo mundo em casa, pendurado na televisão”, disse. Situada a cerca de 250 km de Salvador, Sátiro Dias também não é um nome familiar para Torres. Quando ele nasceu, em 13 de setembro de 1940, o local se chamava Junco, e foi assim que passou para suas histórias. Um exemplo é Essa Terra, romance que mostra o retorno de um retirante e seu livro mais conhecido. Foi traduzido em sete países e acaba de entrar na lista do vestibular da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). O sucesso também trouxe a pecha de escritor regionalista. “Faz sentido até certo ponto”, diz, lembrando livros como O nobre seqüestrador, de inspiração histórica, e sua estréia na literatura, Um cão uivando para a lua, um relato urbano. Autor de 11 romances, Torres compareceu ao seminário Narrativas e viagens do Junco ao mundo: 70 anos Antonio Torres, na Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs). Lá, o autor conversor com Muito.
Aos 70, novas histórias continuam aparecendo?
Sempre, sempre. Eu vivo de escrever falar sobre isso. Vivo viajando e falando disso. No caminho dessas viagens, você vai sempre se municiando de novas paisagens, novos cenários, novo imaginário, novos personagens, novas histórias. Acho que elas sempre aparecem desde a que agente esteja vivo.
Então pretende continuar escrevendo-as? Trabalha em alguma nova?
Eu dei um tempo. Entre 2006 e 2007, eu publiquei três livros. Pelo fundo da agulha, um livro infantil muito bonitinho – bonito que eu digo é graficamente; Minu, o gato azul; e um livro de crônicas, perfis e memórias chamado Sobre pessoas. Então foram três livros em um ano. Aí, decidi dar um tempo para mim mesmo, até para “reassuntar” a minha própria literatura.
O senhor acredita que o tempo mudou seus motivos para escrever?
Acho que sim, porque de alguma maneira você faz parte do tempo. Você percebe o tempo, percebe o que está mudando. Talvez essa minha parada estratégica seja para repensar minha própria literatura. Minha editora me perguntou: quando você vai fazer um novo romance? E eu falei: eu estou tentando colocar os pés no nosso tempo. Nesse mundo. E aí ela falou assim: não ponha os dois, não. Basta um (risos).
O que acha de ser chamado de escritor regionalista?
O que leva a isso é o meu título mais forte até hoje, que é o Essa terra (1976), que gerou uma trilogia com O cachorro e o lobo (1996) e com o Pelo fundo da agulha (2006). Também tenho mais dois romances dentro dessa espécie de polígono das secas literário. O Carta ao bispo (1979) e o Adeus, velho (1981) . Mas eu não sou um sambista de uma nota só, quer dizer, luto para não ser um sambista de uma nota só. Passeio também por ambientes urbanos, em livros como Um cão uivando para a lua (1972) e Um táxi para Viena d’Áustria (1991), só para dar dois exemplos, e por romances que fazem uma espécie de interface da história, como no caso de Meu querido canibal (2000) e O nobre seqüestrador (2003). Logo, essa impressão de que eu sou um escritor regionalista faz sentido até um certo ponto. Quem leu só o Essa terra ou a trilogia pode ficar com essa impressão. Mas se buscar mais do meu trabalho verá que não é bem assim.
A que atribui o sucesso de Essa terra?
Para mim, é um mistério, porque é um romance que tinha tudo para ser um fracasso. É a história da viagem de volta de um personagem que acaba se matando. Não entendo como é que essa história de fracasso virou sucesso. Eu não saberia explicar. Um crítico uma vez me disse que era pelo tom emocional do livro. E pelo seu lado poético também. Eu não sei, a crítica tem dito coisas assim, tem aventado essas possibilidades. Ou pela carga de realidade que está por trás dele. Só que é um realismo brutal, e eu sinceramente fiquei surpreso, até hoje eu sou.
Porque a forma do romance o atrai?
No sertão, quando eu era menino, se falava do “rimance”, o romance em verso, que vem a ser o cordel. Daí, “rimance”. Isso causou um encanto, a palavra desceu tão redonda que eu quis ser romancista. Isso é uma explicação, mas não é toda. Você pode ter uma sensibilidade mais afinada com uma história curta ou já vir com a mente adequada para o poema. Meu primeiro romance, a idéia era escrever um conto. Não sei como se processa dentro de nós, talvez cada indivíduo tenha já dentro de si uma inspiração qualquer para um gênero. Não é comum grandes romancistas serem grandes contistas. Ou o contrário. Claro, Machado de Assis joga bem nos dois. Mas não dá para comparar o Jorge Amado romancista com o contista, o Gracíliano romancista… Talvez eu escreva romance por incapacidade de escrever um poema ou uma música. Tocar um computador não faz o mesmo efeito de um piano. Mas busco no computador alguma sonoridade ao ouvido do leitor.
O senhor tem criticado o escritor-celebridade. A Flip (Festa Literária internacional de Paraty) é um evento criticado por supostamente estimular esse papel. Como foi sua experiência na feira, em 2007?
Acho que eu não criticaria mais… Não mantenho essa visão da sua pergunta. Porque acho que estamos em um momento muito delicado para a literatura. Os espaços nos jornais estão diminuindo, a competitividade estrangeira é muito forte, a sedução dos produtos que nos trazem o imaginário global é avassaladora, e eu acho que o escritor brasileiro tem que encontrar o seu espaço nesse mundo. E aí, as feiras, as festas literárias, têm sido um bom palco para o escritor. Minha experiência como Flip foi a melhor possível. O Público que vai para lá vai à procura dos autores. E eu fiquei realmente impressionado, que eles vão para comprar seus livros, não vão só para ouvir você. Não é só o aspecto da badalação. Ao contrário. Nesse caso, a badalação em torno da Flip beneficia os autores convidados porque os leva a serem mais lidos.
Sem crítica, o que a literatura perde?
Perdemos os nossos interlocutores. Nossos mediadores. Nossos avaliadores. E isso nos leva a uma tremenda solidão. Não há literatura que cresça, que possa crescer sem a contrapartida da critica, eu sou um exemplo disso. Devo muito de meu desenvolvimento literário a críticos como Hélio Pólvora, Carlos Nelson Coutinho, Marcos Santamita, que escreveram elogiando ou mesmo apontando defeitos dos meus livros de forma muito objetiva, o que me levou a pensar meu próprio caminho de escritor. Eu fui muito ajudado por esses críticos, imagine uma nova geração toda que está surgindo aí e que vai pouco a pouco perdendo esse dialogo como a crítica. Espero que voltemos ter espaço para a crítica.
Como nasceu sua candidatura à ABL?
Foi o Aleiton [Fonseca, poeta e professor universitário]. Ele foi ao Rio, teve uma longa conversa comigo, dizendo que era uma vaga da Bahia, que eu tinha que concorrer. Só que eu entrei atrasado. E me disseram isso de cara. Mas acharam muito boa minha candidatura. Não me arrependo, Relaxei também quando vi que não ia ganhar.
Voltaria a se candidatar?
Isso é para o futuro. É um assunto delicado, sobre o qual a gente não deve falar.
Como foi essa história de reescrever 33 vezes o mesmo capítulo?
Foi com Um Táxi para Viena d’Áustria. Eu tenho obsessão por reescrever, por isso meus livros demoram tanto. Quando acabei o livro, mandei para a editora, na época a Companhia de Letras, aí o editor [Luiz Schawarcz] me escreveu, disse que gostou do livro e pediu para eu dar uma olhada no capitulo tal. Quando olhei, eu disse: poxa, bendito editor. Aquele capítulo todo em diálogo estava meio cansativo. Aí fiquei reescrevendo, reescrevendo… Levei 33 vezes, e foi aí que começaram a surgir coisas. Bendito editor que me levou a achar o texto. Então, quando um editor disser para você, meu jovem escritor, ”dar uma olhada”, não se zangue.
Em suas idas e vindas, em algum momento sentiu-se desenraizado como alguns de seus personagens?
Sim. Ipatinga, Minas Gerais. Feira de livros em um shopping. Eu entro naquele shopping, fico me perguntando se estou no Brasil ou se estou em Amsterdã. Há um aspecto do nosso mundo hoje, parece que a singularidade desapareceu. Mesmo no Junco, cheguei lá ontem, as moças parece que estão em Ipanema. O jeito de vestir, o comportamento, o estilo. E aí eu me sinto meio estrangeiro nesse tempo, no sentido existencial. Parece que estamos num grande aeroporto o tempo todo. Em Junco, não tem shopping, mas tem a presença da internet, da televisão, já não há mais aquela sociabilidade dos fins de tarde, as pessoas na calçada, a rua fica deserta, a praça deserta, todo mundo em casa pendurado na televisão, Dá um estranhamento.
Entrevista a Mànya Millen
O Globo – Caderno Prosa e Verso, 28 de Agosto de 1999
Mànya Millen
Antônio, o escritor
Autor de “Essa Terra” lança contos sobre sua infância e prepara livro sobre Cunhambebe
A data é meio quebrada – são “só” 27 anos dedicados à literatura, marcados pela estréia com o romance “ Um cão uivando para a lua”, de 1972.Mais o escritor Antônio torres não precisa de números redondos parra comemorar. Além de ver reeditados pela Record, sua casa editorial há tempos, dois de seus principais títulos (“Balada da infância perdida” e “Os homens dos pés redondos”), o baiano nascido há quase 59 anos na pequena cidade de Junco, hoje chamada Sátiro Dias, também lança “meninos, eu conto”, que reúne três contos inéditos (em livro) em torno das suas memórias de infância e juventude.
– Por isso está sendo tratado como um livro infanto-juvenil, mas eu digo que é para jovens dos 12 aos 80 anos – brinca Torres, que escreveu os três na década de 70 e os considera um embrião de “Essa Terra”, seu maior bes-seller, de 1976, traduzido em nove países. – É claro que são lembranças, observações, mas não posso dizer que seja biográfico, porque para mim desaparece essa fronteira entre ficção e realidade.
Ainda menino, autor redigia cartas em troca de doces
“Meninos eu conto” cheira a uma época em que o autor, ainda moleque, carregava o apelido de Tote, hoje transformado em placa que decora a sua biblioteca doméstica. E como o único alfabetizado na região, já mostrava seu pendor para o ofício futuro escrevendo cartas para a população local, como a personagem Dora, vivida por Fernanda Montenegro no filme “Central do Brasil”.
– Nesse tempo recebi os melhores direitos autorais da minha vida. Nos dias de feira eu comia um monte de doces de graça – conta ele.
No momento, Torres está novamente mergulhado no passado. Mas num passo longínquo, que dá conta das primeiras décadas da História do Brasil. De lá, o escritor pinçou aquele que se transformou em personagem dileto e que até o fim do ano vira livro, sob o título “Meu querido canibal”: o índio Cunhambebe, o terrível devorador de portugueses.
A História narrada pela ótica dos perdedores
Paixão pela saga do chefe Supremo dos Tamoios nasceu durante a pesquisa para o livro sobre o Centro Rio
A começar pelo título do livro, Antônio Torres não faz a menor questão de esconder que tomou partido dos índios sim. Particularmente da coragem e da personalidade de Cunhambebe, o primeiro Chefe Supremo da Confederação dos Tamoios, organização que resistiu ferozmente, até onde foi possível, ao domínio dos colonizadores portugueses. “Meu querido canibal” vai contar a História pela ótica de quem perdeu, de terras à própria vida, numa narrativa que equilibra a técnica do romancista aos dados colhidos em pilhas de documentos e livros.
– Em alguns momentos vai parecer um livro de História, em outros um romance e até uma crônica. E, no fundo, o que estarei fazendo é a biografia não-autorizada de Cunhambebe – classifica Torres. – Essa questão do canibalismo mexe com as pessoas, mas Cunhambebe e sua tribo eram guerreiros e não perdoavam os inimigos, devorando-os para ingerir sua coragem. Parece só um ato de selvageria, mas tinha um conceito.
Além da base histórica, Torre diz estar escrevendo sobre Cunhambebe, que viver e morrei em Angra dos Reis, como se fossem grandes amigos, porque ao romancista interessa mais a fabulação. Essa amizade nasceu em 1996, quando o escritor recolhia dados para o livro ”Centro: das nossas desatenções”, da série Cantos do Rio, do Rioarte, editado pela Relume-Dumará. Da pesquisa brotaram histórias e a paixão pela vida de personagens como o canibal que morreu de peste e o pirata francês René Duguay-Trouin, o próximo que Torres quer transformar em livro.
Reedições mostram a continuidade da obra.
O amor pelos personagens está na fonte de outra paixão de Torres: tanto o índio quanto o pirata trazem com eles não só a História do Brasil como especificamente a do Rio de Janeiro, cidade que o baiano adotou em 1974 e onde nasceram seus filhos, Gabriel e Tiago.
– Sempre digo que para mim existem três grandes cidades: Rio, Paris e Nova York. Todas elas são realmente maravilhosas, mas só aqui existe o calçadão que vai do Arpoador ao Leblon – derrete-se ele. – E é a própria cidade que me pede para continuar. Com o sucesso do livro sobre o Centro vi como o carioca ama a história de sua cidade. Comecei a receber muita coisa sobre o assunto. Isso me deu um prazer imenso e me incentivou muito. Agora estou aproveitando todo o material.
Em poucos dias Torres estará indo a Angra dos Reis refazer a trilha de Cunhambebe. E nessa parte do livro vai dar vazão à ficção, criando um personagem que confronte as invasões de ontem e hoje:
O que me impulsiona a botar a minha alma nesse projeto é saber que os índios não tiveram escolha: era a escravidão ou a morte.
Embora possa ficar enumerando horas a fio as qualidades de Cunhambebe e as atrocidades cometidas em solo brasileiro pelos colonizadores. – “Sei que vou perder alguns amigos portugueses, ma a História é História, conforma-se ele- o autor não se esquece de seus outros filhos literários, principalmente as reedições de Balada da infância perdida” e “Os dos pés redondos”. Para ele, elas servem para relembrar aos leitores a construção de uma obra consistente.
A inspiração na História e nos versos de Lorca
– Há toda uma geração que ainda não tomou conhecimento desses livros, esgotados há muito tempo. Trazer esse acervo literário de volta mostra que tudo faz parte de um processo. Meu romance mais recente não nasceu hoje, faz parte de uma parede que estou construindo há tempos.
Ao reler “morrendo de medo”, por exemplo, “Os homens dos pés redondos”, de 1973, uma espécie de alegoria sobre os estertores do salazarismo em Portugal – refletindo a vivência de Torres naquele país durante três anos – ele diz ter ficado gratamente surpreso.
– Afinal é um livro de 1973, eu era jovem, me sentia um bicho solto no mundo – compara o escritor, que em breve terá reeditado seu não menos elogiado “Um táxi para Viena d’Austrália”. – Mais fiquei alegre porque ele se mantém atual.
Atual também, lembra o autor, é a “Balada da infância perdida”, do começo dos anos 80, e que mostra 25 anos de História do Brasil. A obra foi inspirada num poema de Lorca, ”Balada da pracinha”, com as lembranças do verso, Torres escreveu o romance.
As reedições e o lançamento do livro,” Meninos, eu conto” vem somar-se à uma produção contínua, que desde 1996, com o livro sobre o Centro do Rio, vem rendendo louvores ao escritor. Em 1997 ele lançou “O cachorro e o lobo” (já traduzido para o francês) e, em 1998, “O circo no Brasil”, um belíssimo volume de luxo editado pela Funarte.
Para o autor, escrever não é um ato solitário
Entre homenagens como o recebimento do título de chefe des Arts et des Lettres, concedido pelo Governo francês, durante o Salão de Livro de Paris em 1998, e o empréstimo de seu nome à biblioteca pública de sua cidade natal – abrigada na escola primária em que ele rabiscou suas primeiras linhas – Torres vai construindo sua sólida parede literária.
Dessa parede fazem parte temas que lhe são sempre caros, como a memória afetiva, explicitada nos delicados textos de “Meninos, eu conto”. Nas narrativas “escritas mais com o coração do que com a razão”, como diz o próprio autor na apresentação do livro, está a palavra calorosa, quase íntima do leitor, marca dos textos de Torres.
– Ainda hoje, quando eu vou escrever um romance, me vem à memória aquele garoto que redigia cartas lá no interior da Bahia – conta o escritor. – Eu gosto de castas porque são dirigidas a uma pessoa, estou falando com alguém que estaria ali na minha frente, Por isso não acho escrever um ato solitário e isso transparece em meus livros, além de estar como os personagens à minha volta, estou me comunicando com alguém que é muito real.
Entrevista a Carlos Ribeiro
ENTREVISTA – Antônio Torres lança edição comemorativa de 25 anos do romance Essa Terra.
Jornal A Tarde – 11/06/01
Carlos Ribeiro
“SEMPRE ME COLOQUEI AO LADO DOS OPRIMIDOS”
Um dos mais importantes romances da literatura brasileira contemporânea, Essa Terra, de Antônio Torres, ganha reedição comemorativa aos 25 anos, pela Record. O acontecimento trouxe, mais uma vez, o escritor baiano, autor de O Cachorro e o Lobo e de Meu Querido Canibal, para debaixo dos holofotes: somente na X Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, realizada recentemente, ele participou de dois debates e de uma sessão de autógrafos, no estande da Record. A agenda cheia do escritor inclui a participação em um café literário, na Piazza Navona, em Roma, e (ainda este ano) na Feira Internacional do Livro em Guadalajara, no México, onde será lançada a edição em espanhol de Essa Terra, pela Casa de Las Américas. Além disso, já foi proposta, por uma editora espanhola, a publicação de Meu Querido Canibal, para todos os países de língua hispânica.
Na entrevista a seguir, feita no café da livraria Letras e
Expressões, em Ipanema, Torres fala sobre o interesse crescente pela
obra dele, sobre os temas que ela suscita, como a solidão, o suicídio e
o sentimento de não-pertencimento de seus personagens. E afirma: “É
preciso que os autores regionais persigam um texto que esteja inserido
na contemporaneidade e que estejam mais afinados com as questões do
nosso tempo”.
P – Ao que você atribui o interesse crescente por sua obra, além, é claro, de sua evidente qualidade literária?
R – A um conjunto de fatores: primeiro, da minha inserção no quadro internacional. Os meus livros estão sendo editados em muitos países, têm sido temas de teses em várias universidades, na Itália, na Alemanha, em Portugal. Tenho recebido convites para vários congressos. Deve-se considerar, também, a minha passagem para a editora Record, num momento em que ela deixava de ser um contêiner de best-sellers estrangeiros, para tornar-se uma grife de autores nacionais, com a entrada de Luciana Villas-Boas.
P – A Record está reeditando seus livros anteriores. Isto se deve ao sucesso alcançado por o Cachorro e o Lobo?
R – Consegui, com a edição de O Cachorro e o Lobo, uma unanimidade da crítica, em 1997. Ele ficou nas listas de melhores e ganhou o prêmio hors-concours de romance da União Brasileira de Escritores, do Rio de Janeiro. No ano passado, foi publicado na França com uma excelente repercussão, não só da crítica francesa, como da belga e da suíça. Daí, a editora fez um programa de novas edições: relançou Os Homens dos Pés Redondos e a Balada da Infância Perdida, publicou o livro de contos Meninos, Eu Conto e lançou, fortemente, Meu Querido Canibal. Todos tiveram enorme repercussão.
P – O sucesso dos seus livros são uma prova de que é possível ser um autor bem-sucedido sem fazer concessões?
R – Sim, e isso me dá uma grande satisfação, porque nunca escrevi nada para ser vendido. Nunca fiz concessão de espécie alguma, nem política, nem ideológica, nem mercadológica. Nunca submeti meu texto a uma ideologia, embora seja um autor de esquerda. Sempre me coloquei ao lado dos oprimidos.
P – Você se considera, como os personagens do seu livro, um retirante?
R – A minha trajetória pessoal de retirante plasmou meu próprio texto, minha escrita. O fato de ter sido arrancado da minha terra foi fundamental na construção do meu imaginário e isso se reflete no meu texto. Carlinhos de Oliveira dizia que o meu texto situava-se no eixo do deslocamento nacional. Eixo de mão dupla: deslocamento externo e o interior, da repercussão dessa viagem dentro dos personagens. Isso dá um caráter diferenciado dos autores localistas. Essa Terra não é regional, no pé da letra. Por isso, talvez, ele seja cada vez mais apreciado no exterior.
P – Isso se deve também ao fato de suscitar questões relativas aos Estudos Culturais, tão em voga atualmente nas universidades americanas?
R – Existe uma contextualização dentro do quadro internacional. Ele está sendo discutido dentro de questões contemporâneas, como o pós-colonial, o lugar do não-pertencimento, do descentramento do homem no seu espaço cultural. Tudo isso leva o texto a ser enquadrado dentro dessa discussão.
P – Qual o problema principal dos escritores que moram fora do eixo Rio-São Paulo?
R – Afora os mineiros e os gaúchos, todos reclamam dessa questão de estar fora do eixo Rio-São Paulo. Eu penso o seguinte: é claro que existe uma concentração excessiva da produção, da distribuição e da circulação nesse eixo. Mas, no caso do Nordeste, a coisa agrava-se por falta de iniciativas locais que criem pólos regionais fortes na área do livro. Existem estatísticas que apontam para um número muito baixo de vendas de livros em todo o Nordeste: apenas 14% em todo o quadro nacional. Isso enfraquece as editoras da região.
P – É preciso realmente morar no Rio e em São Paulo para se conseguir uma projeção em nível nacional?
R – Existem muitos autores que penam por não estar aqui (lá), onde as coisas realmente acontecem. Inclusive gente que vem com produção desde os anos 60 e não consegue retomar o passo no eixo editorial. Mas, no caso da Bahia, existem nomes de muita visibilidade nacionalmente. É o caso de Ruy Espinheira Filho e Ildásio Tavares, que têm seus espaços. Luiz Antonio Cajazeira Ramos está despontando bem por aqui (lá). Agora mesmo, Myriam Fraga participou do júri de um prêmio importante, o Maison de France – Finac, do Consulado Francês, que vai premiar a melhor tradução francesa no Brasil, nos últimos anos.
P – A questão básica, me parece, não é de discriminação em relação a escritores de outras regiões, mas de uma certa indiferença com relação a quem não está convivendo ali, num mesmo espaço…
R – O que eu acho é que os baianos precisam mexer-se mais. Mesmo porque, não é verdade que se fechem as portas para autores nordestinos. O Rio é muito aberto, basta ver a quantidade de autores de outros Estados que se integraram à vida cultural da cidade, como José Lins, Graciliano Ramos, Rubem Braga, Fernando Sabino. É preciso estar no lugar certo. Glauber Rocha dizia que todas as cidades são uma aldeia nos seus lares e bares, e a aldeia do Rio de Janeiro é a zona sul. É Copacabana, Ipanema, Leblon. O badalo aqui é no centro da cidade ou nesse eixo.
P – Como você vê a produção literária que é feita hoje fora desse eixo?
R – É preciso que os autores regionais persigam um texto que esteja inserido na contemporaneidade, que estejam mais afinados com as questões do nosso tempo. É preciso sair da dicção neoparnasiana, neo-rilkiana, da qual muitos poetas de hoje estão impregnados. Isso não só no Nordeste, como também no Rio. Devemos evitar o modernoso, mas é preciso estar mais afinado com a linguagem da contemporaneidade.
P – Que diferença existe entre a abordagem do sertão em seus livros e a do romance realista dos anos 30, por exemplo?
R – Hoje, o Brasil urbanizou-se e, talvez, os meus livros estejam preenchendo esses espaços, mas numa perspectiva muito diversa. Na verdade, existem muitos livros com a dicção dos anos 30, e não dá mais para se fazer isso. O Nordeste hoje continua com problemas dos anos 30, mas já não é mais o mesmo. A urbanização chegou lá. Eu estive agora em Junco, atual Sátiro Dias. O que vi lá: uma cidadezinha cheia de antenas parabólicas, internetada, asfaltada, mas triste. Os jovens estão todos fora e lá é, agora, um mundo de velhos indo para a igreja, encomendando a alma a Deus porque estão perto da morte. Havia uma sociabilidade que não tem mais hoje. É desse interior que estou tratando. O Cachorro e o Lobo trata disso.
P – O que permanece igual? O que liga o agora com o passado?
R – Uma coisa, que havia antes, continua: o suicídio. Um primo meu se enforcou, e as pessoas dizem: igualzinho ao seu livro. Há casos de suicídios de crianças: uma menina de 15 anos e um menino de 16 mataram-se. Uma amiga fez algumas perguntas que calaram fundo em mim: Como foi, o quê, por quê? Algo ligado à solidão? À falta de perspectivas? Esse é o problema existencial mais forte do ser humano. Camus tratou disso em O Mito de Sísifo, quando disse: pouco importa que o dia tenha 24 horas, que a Terra tenha movimento de rotação, quando o homem se pergunta se vale a pena viver.
P – O suicídio está relacionado ao desenraizamento físico, geográfico, que passa a ser um desenraizamento existencial?
R – A questão resume-se no seguinte: talvez o homem que troca o seu lugar por outro perca o seu lugar e não conquiste o outro. Refiro-me, no caso, à massa de retirantes. Vale dizer que não é a seca que expulsa, é a civilização que atrai. Ela cria a sedução do progresso da modernidade. Senti isso na minha infância com o surgimento, em Junco, do primeiro caminhão, que endoideceu o lugar. Era a promessa do divertimento, o sonho do consumo, surgido no final dos anos 50. A estrada era a viabilização do sonho de partir.
P – Um sonho semelhante, hoje em dia, aos brasileiros que vão morar no exterior?
R – Sim, daí o fato de os meus livros encaixarem-se na questão da diáspora, do lugar do não-pertencimento, tratados na contemporaneidade. O texto acopla-se nessa questão, que é um fenômeno novo, no Brasil, que é o da migração para o exterior. O cineasta Paulo Thiago me disse: “O seu personagem não está em São Paulo, ele está nos Estados Unidos”.
Entrevista a Zora Seljan
Jornal de Letras – Número 91, março de 2006
Entrevista a Zora Seljan
O Romancista Antônio Torres e a conquista de uma linguagem
Romancista posterior à onda maior do romance nordestino dos anos 30 do século passado, retratou Antônio Torres um Nordeste diferente, embora ainda firme na ação de sua gente. Seus personagens representam um Brasil que mudou, de modo que seu domínio da narrativa se insere com perfeição da linha ficcional de um tempo também novo. Sua entrevista revela a consciência desse domínio.
ZS: Entre Um cão uivando para a Lua, seu primeiro romance, e O Nobre Seqüestrador, como desenvolveu seu conceito de romance como obra de arte?
AT: Permita-me, querida Zora, começar indo mais longe no tempo. Se o Dom Quixote, de Cervantes, que teve sua primeira parte publicada há quatrocentos anos, foi “o primeiro verdadeiro romance da literatura universal”, digamos que o gênero surgiu para desestabilizar as certezas humanas, no entrechoque da fantasia com a realidade, fazendo-nos duvidar das verdades absolutas. Chegou à sua era de ouro no século XIX. Basta lembrar alguns casos exemplares dessa era: Dostoiévsky, Tolstói, Flaubert, Eça de Queiroz, Machado de Assis. Foi então que outro destes gigantes, Honoré de Balzac, conceituou o romance à perfeição. “É preciso desfolhar toda a vida social para ser um verdadeiro romancista” – escreveu ele, acrescentando: “Porque o romance é a história secreta das noções.”
No século XX, caberia a James Joyce quebrar a sua estrutura linear, ao enveredar por labirínticas experimentações, com mergulhos nos fluxos de consciência, estes explorados à exaustão também por William Faulkner, o fundador de um território mítico que abarcaria as águas do Mississipi, no qual confluiu o São Francisco do nosso Guimarães Rosa. Eles eram parentes. E bem próximos. O meu conceito? Para mim, o romance é uma espécie de baralho, com todos os naipes, que você pode embaralhar do jeito que quiser, mas no fim todas as cartas têm de estar lá. Ou seja, no fim, tem de ter começo, meio e fim. E literatura, em qualquer dos seus gêneros, se resume à conquista da linguagem e ao domínio do estilo. È o seu destino inescapável.
ZS: O Nordeste de seu Essa Terra mudou muito depois desse romance. E tendo sido de 1997 a retomada da cidade como chão da narrativa, em O Cachorro e o Lobo, terá havido novas mudanças, depois disto?
AT: Preciso voltar à terra do Essa Terra – um livro de 1976 –, para ver se existem novas mudanças. O que, aliás, é meu projeto para este ano. Mesmo à distância, soube de uma que pôs o lugar na linha de fogo da contemporaneidade. Em O cachorro e o lobo – que é o Essa terra revisitado, vinte anos depois –, descrevo o primeiro assalto acontecido lá. Era pura ficção. Logo após a sua publicação, recebi a notícia de que o assalto ficcional se tornara realidade. Foi à agência local do Banco do Brasil. E com muita violência. Algumas coisas mudaram para melhor, sem dúvida – nas comunicações à distância, transportes, saúde e educação. Outras, para pior, com certeza. Como a perda da velha e boa sociabilidade, do tempo em que não havia televisão
ZS: Como vê a ficção nordestina (de José Lins do Rego, Graciliano ramos, Jorge de Lima e Antônio Torres) no contexto geral do romance brasileiro?
AT: Fico muito honrado por você me pôr no rastro desta linhagem. Mas não nos esqueçamos do pai de todos: José Américo de Almeida. Foi o próprio Jorge, o Amado, quem um dia me disse isso sobre o Zé Américo. Os escritores do ciclo nordestino formaram uma tropa de choque que deu ao romance brasileiro expressão nacional. Alguns deles o levaram ao mundo, com Jorge Amado, o capitão de longo curso das nossas letras, comandando a navegação. Todos eles me deram régua e compasso, para lembrar o verso memorável de Gilberto Gil em “Aquele Abraço”. Talvez para as atuais exigências da crítica literária – sobretudo a crítica universitária –, eles, aqueles poderosos romancistas do Nordeste, tenham mais significação pelo seu ideário ético do que pelo estético, com exceção de Graciliano e Jorge de Lima, que parecem cada vez mais firmes nas duas pontas do processo.
ZS: Como vê a literatura brasileira, e a ficção em particular, neste sexto ano de um novo milênio?
AT: Vejo muita gente talentosa entrando em cena, se destacando pela agilidade técnica. Tendência: foco nos transes urbanos, tendo ao fundo as pegadas de Rubem Fonseca, principalmente no Rio de Janeiro, mas também entre novos autores de São Paulo, onde são bem notórias as influências de escritores norte-americanos que estiveram na moda em tempos relativamente recentes. Refiro-me a Charles Bukowski e John Fante. Ressalva-se que algumas moças já conseguiram se desgarrar das mãos de Clarice Lispector. E prestemos atenção a dois ficcionistas fora desse eixo: Miguel Sanches Neto, do Paraná, e Raimundo Carrero, de Pernambuco. E se não cito mais nomes é para não transformar esta resposta numa espécie de lista telefônica.
ZS: Que ficcionista estrangeiro considera representativo do nosso tempo?
AT: Pergunta difícil de responder, não é, não? Meu coração balança entre três. Um europeu, o Zé Saramago, um sul-americano, Gabriel García Márquez, e o norte-americano Norman Mailer. Eles representam o que ainda existe de escritor como figura pública. Quem sabe serão os últimos?
ZS: Os sonhos mudam. Em entrevista de quase dez anos, foi um. Qual vem a ser o seu sonho no momento?
AT: O mesmo de um personagem de William Sorayan, em Um dia no crepúsculo do mundo, que tudo que esperava da vida era poder pagar as suas contas.
ZS: Que livro está escrevendo neste 2006?
AT: Outro romance. Mas se eu lhe contar de que se trata, minha mente dará por escrito e ele ficará empacado. Sábios são os mineiros, que trabalham em silêncio.
ZS: O que representou para você ganhar o Prêmio Machado de Assis, pelo conjunto da sua obra, a mais alta láurea da Academia Brasileira de Letras, no ano de 2000?
AT: O Prêmio Machado de Assis representou um inesperado reconhecimento, pois se trata, sem dúvidas, da conquista da mais alta láurea que um escritor brasileiro pode almejar, no seu país. O meu sentimento foi o de que toda a minha luta com as palavras não havia sido em vão. A emoção se tornaria ainda maior durante a cerimônia de entrega do prêmio, na ABL, pela forma extremamente afetuosa com que os acadêmicos me receberam.
ZS: Em 2001, com seu romance Meu querido canibal, que retrata a vida do líder tupinambá Cunhambebe, o mais temido e adorado guerreiro indígena, você ganhou, também, o Prêmio Zaffari & Bourbon, promovido pela 9ª Jornada Nacional de literatura, de Passo Fundo. O que sentiu?
AT: Eu tinha sido convidado para participar do evento, com palestrante. Poucos dias antes de partir, li no Globo que o Canibal estava entre os dez finalistas. A matéria era ilustrada por duas fotos: a minha e a do acadêmico e senador José Sarney. Cá com o meu senso sertanejo de realidade, achei que ele ia levar o prêmio, por tudo que representa nas letras e na vida pública. Chegando lá, me puxaram para uma das primeiras filas. Quase 5 mil pessoas a postos no auditório. No palco, discursos. Do governador do estado, do prefeito de Passo Fundo, do reitor da Universidade, da professora Tânia Rösing, a organizadora das Jornadas Literárias. E eu com um frio na espinha. Finalmente, chega o grande momento. “O Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de 2001 vai para… (Tchan-tchan-tchan!): Nür na escuridão, de Salim Miguel e… Meu querido canibal…” Câmeras e microfones nas nossas caras. A primeira pergunta veio na minha direção: “O que você achou da divisão do prêmio?” Respondi, na bucha: “Não houve divisão. Foi uma soma para a literatura brasileira.” E isso pipocou nos noticiários televisivos daquela noite e virou manchete na imprensa gaúcha, no dia seguinte. Pronto, eis que senti e ainda sinto. Não é bom poder somar?
Entrevista a João Carlos Teixeira Gomes
Jornal A Tarde – Salvador, Bahia – sábado, 26/08/2000.
Entrevista a João Carlos Teixeira Gomes
Desde o Junco, veredas do brasileiro Antônio Torres
Esse jovem senhor que está à minha frente – quase 60 anos bem vividos e espalhados por Oropa, França e Bahia, que se completarão em 13 de setembro – é hoje um romancista consagrado, que acaba de receber, pelo conjunto da sua obra, o Prêmio Machado de Assis, conferido anualmente pela Academia Brasileira de Letras. Toda a sua trajetória intelectual iniciou-se nos idos de 1960 no recém-fundado Jornal da Bahia, para começar pelo jornalismo uma vocação que os anos só fizeram confirmar e amadurecer.
Devo personalizar o meu depoimento porque fui seu chefe de reportagem no então novo matutino, que reunia uma equipe brilhante, constituída de profissionais já tarimbados e jovens valores que surgiam com a missão de renovar o jornalismo baiano. Entre estes, Antônio Torres, de início retraído e mesmo tímido, o moço interiorano nascido no longínquo Junco (hoje Sátiro Dias) que vinha tentar a sorte na cidade grande e logo se destacou pela qualidade do seu texto e pela sua curiosidade de repórter, compondo com Humberto Vieira a melhor dupla da sua geração. Dedicados, profissionais competentes.
Irrequieto, o menino Torres, entre todos o mais afável e disciplinado (depois ele confessaria ter-me achado um chefe de reportagem estourado e intransigente, mas disciplinador), não esquentou cadeira no JBa. Sem demora, arrumou as malas e seguiu para São Paulo, onde, ao lado do jornalista, surgiriam o romancista e o publicitário. Pensou de início em fixar-se no Rio, que não pôde sequer ver direito em trânsito pelo aeroporto Santos Dumont, mas sua condição de interiorano impeliu-o primeiro para a megalópole paulista, na qual começou a trabalhar na Última Hora, nos tempos tumultuados que se seguiram à renúncia de Jânio Quadros, estimulada por algumas doses extras de uísque, como o confirma Foster Dulles na sua alentada biografia de Carlos Lacerda.
Na verdade, o sonho do jovem Torres – que os amigos chamavam de “o menino do Junco” ou “Tote” – não era Rio ou São Paulo, mas sim Paris, embalado pelos exemplos de escritores famosos que ali viveram a melhor parte de suas vidas, como Hemingway e F. Scott Fitzgerald. Não chegaria a morar em Paris, mas na capital francesa recebeu conferido pelo ministro da Cultura em 1998, o título de Chevalier des Arts et des Lettres. Na Europa, seu centro de operações foi Portugal, onde morou em Lisboa e no frio Porto, temido pelas nortadas de que fala Miguel Torga num dos seus poemas, ou seja, as rajadas do vento montanhês que invadem a cidade durante o inverno. Como não se acostumava com elas, nordestino dos trópicos escaldantes, preferiu morar em Lisboa, onde foi hóspede querido do poeta Alexandre O’Neill, para o qual lia regularmente trechos de “Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.”
O’Neill se encantava não apenas com a prosa rosiana, quanto, da mesmo forma, com o sotaque sertanejo de Antônio Torres, que lhe parecia o mais adequado revestimento sonoro para as histórias de Riobaldo, que o poeta gostava de ouvir “em voz alta”. Três anos viveu Torres em Portugal de 1965 a 1968, quando resolveu voltar ao Brasil, apesar dos tempos politicamente tempestuosos instaurados pelo Ato Institucional número 5 e pela crescente radicalização da ditadura militar. Fixou-se novamente em São Paulo e começou aos poucos a descobrir o Rio, para onde se transferiu definitivamente em 1978, dividindo suas atividades entre a ficção e a publicidade. Em 1972, casou-se com a professora universitária Sonia Carvalhal, com a qual tem dois filhos; Gabriel, um craque da área da informática, com livro publicado, e Tiago, um jovem músico, baterista com músicas gravadas.
Em seu amplo apartamento da Sá Ferreira, em Copacabana, num dia
europeu de um incaracterístico e muito frio inverno carioca, Antônio
Torres recebeu-me para uma entrevista exclusiva a A Tarde Cultural,
quem em seguida vai transcrita em forma de perguntas e respostas.
J. C. Teixeira Gomes – Você começou no jornalismo como repórter, no Jornal da Bahia recém fundado, que tinha uma equipe brilhante. O jornalismo ajuda a fazer o romancista?
Antônio Torres – No meu caso ajudou. E muito. Ser escritor foi meu sonho de criança, desde quando bati os olhos no livro de leituras da professora Teresa, na Escola Rural Prof. Anísio Teixeira, lá no Junco, digo, Sátiro Dias. Entrei para o Jornal da Bahia como quem entra num campo de treinamento. E lá havia escritores já tarimbados, como Ariovaldo Matos e você mesmo. Aprendi muito com vocês e com toda aquela redação maravilhosa. Tinha realmente um time brilhante, formado por nomes como João Batista de Lima e Silva, Flávio Costa, Muniz Sodré, Jeovah de Carvalho, Juracy Costa e muitos outros.
JCTG – O que foi mais marcante para você, no seu tempo de “foca” na Bahia?
AT – A minha estréia no jornal. Você, que era o chefe de reportagem, me mandou cobrir o movimento do porto. Cheguei lá, anotei as chegadas e partidas de navios, e dei o assunto por encerrado. No dia seguinte, você me mostrou o que os outros jornais noticiavam, e que eu não tinha visto no porto: contrabando, tiroteio, o diabo. Pela bronca, achei que minha carreira de repórter havia terminado ali mesmo, no primeiro dia. Ainda assim, fui merecedor de uma segunda chance – por piedade sua, talvez, diante da minha vergonha por tamanho fracasso. E aí você me mandou para o Necrotério Nina Rodrigues, onde dei de cara com o cadáver de um negão muito jovem que havia se suicidado. A visão do corpo do morto, estirado num estrado, começava pelos pés. E era apavorante. Mas pensei: “Hoje o Joca não me pega”. Isso porque me lembrei de um poema de Godofredo Filho sobre o absurdo de se morrer aos 18 anos. E assim comecei a matéria, que você passou para Jeovah de Carvalho, o chefe da reportagem policial. Para meu azar, Ariovaldo Matos, o chefe supremo da Redação, ia chegando à mesa de Jeovah naquele momento. Ari a leu e, de dedo em riste, disse: “Você pensa que está aqui para fazer literatura? Isto aqui é jornal, rapaz!” De nada adiantou Jeovah defender a minha matéria, dizendo que era bonita, que tinha “poesia”. Ari não quis conversa. Foi à sala dele, pegou um livro norte-americano intitulado Introdução ao Jornalismo e me passou o livro dizendo: “Só volte aqui depois de ter lido isto”. Bom, não foi um castigo dos piores. Li o tal livro. Grande Ari! Foi ele, sim, quem me deu a chave do tesouro.
JCTG – Quando sentiu que o seu caminho literário era a ficção? A experiência do publicitário absorveu o romancista mais do que devia ou lhe estimulou a criatividade?
AT – Quando eu era menino, se me perguntassem o que queria ser quando crescesse, a resposta seria: “Castro Alves!” Comecei rabiscando versos, que escondia debaixo do colchão, para que os adultos não os descobrissem. Isso lá no Junco. Mas foi no Ginásio de Alagoinhas que um professor me disse: “Seu negocio não é a poesia. É a prosa.” Pelo visto, ele estava certo. Agora, quanto à minha experiência na publicidade, foi extremamente enriquecedora para o meu texto. No jornalismo, aprendi a ver o mundo. Na publicidade, a contar o que vi com poucas palavras. Quer um exemplo? Eu tinha material bastante para fazer do Meu Querido Canibal um livro de mil páginas. E o fiz com menos de duzentas! A publicidade me ensinou a arte da síntese.
JCTG – Antônio Torres é um continuador ou herdeiro da tradição regionalista da ficção brasileira, consagrada com o romance nordestino de 30?
AT – Creio que tenho um pé na tradição e outro fora dela. Nos meus anos mais vulneráveis e juvenis, li muito os romancistas de 30. Mas também li Guimarães Rosa e Clarice Lispector, tanto quanto os meus contemporâneos.
JCTG – Vários de seus romances, sobretudo os iniciais, fundem regionalismo com memorialismo, na linha de 30, traduzindo suas vivências familiares e rurais no Junco. O memorialismo é fundamental na sua obra?
AT – O meu primeiro romance, Um Cão Uivando para a Lua, é urbaníssimo (ultra-sofisticado, no dizer do escritor baiano Marcos Santarrita). O segundo, Os Homens dos Pés Redondos reflete uma experiência minha em Portugal, nos estertores do salazarismo. É no terceiro, Essa Terra, que começo a viagem de volta às origens, São Paulo-Bahia, abrindo um ciclo que prossegue com Carta ao Bispo e Adeus, Velho, e ao qual retorno em O Cachorro e o Lobo. Nestes, sim, há uma fusão do rural com o urbano, o regional com o cosmopolita. Já sobre o memorialismo, comecemos pela receita que o doutor James Joyce passou aos romancistas, para os quais recomendava “memória, silêncio e astúcia”. E nunca me esqueci de uma frase a respeito, de William Faulkner, em Luz em Agosto (na tradução de Hélio Pólvora, se não me falha o bestunto): “É a memória, e não a dor, que faz você se lembrar de ruas selvagens e ermas.” E há ainda o título de Carl Gustav Jung, que não me sai da cabeça: Memórias, Sonhos, reflexões. Sonho que meus romances contenham um pouco disso.
JCTG – Quando você ingressou no jornalismo, no final da década de 50, estavam em voga as teorias da literatura engajada, estimulada pelas idéias de Sartre, o triunfo da Revolução Cubana e a convicção da vitória inevitável do socialismo. Isto o influenciou ou suas origens interioranas o tornaram naturalmente engajado?
AT – Não. Não me considero um escritor engajado, nesse sentido que você está dando. Li Sartre, num tempo em que todo mundo estava lendo Sartre. Mas também era leitor de Camus. E, para falar a verdade, os escritores que mais me marcaram foram os norte-americanos: Scott Fitzgerald, Faulkner, Hemingway, Truman Capote, o Norman Mailer dos primeiros tempos etc. Hélio Pólvora e Léo Gilson Ribeiro perceberam isso, já na estréia.
JCTG – Seu último romance, Meu Querido Canibal, desvia o seu percurso regionalista-memorialista ruma à ficção de fundamentos históricos, tocando inclusive a linha hoje rara do indianismo. Trata-se de nova tendência ou manifestação isolada?
AT – Não gostaria de ver o meu trabalho preso a um rótulo, como o de regionalista-memorialista, por exemplo. Sou da roça e sou da cidade. Sou do Junco e do Rio e Paris. Gosto de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, e de Miles Davis, todos os trompetes havidos e a haver. Escrevi Meu Querido Canibal porque me encantei com um personagem chamado Cunhambebe, o primeiro herói deste país, e com a história da Confederação dos Tamoios, a grande epopéia da nossa colonização. Agora escrevo uma minisérie para a TV Globo, como escritor convidado do Doc Comparato. Mas já tenho planos de mais um personagem da nossa História. Gosto de variar, só isso.
JCTG – Você hoje é um autor plenamente integrado no Rio, cujos meios editoriais e culturais não raro constituem guetos fechados, preconceituosos em relação sobretudo ao que se produz no Norte e Nordeste, paraísos exóticos, tratados à francesa como se fossem “lá bas”. Glauber Rocha sentiu isto e chegou a qualificar o Rio de “balneário escroto”. É bem difundida – inclusive nos programas humorísticos de TV – a ironia carioca com a alegada “preguiça baiana”. Antônio Torres é hoje baiano, carioca ou baiano-carioca? Tal simbiose é possível? Se suas raízes estão intactas, qual o papel do Rio na sua ficção?
AT – Ufa! Haja fôlego! Mas vamos lá. Não consigo ver o Rio desta maneira. Acho que há até uma certa curtição do carioca pela Bahia, e não só pelo lado exótico. As piadas sobre a Bahia são simpáticas, nada ofensivas. Diria até afetuosas. Escritores baianos (para não se falar dos músicos, cineastas etc) sempre tiveram muito espaço aqui. Foi no Rio que Glauber Rocha encontrou patrocinadores para alguns de seus filmes mais importantes. Aqui ele aconteceu mesmo. Oh, Joca, e onde os seus livros estão publicados? E os do Ruy Espinheira Filho e Ildásio Tavares? Pouquíssimos autores daqui têm espaço que João Ubaldo e eu temos. E de onde viemos? Não pense que basta ser do Rio ou estar nele para se ter as portas da edição e divulgação abertas. Há muita gente boa no eixo Rio-São Paulo que não consegue acontecer. Claro que há uma absurda concentração nesse eixo. Mas por que o Nordeste não reage, criando seus próprios meios de produção e difusão, em âmbito nacional, como faz o Rio Grande do Sul? E pergunto mais: não será que é o próprio Nordeste, numa política “for export”, que procura se vender pelo lado exótico, “Sun, sex and sea?” Quanto a mim: sou baiano e brasileiro, carioca, paulista e estrangeiro. E isto, de alguma maneira, sempre vai embasar o que escrevo.
JCTG – O Brasil continua o “arquipélago cultural”, constituído por ilhas isoladas, denunciado por Viana Moog em ensaio famoso?
AT – Sim, porém hoje é um arquipélago internetado e ligado na Rede Globo. Acabo de fazer uma longa viagem por 17 cidades, de Pirapora, em Minas Gerais, a Fortaleza. E o que vi foi um país em rascunho. Rascunhos de Miami ou sei lá o quê. Fora das capitais, não vi livraria nenhuma, em cidades até grandes ou inchadas. Mas todas elas têm casas de vídeo pornô, atulhadas de fregueses. E em todos os restaurantes se come de olho na televisão, a todo volume, catatonicamente. Em Paulo Afonso, na nossa Bahia, não consegui dormir com a barulheira das buzinas e dos sons dos rádios dos carros, a noite toda, repetindo sem parar a gravação dos gols do Flamengo, que havia ganhado um jogo… no Rio! O arquipélago está agora batendo um sorvete na testa, oligofrenicamente!
JCTG – Como um romancista regionalista vê o romance de fundamentos psicológicos? Por que nunca tentou a poesia?
AT – Meu Deus! Lá vem você de novo com essa história de regionalismo. Por que ninguém chama o Faulkner de regionalista? E ele era do Sul dos Estados Unidos… Quanto ao romance psicológico: há personagem sem fundamentos psicológicos, na era pós-Freud, pós-Dostoiévski, pós-James Joyce? Já em relação a poesia, é nela que bebo o que se chama de literariedade. Mas não me arrisco a escrever poesia, por total incapacidade. Contento-me em ser leitor dos poetas.
JCTG – Obras de ficção podem ajudar o Brasil e o mundo? No ano 2000, como um romancista deve conceber o seu real papel na sociedade?
AT – Primeiro, lemos obras de ficção pelo prazer da leitura, digamos, o prazer estético. Depois, sem que percebamos, essas obras vão nos transformando. Sim, a ficção pode levar o Brasil a se conhecer mais profundamente, já que o romance é a história secreta das nações, como dizia Balzac. O real papel de um romancista? A do intelectual de modo geral: lutar pela sobrevivência da espécie. A esta altura da peleja, chega a parecer que somos uma fauna de extinção.
JCTG – Há um grande desencanto popular hoje no Brasil com o governo FHC e com a classe política geral. Como o escritor Antônio Torres vê o drama histórico do nosso povo? Qual a atitude do escritor e jornalista diante das elites egoístas e corruptas, que gastaram milhões de dólares para eleger e manobrar candidatos? Há verdade eleitoral no Brasil?
AT – Nas minhas pesquisas para escrever Meu Querido Canibal, dei com os olhos numa carta de um vice-rei do Brasil (acho que foi Luís de Vasconcelos), que relatava para a Corte de Lisboa a sua estupefação em relação ao que Portugal havia enviado para cá: aventureiros que não vieram para construir um país, mas para se enriquecerem rapidamente, ainda que para isso tivessem que arrasar a terra. Nessa carta ele falava também da corrupção que campeava por aqui. Judiciário corrupto. Clero corrupto. Comerciantes corruptos etc. Qualquer semelhança com a atualidade… não será mera coincidência! Ou seja: a mentalidade preparatória continua. Eleição após eleição é sempre a mesma história: nosso povo acredita nos candidatos, se ilude com eles, vota neles. E o resultado é o que se sabe. Nossa atitude diante disso? Já nem sei. Denunciar faz efeito?
JCTG – Você é muito estimado pelos seus velhos amigos da Bahia, mas me disse recentemente que a imprensa baiana não lhe tem dado o relevo conferido pela de outros Estados. Responda sem deixar que o diplomata se sobreponha ao escritor.
AT – Acho, sinceramente, que a Bahia hoje está mais para o Carnaval – e o Carnaval baiano é imbatível, diga-se –, e outras manifestações da cultura popular, do que para as atividades literárias. Alguns escritores baianos, meus amigos, partilham também deste meu sentimento. Lançar livro em Salvador é decepcionante: vão aqueles velhos camaradas e só. A imprensa não dá destaque. Fica uma coisa meio perdida, no tempo e no espaço. Senti muito mais vibração, por exemplo, num salão de livro em Caiena, na Guiana Francesa, do que na Feira do Livro da Bahia.
JCTG – A literatura baiana não repercute no Rio e em São Paulo, apesar de os lançamentos se sucederem em Salvador, onde moram e trabalham grandes poetas, contistas, historiadores, pesquisadores etc. Qual a causa desse novo enigma baiano?
AT – Volto a bater na mesma tecla: você pensa que tudo o que se produz no Rio e São Paulo tem repercussão? Ledo Ivo engano. Eu mesmo sou hoje publicado, e muito bem, pela Record, uma editora que lança no mercado 30 livros por mês, um por dia! Você acha que todos vão repercutir? É uma briga de foice por espaço, na imprensa e nas livrarias. Não se esqueça que este País tem menos livrarias do que a cidade de Buenos Aires. E que o Nordeste inteiro, da Bahia ao Maranhão, representa apenas 14% das vendas de livros. Isso não enfraquece muito a posição dos autores da região? Causa-me preocupação esse atual sentimento baiano de exclusão. E me pergunto: por que uma cidade como Salvador, com todo o peso da sua tradição, toda a sua importância, e tantos criadores literários, não tem uma editora competitiva, em nível nacional?
JCTG – Defina a literatura que se escreve hoje no Brasil.
AT – Tenho andado assoberbado de trabalho, sem tempo de acompanhar o que se escreve hoje, como gostaria. Do pouco que tenho lido, gosto muito do poeta cearense Adriano Espínola, do ficcionista pernambucano Raimundo Carrero, dos baianos Ruy Espinheira Filho e Ildásio Tavares, do paulistano Bernardo Ajzenberg, do carioca de São Paulo Bernardo Carvalho. Os baianos têm o sabor do lirismo bem temperado, de fatura clássica. Os outros buscam caminhos mais cosmopolitas, de inserção na pós-modernidade. E mais não posso dizer, por falta de tempo para acompanhar.
JCTG – Ter ganhado o Prêmio Machado de Assis é sinal de que o romancista Antônio Torres já está com um pé (ou os dois) dentro da Academia Brasileira de Letras, reforçando a bancada baiana?
AT – Ganhar o Prêmio Machado de Assis deste ano 2000 foi para mim uma grande surpresa. Qual o escritor deste País que não ficará contente com um prêmio com este nome? Mas pensa em entrar para a Academia já é uma questão delicada. Prefiro não pensar nisso, por toda a delicadeza que o assunto envolve. Delicadamente, permita-me ficar por aqui.
Antônio Torres no Pajuçara Especial
Por ocasião da II Bienal do Livro de Maceió, em 2005, o escritor Antonio Torres deu uma das suas mais brilhantes entrevistas ao jornalista Ricardo Mota, no extinto programa Pajuçara Especial, da Tevê Pajuçara, à época, afiliada do SBT (hoje faz parte da Rede Record).
Em um bate-papo descontraído, entrevistador e entrevistado pareciam conversar à mesa de um boteco, falando de passado, de política, literatura e outros temas, sem cair na mesmice. A entrevista comove sem ser piegas.
São aproximadamente cinquenta minutos divididos em 5 partes, porque o Youtube só hospeda, no máximo, dez minutos de vídeo. Esta entrevista foi exibida quatro vezes, a pedido dos telespectadores alagoanos. Em conversa com Ricardo Mota, ele me disse:
– Tom, em quinze anos de programa nunca vi caso igual. São centenas de telefonemas, e-mails e cartas, pedindo pra reprisar.
Eis então que vos apresento essa antológica entrevista.
Ronaldo Torres (o Tom do Junco): Onde canta a acauã (http://coisasdojunco.blogspot.com)