(Um conto do tempo dos militares, sobre uma marcha dura, vazia e inútil pelo sertão, em busca de coisa alguma).
Não adianta dizer que não existe guerra alguma por aqui. Ninguém
acredita. Pelo menos estes homens que me cercam, a pleno sol. Eles
vieram de longe à procura dessa guerra que dizem existir nas nossas
barbas — se não a vemos é porque estamos cegos ou sonolentos demais
para enxergar o que quer que seja. Insisto no meu ponto, juro pela alma
da minha mãe: tudo não passa de um engano. Confusão de notícias
atrapalhadas que chegaram aos ouvidos da capital? Eles vieram de lá, não
vieram?
Digo que estou de férias, estou de passagem. E não posso seguir os
rastos de uma guerra de que não sei. Não posso contar o que não ouvi,
não posso falar do que não vi. Portanto, espero poder continuar comendo
as minhas goiabinhas sossegado, para matar o tempo e a saudade deste
lugar onde nasci um dia. Quem a inventou, que a desinvente.
Belo e inútil discurso. Quantas palavras em vão.
Eles não podem admitir o meu ócio, aquilo que a lei nos permite uma
vez por ano, a velha compensação. Precisam de mim. Eu conheço o caminho
da cerca e a guerra está lá. Daqui a pouco acabarão por me convencer
de que a cerca sou eu, de que a guerra sou eu, de que eu sou o inimigo
que estão procurando.
Não vou negar: a cerca existe. Fica na fronteira, delimitando os
nossos domínios, umas magras léguas de terra nestas solidões sem fim, o
cerrado batido sem o consolo das águas, onde o pio da cigarra dói mais
do que o espinho do serra-goela. Um mundo que não vale nada para estes
homens. E no entanto eles querem tocar fogo em tudo, sem que ninguém
saiba por quê.
Estes homens têm um chefe, a quem devem obediência. Importa se
gostam disso ou não? É o que tento adivinhar. Eles se calam no
consentimento, a voz do comandante é a de todos. Impossível saber o que
pensam, o que sentem. São comandados. O chefe é quem está com a
palavra, ponto final. Não vou descrevê-lo: ainda não o conheço o
bastante. Adianto, porém, não parecer o tipo que, ao sair de casa para
uma viagem tão longa e tão árdua (da qual nem sequer sabe se vai
voltar), tenha dado um beijo comovido na mulher e nos filhos. Se o
sentisse capaz disso, lhe diria com um sorriso amigo, de alma lavada,
que esquecesse essa guerra e viesse dar uma volta comigo, para ver como
esse lugar dorme em paz, só despertando de vez em quando de sua velha
preguiça para fazer o sinal da cruz e rezar o “Pai Nosso”.
Alheio ao que penso, o chefe me apresenta a improvável guerra como
um mapa real. Ele está seguro que fomos nós (o povo daqui) que a
provocamos, nós atiçamos a lenha contra o povo de lá — um vago lá além
da cerca. Fantástico. Na minha cara, na luz do dia, no meio da rua, com
tanta certeza? Pelo amor de Deus, que guerra é essa?
O chefe:
— Você já trabalhou no poço de petróleo, não é verdade?
Eu:
— Sim, senhor. É verdade. Mas já faz muito tempo.
O chefe:
— Pouco importa quando você trabalhou lá. O poço continua no mesmo lugar.
Eu:
— Isso também é verdade.
O chefe:
— Como se diz, muitos são os chamados, poucos os escolhidos.
Eu:
— Não estou entendendo. O senhor me desculpe.
O chefe:
— O poço de petróleo fica depois da cerca. Poucos sabem disso. Você
sabe. Por isso foi o escolhido para ser o nosso guia, neste sertão
desgraçado, com léguas e léguas sem uma viv’alma para dar uma
informação.
Eu:
— Como já disse ao senhor, não trabalho mais no poço de petróleo.
Agora trabalho num banco da capital. Estudo à noite. Quer ver os meus
documentos?
O chefe:
— Isso não vem ao caso. O que importa é que você conhece o caminho. Está em condições de nos ajudar. Qual é a sua categoria?
Eu:
— Terceira categoria. Não servi nem no Tiro de Guerra. Fui dispensado do serviço militar, por ter os pés chatos.
O chefe:
— Pois agora você está convocado, aqui e agora, tenha você os pés
chatos, redondos, compridos ou quadrados. Soldado, sentido!
Marche-marche!
Empertiguei-me. E simulei uma marcha, quase a
morrer de vergonha daquela patacoada, que certamente estava deixando
toda a tropa a abafar um riso.
— Des-can-sar! – bradou o chefe. E sentenciou:
– Não há problema algum com os seus pés. Eles andam. E isso é tudo o
que me interessa.
Eu:
— Quer dizer que tenho mesmo de ir…
O chefe:
— Isso mesmo. Seguiremos esta noite. Leve comida, que a nossa está pouca. E um cantil com água.
Eu:
— Para quantos dias?
O chefe:
— Creio que poucos dias. Eles não resistirão por muito tempo.
Eu:
— Chefe, posso saber quem são eles?
O chefe (um tanto irritado):
— O povo daqui e o povo de lá. Quantas vezes tenho que lhe dizer isso?
Eu:
— Mas chefe, o que é mesmo que está acontecendo?
Diante deste homem que se cala no momento que lhe parece o mais
exato, aprendo que ainda não vivi muito. Aprendo, por exemplo, que o
medo se situa na fronteira do imprevisível, aquilo que faz de nossas
vidas simples abstrações nestas paisagens ensolaradas, em terras
ignotas, desérticas, sertão brabo. “Este capitão, ou major, ou coronel,
ou general, ou lá que patente tenha, só pode ter é ficado doido
varrido”, penso, já me sentindo um condenado pelos pensamentos. Tanto
que quando o chefe chamou um de seus homens para seguir os meus passos
até a hora da partida, me vi oferecendo a minha vida a um pelotão de
fuzilamento.
Tudo se passa em campo aberto, à sombra de uma árvore. No entanto,
estranho a ausência de testemunhas. Como se todo o povo deste lugar
tivesse desertado. Os meus parentes não vão partilhar do meu destino:
estes homens não vieram aqui para ouvir pedidos de clemência,
lenga-lenga, choro, reclamações.
O que me acompanha, simplesmente me acompanha. Observa minhas
providências. Somos mudos um para o outro. Basta a sua presença para
que eu minta para a minha avó. Para ela não falei de guerra. Falei numa
caçada. Iríamos partir esta noite, “eu e este amigo aqui”. Ela me
olhou de um jeito estranho e disse que eu estava muito esquisito, muito
desinquieto. Digo inquieto e ela responde desinquieto, “você e seu
amigo”. O melhor lugar desta casa sempre foi a mesa da cozinha, onde nos
encontramos, mas neste momento está muito longe de significar alguma
coisa. Minha avó nos oferece café com leite e cuscuz de milho e
pergunta ao “meu amigo” se ele gosta de cuscuz de milho. Ele diz que
sim com um balançar de cabeça. Ela diz então que vai fazer outro para a
nossa viagem. Peço-lhe que faça dois, ainda temos bastante tempo. Uma
coisa minha avó não entende e confessa em tom de recriminação: como
alguém que dispõe de comida precisa sair pelo mato matando passarinho.
Tento tranqüilizá-la: seria mais um divertimento do que uma caçada a
sério. Talvez por isso ela tenha preparado com tanta alegria os dois
frangos e a farofa que eu lhe pedi, embora quisesse antes saber para
que tanta comida, se a minha intenção era voltar logo. Metade desta
comida é para um homem que conheci no mato, durante o tempo em que
trabalhei no poço. Minha avó me pergunta quem é esse homem e eu
respondo que é alguém que ela não conhece.
— Apenas um sujeito que vive no mato há muitos anos. A senhora não deve se lembrar dele.
— E por que você está preocupado com ele?
— Porque é um bom sujeito.
Mas não era isto o que verdadeiramente a incomodava. Era outra coisa.
— Vocês vêm e vão, passam por aqui como um relâmpago. Às vezes eu
penso que nenhum de vocês tem a menor consideração por esta pobre
velha.
Quantos netos, vovó? Todos na guerra, em qualquer guerra real ou
inventada, como esta para onde estou indo. É um mundo doido, não é,
vovó? Talvez ela jamais o compreenda — então é melhor não lhe dizer
nada. Apenas retribuo-lhe o trabalho com uma nota graúda, que ponho
dobrada em sua mão e ela me diz “Deus que te ajude, meu filho, Deus que
te dê muitas dessas”, enquanto com a outra mão me entrega o saco
quentinho, cheio de comida. E penso: talvez eu nunca mais precise que
Deus me abençoe com um salário mensal porque, para precisar disso, é
preciso que ele me abençoe duas vezes e me faça voltar são e salvo
desta viagem.
E assim me fui. Pensando que vovó podia ser o último ente querido a
me ver com vida. Por isso guardava bem as suas palavras, como se antes
eu nunca tivesse prestado atenção em conversa alguma. Havia algo de
novo em tudo isso: eu gostava muito dela e ainda não sabia. Quando a
notícia chegasse, contando a verdade, seu testemunho seria irrefutável.
— Ele sabia que estava indo para a morte, mas ainda assim se lembrou
de fazer um bem. Levou comida, um par de calças e uma camisa para um
homem que mal conhecia e que precisava disso.
A bênção, vovó?
E aqui nos vamos: neste silêncio que espanta mais do que a própria morte.
O chefe:
— Não fumem e não falem para não chamar a atenção do inimigo.
Aqui, nesta caatinga, nestes ermos?
Ele só se esqueceu de dizer que não era para rir. Falava a sério. E
eu me esqueci que nem tudo precisa ser dito com todas as palavras.
O chefe:
— Quem foi o engraçadinho?
E eu:
— Eu.
O chefe:
— Onde está a graça?
— Me lembrei de uma piada. Desculpe.
O chefe:
— Qual é a piada?
Eu:
— Não posso contar.
O chefe:
— Por quê?
Eu:
— Para não chamar a atenção do inimigo.
Mesmo com este escuro, posso adivinhar o riso que se abre e se fecha
no rosto de cada homem. Eles o sufocam, abafando as suas bocas com as
suas próprias mãos. Com a ajuda de uma minúscula lanterna, o chefe
anota qualquer coisa num caderninho que tira do bolso. Pressinto que é
um ponto negativo sobre a minha conduta.
Dois a dois, como bois de canga, os homens marcham, trôpegos e
desanimados, numa estrada batida por cascos de cavalos e carros de
bois, à luz das estrelas e dos pirilampos, sons de grilos e pássaros
noturnos, cheiro de mato, sujeitos às espetadas de galhos, topadas em
pedras, tropeços em paus e buracos, medo de cobra. Com toda certeza
vamos chegar lá cansados e inúteis. Derrotados.
Estes homens parecem saber disso há muito tempo: matar ou morrer é uma questão de rotina. Já não há surpresa nesta caminhada.
Mas ainda me resta muita curiosidade, eis a minha espécie de
maldição. Por isso tento cochichar alguma coisa para o homem que me
acompanha, “meu amigo” mudo. Perguntas banais. Coisas da vida.
— Você tem mulher?
— Gosta dela?
— Você tem filhos?
— Eles se dão bem com você? Você se dá bem com eles?
— Você tem amigos
— Seus pais ainda estão vivos?
— Gosta deles?
— O que fazem?
— O que você fazia antes?
— Você pensa em sair disso um dia?
— Tem planos para o futuro?
— Gosta do que está fazendo agora?
— É bem pago por isso?
— Você é feliz?
Nunca mais poderia esquecer o que ouvi do homem que parecia mudo e
não era mudo. Digamos que neste instante ele teve um momento de extrema
boa-vontade para comigo, e talvez até desconhecendo a extensão do
favor que estava me fazendo, revelou o timbre da sua voz. Falou
baixinho, é certo, mas falou:
— Vou lhe dar um conselho. Você é muito novo ainda. Se quiser viver muito, não faça perguntas.
E assim continuamos indo: calados.
Quantas léguas já teríamos palmilhado? Difícil saber. Se
encontrarmos alguém nesta estrada e perguntarmos quantas ainda faltam, a
resposta será: — É logo ali.
Se você passar por mim, mesmo que eu não lhe veja, faça-me um
obséquio: avise a todos os meus que não chorem se eu não voltar. O
choro não me devolverá, são e salvo.
Nesta estrada não sou vaqueiro. Sou gado. Aqui rumino. Com a paciência dos bois.
À minha frente um homem pensa em voz alta. Reclama:
Perdi. Perdi.
E o outro, o que vai a seu lado, ombro a ombro:
O que foi que você perdeu?
Perdi o jogo de hoje. Meu time ia jogar.
— Pior fui eu, que perdi uma namorada. Uma semana inteira neste fim de mundo. Sem mulher, sem nada.
Você só pensa nisso.
Acontece que não sou capado.
O homem à minha frente, o primeiro a se queixar, vira-se para trás e me entrega o seu companheiro:
— Cuidado com este, que está a perigo. Ele olha para uma árvore e vê as coxas de uma mulher. Vê uma pedra e enxerga um seio.
Estávamos quase colados um no outro, cara a cara. Foi por isso que o
seu corpo encardido e pesado desabou sobre mim. Com a cabeça virada
para trás, ele não viu quando o outro tirou a lâmina do bolso e fez um
risco profundo em sua barriga. Lá na frente, o chefe desperta. O silvo
do seu apito rasga a noite em duas. Depressa, me desprego do fardo do
homem praticamente rasgado em dois e o empurro para o chão. O apito do
chefe era a ordem para que parássemos. Ele vem aos berros:
— Que esculhambação é essa? Que esculhambação é essa? — Aponta a sua
lanterninha acesa na cara de cada homem, até parar junto de nós, quer
dizer, no pequeno círculo que formamos em torno do corpo do homem
caído, de onde jorrava uma cachoeira de sangue.
— Está aqui, chefe, a prova do crime — disse o assassino. — Ele se matou com esta arma.
— Como foi isso? — disse o chefe, já com o seu caderninho na mão.
— Ele cochichou para mim: Não me conformo. Perder o jogo do meu time
esta noite, não me conformo. Aí tirou a navalha do bolso e se cortou.
— Por que você não tomou a navalha da mão dele?
— Não deu tempo, chefe. E, mesmo que desse, ele teria me matado. Estava fora de si.
Nos entreolhamos, eu e o homem a meu lado, o que está tomando conta
de mim. Ele balança a cabeça, em sinal de aprovação. Não digo nada.
— Era um torcedor doente — disse o chefe. — Já que queria morrer, que fique aí. Não podemos perder mais tempo.
E assim nos vamos: pulando por cima de um morto, sem poder olhar para trás. Ainda temos muitas léguas pela frente.
Mas será que eu vi o que vi? Falando sério, não creio muito no que
vejo, como se uma névoa espessa me turvasse as vistas. Inebriado, aos
poucos vou perdendo a confiança que sempre tive nos meus próprios olhos
e isto talvez se deva à poeira que nós todos vamos levantando a cada
passo. Sinto-me confuso, muito mal mesmo: meus pés já estão inchados e
doloridos e minha barriga começa a doer, enquanto a minha cabeça roda e
eu me esforço para deter o vômito que já vem perto da boca — não, pelo
amor de Deus agora não, ainda, não, agüente mais um pouco, agüente até o
sol raiar, a brisa da manhã certamente te trará um grande alívio, não
podes fraquejar, não tens esse direito, pelo menos agora, pelo menos
por enquanto, Deus me ajude, Deus que me ajude, Deus, Deus, Deus, em
nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo.
E o cheiro do vômito vem das minhas próprias tripas; primeiro foi
uma tosse, depois um bocejo, depois uma cusparada e o gosto do vômito
na saliva e esse cheiro e esse gosto vêm também de um homem mais à
frente, que logo a seguir tropeçou e caiu e era como se tivesse
escarrado um jato podre dentro da minha boca, a podridão se espalha por
onde vamos passando, e vamos passando por cima de mais um e agora eu
tenho uma pergunta, uma simples pergunta: quantos seremos ao chegarmos
lá? e outra — e se eu cair? e mais outra — passarão por cima de mim, do
mesmo jeito que estamos passando por cima dos outros?
A resposta está em mim e está em ti, meu irmão, que caminhas ao meu
lado e não me olhas nem me dizes nada porque tens medo de ver a tua
própria suspeita refletida nos meus olhos, a minha e a tua suspeita de
que nos fizemos inimigos. Sabemos que temos que chegar a algum lugar,
mas não sabemos se o queremos, porque desconhecemos o verdadeiro
sentido da nossa marcha. Marcha noturna, seis léguas. A pé. Talvez nem
sejamos merecedores de uma cova funda, lá no fim, no ponto final — uma
cova em que coubesse tudo aquilo que ambicionamos e que deixamos de
ambicionar. Seguimos no escuro, como cavalos dopados, mas seguimos,
porque nos disseram que tínhamos que ganhar esta corrida e nos fizeram
crer nisso. Avante, irmão. Marche, marche.
Mas tenho que me dominar e o consigo, eis o meu milagre pessoal, meu
milagre possível, pelo menos neste momento. Em questão de minutos
chapinhei no lodaçal de meus próprios abismos, bati na porta de uma
fronteira, varei muitas noites e nenhuma delas tinha encanto algum.
Agora que voltei, posso lhes contar que já não sou o mesmo. Estou
possuído por uma estranha espécie de exaltação — agora eu quero o êxtase
e o êxtase que procuro está na guerra. Eu quero a guerra — eu que até
aqui neguei a sua existência e que só aceitei esta missão porque a ela
fui condenado. Não, já não me conformo com o meu modesto lugar de guia.
Marchar simplesmente, sem me envolver com o jogo da marcha, nem com as
ambições destes homens e as minhas próprias? Deixar de lado toda essa
comichão que se apossa de mim como uma nova corrente sangüinea, toda
essa febre, esse desejo? Direi isto ao homem que anda a meu lado, o
carrasco que me vigia? Deliro? Com toda certeza. Não há outro remédio.
Existirá algo mais monótono do que uma marcha noturna, a pé? Marchemos,
porém. O dia já vem raiando.
À exceção de mais alguns homens que fraquejaram — e dos quais
ninguém se lembra mais — tudo transcorreu sem incidentes. Avistamos a
cerca aí pelas cinco da manhã, de acordo com o sol, que já se
levantava. O terreno é plano, descampado, como as nossas próprias
cabeças. Os homens parecem bastante animados com a chegada, como se
isso, por si só, já fosse a vitória. O chefe os distribui
estrategicamente, por zonas de ataque e defesa. Podemos nos movimentar à
vontade porque, pelos cálculos do chefe, a guerra ainda está dormindo e
tivemos muita sorte em chegar agora, sem aviso. Assim que ela acordar,
será apanhada de surpresa. Perguntei-lhe se a minha função terminava
ali, já que a mim cabia apenas ensinar-lhes o caminho. Ele disse que
não e me deu uma arma.
Não sei atirar, nunca peguei numa arma — mas a sensação de estar
agora com uma nas mãos jamais poderá ser descrita. Sinto-me outro:
talvez um rei, talvez um bandido. De qualquer forma, outro. E esse
outro é diferente do que já fui, mais poderoso e mais perigoso, mais
homem e mais animal.
E assim, passamos o dia: deitados no chão, com as nossas miras apontadas para a cerca.
— Se eu dormir você me acorda, quando a coisa começar — pediu um homem a meu lado.
Respondi:
— Se eu dormir você me acorda, quando a coisa começar?
— Combinado — ele disse e fechou os olhos.
Cochilávamos e acordávamos, acordávamos e cochilávamos. Parecia que a
verdadeira guerra a ser travada era contra o sono de cada um, como de
fato o foi, nesse primeiro dia. A outra guerra, a que procurávamos, não
apareceu. À noite nos revezamos em dois turnos e no dia seguinte e no
outro. Cansado de esperar, o homem a meu lado voltou a falar:
— Acho que devíamos começar a atirar contra o sol. Está de doer.
— E de noite a gente atira contra a lua.
— Contra a lua, não. Ela é até boazinha.
— Você só se esqueceu que a lua está custando a aparecer.
— Mas vai aparecer. Não estamos aqui para esperar?
No terceiro dia o chefe disse:
— Amanhã vamos para o outro lado.
No dia seguinte fomos para o outro lado.
E do outro lado também não havia guerra.
E como a guerra não aparecia, perguntei ao chefe se eu podia dar uma
busca em volta. Ele disse que sim, desde que eu fosse acompanhado.
Então me levantei e o meu carrasco me acompanhou. Numa mão eu
segurava a arma e na outra um par de calças e uma camisa — eu ia mesmo
procurar o meu amigo que andava escondido pelo mato. Não levava o
frango que minha avó fez para ele porque eu já havia devorado tudo
quanto foi coisa de comer.
— Só me pergunto que diabo viemos fazer aqui — disse o carrasco.
— Isso é que eu queria saber.
— Esse chefe é maluco — continuou o carrasco.
— Parece que está todo mundo maluco.
— Você sabia a verdade. Por que não disse?
— Eu disse. Mas ele falava dessa guerra com tanta certeza que acabei acreditando. E se ela for em outro lugar?
— Com certeza vamos ter que ir para outro lugar.
Não foi difícil encontrá-lo. Ele continuava debaixo da mesma árvore
em que o deixei, alguns anos antes. Vestia-se com os mesmos farrapos e
seus cabelos, como tranças de cordas, estavam quase se arrastando pelo
chão. A barba vinha até metade da barriga. Parecia um pouco mais velho,
mas só um pouco. Quando o avistou, o homem que me acompanhava levantou
a arma em sua direção. Empurrei-lhe o cano para um lado e disse-lhe
que não havia necessidade disso. Tratava-se de um amigo, gente de paz.
Entreguei-lhe a roupa e falei da comida. Pedi-lhe desculpas: com
todo esse tempo no mato não houve comida que chegasse. Ele disse que
não me preocupasse. Não lhe faltava o que comer. O homem a meu lado
começou a interrogá-lo:
— Por que você vive assim, que nem bicho?
— Porque quero, ora.
— Há quantos anos você vive assim?
– Desde a última vez que cortei os cabelos. Não sei quanto tempo faz isso, nem me interessa saber. Para quê?
— Esse cabelo não lhe incomoda?
— Isso foi uma coisa que descobri. Nenhum homem precisa cortar o cabelo.
— E de roupa no corpo?
— Também não.
— E comida?
— Isso foi outra coisa que descobri. Ninguém precisa se matar de
trabalhar, e às vezes até roubar, para ter o que comer. Sempre tive
comida aqui neste mato. E de graça.
— E mulher?
— Foi outra coisa que descobri. Nenhum homem precisa de mulher. Tem muita fêmea de quatro pernas à solta.
— Você é feliz assim?
— Cada um vive como pode. O meu jeito é esse. Não tenho de que
reclamar. Aqui ninguém me aporrinha. Quer dizer, não me aporrinhava.
Então o homem, sem ter mais o que interrogar, disse:
— Você vai ter que vir conosco, para falar com o chefe.
— Eu não tenho chefe — disse o outro.
— Mas nós temos. E ele quer ver você.
— Tenho que ir por bem ou por mal?
— Por bem ou por mal.
— Já sei. Vocês querem me prender.
— Não. Ninguém vai lhe prender. Estamos aqui por causa da guerra.
— Que guerra?
— Você vai saber daqui a pouco.
Meu amigo me olha. Não posso fazer nada. Digo-lhe:
— É melhor você ir.
E ele não precisa me dizer, para que eu entenda o que está escrito
na sua cara. — Foi você, não foi? Você contou pra eles que eu estava
aqui, não foi?
Preciso lhe dizer: foi um engano. Minha intenção era outra. Deu tudo
errado. Um desastre. Será que ele ainda acreditaria em mim?
O chefe também o interroga:
— Cadê a guerra?
— Não vi guerra nenhuma.
— É melhor você confessar logo — diz o carrasco.
Ele, o selvagem, me olha, como se me interrogasse: “Por que você me meteu nisso? Que canalhice é essa?”
O chefe:
— Então você não viu a guerra…
Ele:
— Não vi, não senhor.
O chefe:
— E você sempre morou aqui?
Ele:
— Sim, senhor.
O chefe:
— Você sabe montar a cavalo?
Ele:
— Não, senhor.
O chefe:
— Como é que um homem do mato não sabe montar a cavalo?
Ele:
— Porque nunca tive um cavalo. E quem tinha nunca me deixou montar no seu cavalo.
O chefe:
— Mas você sabe lavar cavalo?
Ele:
— Isso todo mundo sabe. É só jogar água, esfregar o sabão e jogar água de novo, não é?
O chefe:
— Então você agora vai ter uma profissão. Você vai passar a lavar os
cavalos do Exército. Nós vamos te levar. Vamos dar uma boa esfrega em
você, tosar esse cabelo e essa barba, vamos te dar uma roupa de gente.
Você vai voltar a ser gente. Ninguém pode viver assim, que nem bicho do
mato.
Nesse momento ele olhava para o chão. Não sei se estava indignado,
se estava pensando, ou se estava fazendo algum plano. Eu tinha que lhe
dizer, de alguma maneira, que estava muito constrangido por toda aquela
encrenca. Mas em que isso ia adiantar?
O chefe deu a ordem para levantarmos acampamento.
— Nossa missão aqui está terminada — disse. — Agora temos de partir à procura de outra guerra. Avante, camaradas!
Em sua voz não havia a mais leve ponta de decepção, arrependimento
ou dúvida. Com certeza apresentaria um relatório ao quartel-general,
informando que a marcha não servira apenas como treinamento, ou para
levantar o moral da tropa que, com bravura e heroísmo, havia penetrado
numa mata indevassável, capturando em seus recônditos um perigoso líder
de um movimento insurrecional, jamais suspeitado.
E assim ele garantiria mais uma medalha no peito. Por que não?