Quando a Cidade Faz Esquina com a Escrita

Conferência proferida por Antônio Torres na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
no encerramento do 2o. Congresso da Ciência da Literatura, dia 23/10/2002, sobre o espaço da cidade/ o espaço da escrita.

Das cidades de sonho dos contos orientais às descritas por Marco Polo em O Livro das Maravilhas, das “invisíveis” de Ítalo Calvino à visibilíssima do nosso Paulo Lins, a civitas, ou polis, ou urbe, sempre foi, é e sempre será um espaço para fabulações. “Continente das experiências humanas, com as quais está em permanente tensão, como ambiente construído, como necessidade histórica, ela é o resultado da imaginação e do trabalho coletivo do homem que desafia a natureza,” no dizer de Renato Cordeiro Gomes, autor de Todas as Cidades, a Cidade. Eis aí o seu real significado para os escritores: um laboratório. De aprendizagem, experimentações, riscos, alegrias, decepções, inseguranças, ralações, derrapagens, trombadas – com quem você bateu de frente, hoje? –, frivolidades, “papo urbano e impopular” (copyright para o finado Scott Fitzgerald), papo cabeça, papo Jesus, medo, terror, competições, ultrapassagens. É pegar isso e bater no liqüidificador. Como quem pega um limão e faz a limonada.

Edmund Wilson, o crítico literário norte-americano que sempre soube o que dizia, disse uma vez que só existem três personagens na literatura ocidental.

Primeiro: o que vai do campo para a cidade e se deixa seduzir por ela.

Segundo: o que faz o mesmo percurso, não se encanta com a cidade e volta para a sua aldeia.

Terceiro: o da cidade.

Donde podemos concluir que, se a cidade dá espaço para a escrita, esta lhe dá voz. E constrói-lhe o mito.

Já desconfiava disso muito antes de ler Edmund Wilson. Nasci na roça. Mas com a cabeça, a alma e o coração povoados de cidades.

Há a Cidade Eterna, a Cidade Santa (Jerusalém, para uns, Meca, para outros), a Cidade Maravilhosa, a Grande Maçã, a Santa Maria Reina de los Angeles e a Santa Maria de Belém do Grão Pará, a de São Salvador e a de Saint-Georges de l’Oyapock, na fronteira da França com o Amapá, onde diariamente crianças brasileiras atravessam um rio largo e profundo para estudar francês, na esperança de um dia poderem trocar o verde e vago mundo da selva amazônica pelo spleen da Cidade Luz.

Reais ou imaginárias, há as utópicas, as que têm alma, as bonitas e as feias, as alegres e as tristes, as invictas, as heróicas, as complexas (São Paulo, por exemplo), as pobres de dar dó e as com a voz cheia de dinheiro (São Paulo também, para os nordestinos), as hospitaleiras e as que convém nem passar perto, as de paz (como o Rio) e as de guerra (idem), as onde o Judas perdeu as botas ou o vento faz a curva, as que nunca viram uma gota de chuva (Lima, Peru), as habitadas por fantasmas, como uma chamada Comala, inventada pelo mexicano Juan Rulfo em “Pedro Páramo,” sem esquecer “A cidade do desassossego,” de Gogol, “A cidade de vidro,” de Paul Auster, a “Cidade perdida” e a “Babilônia revisitada,” do já citado Scott Fitzgerald, que me fez conhecer o bar do Ritz, onde nunca estive, em Paris, cidade, aliás, que o leitor aqui já conhecia antes de pôr os pés lá, graças às páginas de Hemingway, Henry Miller, Proust e Boris Vian. Para nós, os leitores, que importância teria Praga sem Kafka, e Dublin sem James Joyce? Se o Rio de Machado de Assis não existe mais (no entanto é preciso lê-lo, para sabê-lo), Rubem Fonseca nos coloca cara a cara com a sua alta voltagem contemporânea.

Agora, as outras que me perdoem, mas lendária mesmo foi Axuhy, a cidade dos escravos fugidos como protesto à desumanidade do chicote de seus ferozes senhores, e que se tornaram muito ricos graças às audácias de seus saques. A lenda transformou-a num quilombo encantado, lá para as bandas dos campos da Lagarteira, perto das imensas dunas brancas dos Lençóis Grandes, às margens da lagoa do Caço, ao leste da capitania do Maranhão. Era uma das muitas fábulas que corriam sobre os negros fugitivos. E acabou se tornando um dos episódios mais patéticos da história colonial portuguesa no Brasil. Quem contou isso foi Viriato Correa, em seu livro “Terra de Santa Cruz.”

O tenente-coronel João Paulo Carneiro tinha um escravo, o Nicolau, que mentia pelos cotovelos. Por isso vivia no tronco, de lombo retalhado pelo chicote. Mal saía do castigo, voltava a mentir. E de novo era castigado.

Um dia o negro Nicolau conseguiu fugir. Passou-se muito tempo sem que ninguém lhe pusesse as mãos.

Numa noite do ano de 1794, ele voltou a São Luís, mesmo sabendo que se fosse apanhado ia levar uma surra de esfolar o couro.

Na manhã seguinte, quando o governador Fernando Antônio de Noronha saía de seus aposentos no palácio, deu de cara com o Nicolau, que se ajoelhou aos seus pés, implorando-lhe que o livrasse da morte. E narrou-lhe uma história fantástica.

Fugindo do chicote do coronel João Carneiro, ele embrenhara-se pelas matas a dentro do rio Munim, no rumo dos quilombados da Lagarteira. Seria verdade ou mentira o afamado mocambo dos negros? Depois de muitos dias amargos, perdido entre os cerrados, oh, beleza!, oh alegria! Inesperadamente, acabou entrando na cidade de Axuhy, escondida num bosque, às margens frescas da lagoa do Caço.

Os olhos do governador – que Viriato Correa descreve como uma soleníssima cavalgadura – brilhavam. E como era a cidade de Axuhy?

– Perto dela São Luís é uma pobre aldeia – respondeu-lhe Nicolau, com todo o encanto e poder de convencimento dos grandes mentirosos.

Prosseguiu:

Não havia na capital maranhense uma única rua como as muitas que vira em Axuhy, cheias de palácios, de ponta a ponta. Não havia ali nenhuma igreja comparável à da cidade dos campos da Lagarteira, não só pelo tamanho como pela riqueza. No altar-mor do templo de Axuhy erguia-se uma imagem da Virgem da Conceição, toda ela de ouro maciço.

–De ouro maciço? – o governador perguntou-lhe, de olhos arregalados.

–Sim, senhor. De ouro maciço e do tamanho de uma mulher bem alta.

E isso não era tudo. Em Axuhy não havia ninguém pobre. Lá, andava-se pelas ruas pisando em ouro e prata. O mais inferior de seus habitantes tinha arcas e arcas abarrotadas de moedas. E tanta era a riqueza da cidade, que a água da lagoa era bebida em cuias de ouro. Havia lá um padre jesuíta que cuidava da igreja. Os negros faziam negócios ocultos com os figurões de São Luís. E estes já sabiam que ele, o Nicolau, havia estado lá. Receiosos de que o segredo fosse revelado, queriam matá-lo. Só lhe restava a esperança de que o governador o salvasse.

E então, naquele exato momento, dom Fernando Antônio de Noronha, fidalgo, tenente-coronel do regimento da corte portuguesa, membro do conselho da rainha e governador do Maranhão, traçou um plano. Ia enviar um contingente militar para a conquista da fabulosa cidade. Nicolau ia ser o guia e um dos comandantes do seu exército, na caça ao tesouro de Axuhy. O escravo fugitivo foi nomeado capitão de milícias, imediatamente. Saiu do palácio fardado, com espada à cinta e penacho. Atrás dele, vinha o seu ordenança, guardando a devida distância do altivo chefe.

São Luís inteira caiu na gargalhada.

Ele não ligou. Nem o governador deu ouvidos a quem lhe lembrava da fama de mentiroso de Nicolau. Dom Fernando Antônio tinha pressa em armar dois mil homens, entre tropa de linha, milícias, pedestres e índios de serviço. Com tanta providência a tomar, não ia perder tempo com os fofoqueiros.

Enquanto isso o negro ia à forra. Deixou de falar com os seus iguais. Agora, com empáfia na voz e na figura, apertava a mão dos brancos na rua, abraçando as autoridades condescendentemente. Pôs-se a prender muita gente boa, a pretexto de comércio oculto com os negros de Axuhy. São Luís passou a temê-lo. Nicolau começou a ser convidado para festas e banquetes, nas casas dos ricos. Sentava-se à mesa como um figurão, bebia e comia do bom e do melhor e depois passava à sala, para conversar e namorar as moças brancas. E cada vez mais ganhava a confiança do governador, de quem se tornara o mais importante de seus auxiliares.

No dia 3 de agosto de 1794, a cidade de São Luís assistiu ao espetáculo imponente do embarque das tropas, divididas em dois grupos: um, tendo Nicolau como guia, seguiu por terra, pelas margens do rio Munim, com o negro falando muito e animando a todos na longa marcha. O outro ia  pelo mar. Mas, na véspera de avistarem os campos da Lagarteira e formarem fileiras para o ataque a Axuhy, ninguém mais viu Nicolau. Procuraram por ele durante três dias. Em vão. Nicolau havia fugido. As tropas se perderam na mata, vencidas pela fome e o cansaço. Ainda assim acabaram por acertar o caminho de volta, mortas de vergonha. O desembarque em São Luís foi feito à noite, às escondidas, nas praias mais escuras.

E era uma vez Axuhy, a cidade coberta de ouro.

O governador, porém, não se deu por vencido.

Em seu relato à corte portuguesa sobre a volta das tropas, alegou que “depois de fazerem o seu passeio com todas as regras da tática, elas se haviam recolhido por não ser própria a estação, produzindo o passeio, apesar disso, um grande efeito moral.”

A brincadeira do Nicolau custou-lhe caro. Anos depois, o seu antigo senhor o prendeu, trancafiando-o numa prisão perpétua.

Não, não foi ele quem inventou a lenda da cidade encantada. Mas deu-lhe brilho. Como um narrador memorável. Um mentiroso genial.

O espaço da cidade é o da fábula, da memória, da história, do mapa, da arte, da moda, da biografia, do trabalho, do estudo, do vizinho, do lazer, do sonho de quem nasceu no campo, da violência etc.

Surgida na Suméria no terceiro milênio a.C., ela viria a aglomerar a população num núcleo urbano e organizá-lo num conjunto político e econômico. Foram, porém, os antigos gregos que lhe deram uma estrutura acabada, permitindo o surgimento de uma florescente civilização, entre o VII e o IV séculos a.C. Na Antigüidade, o seu assentamento se fazia a partir de um ponto fortificado, como medida de defesa. Na Idade Média e nos Tempos Modernos, a Europa conhece o esplendor das cidades flamengas, alemãs, italianas etc. As metrópoles do mundo – Londres, Paris, Nova York, Tóquio, Moscou – chegam ao apogeu na era industrial, que faz o homem do campo marchar para a cidade, num fluxo migratório que nunca mais iria ter fim. Hoje, são cerca de duzentas cidades com mais de um milhão de habitantes, e mais de vinte acima dos 5 milhões, boa parte delas na América Latina (Cidade do México, São Paulo, Rio de Janeiro, Buenos Aires), Ásia (Xangai, Calcutá, Bombaim, Déli, Karachi) e África (Cairo, Lagos, Kinshasa). O mundo se torna cada vez mais urbano e a urbe um espaço problemático: já não há lugar para todos.

E aqui chegamos ao nosso tempo.

Esta é a estória. Ia um menino, com os Tios, passar dias no lugar onde se construía a grande cidade. Era uma viagem inventada no feliz; para ele produzia-se em caso de sonho. Saíam ainda com o escuro, o ar fino de cheiros desconhecidos. A Mãe e o Pai vinham trazê-lo ao aeroporto. A Tia e o Tio tomavam conta dele, justinhamente. Sorria-se, saudava-se, todos se ouviam e falavam. O avião era da Companhia, especial, de quatro lugares. Respondiam-lhe a todas as perguntas, até o piloto conversou com ele. O vôo ia ser pouco mais de duas horas. O menino fremia no  acorçôo, alegre de se rir para si, confortavelzinho. A vida podia às vezes raiar numa verdade extraordinária. Mesmo o afivelarem-lhe o cinto de segurança virava forte afago, de proteção, e logo novo senso de  esperança: ao não-sabido, ao mais.

E esta é uma história facilmente identificável, tanto quanto a grande cidade que “apenas começava a fazer-se, num semi-ermo, no chapadão,” pois saímos da leitura de “As Margens da Alegria”, o conto magistral de João Guimarães Rosa, certos de que se trata da construção da nova capital do País, cujo princípio, aos olhos daquele menino, foi o caos. Ao descer do seu “móvel mundo,” ele iria defrontar-se com um cenário de destruição e morte da fauna e flora. Um espaço em desencanto, onde tudo “perdia a eternidade.” O sonho, a esperança – não era o que Brasília representava? –, anuviavam-se na poeira, reduzidos a pontos de interrogação, “no seu pensamentozinho, ainda na fase hieroglífica.”

Metaforicamente recorro aqui ao engenho e arte de Guimarães Rosa para tentar dizer alguma coisa sobre o sonho modernizante deste País, a partir da era JK, quando governar era construir cidades e abrir estradas. Quando tínhamos todos de trocar a lida agrária pela vida urbana, a enxada pelos andaimes dos arranha-céus, o arado pelas britadeiras, o carro de bois pelos caminhões, o jegue e o cavalo pelos automóveis, a casa de sopapo e de alvenaria pelos barracos nas favelas, o candeeiro pela lâmpada, o pote d’água pela torneira, a rede pelo colchão de molas, o trabalho sem vínculo empregatício pela carteira assinada, a solidão dos ermos sertões pelo enxame das ruas; era deixar para trás o mundo arcaico e subir num pau-de-arara, com destino ao progresso, à civilização. De preferência, em São Paulo-Paraná. Melhor ainda: no ABC paulista, onde se construía o Brasil móvel, o nosso sonho movido a gasolina e óleo diesel.

Parece que foi ontem. E foi. Eu me recordo.

Meninos, eu vi a chegada do primeiro caminhão. O impacto foi maior do que as imagens na TV do homem pisando na Lua.

Primeiro, foi a visão fantasmagórica de dois imensos olhos acesos que apontaram de repente na Ladeira Grande. Depois, a inquietação para saber-se de que se tratava o estranho objeto luminoso, mais amedrontador do que o fogo-fátuo, pois roncava e emitia sons de um instrumento musical desconhecido naquelas brenhas – fon-fon –, aumentando de intensidade à medida em que o objeto não-identificado se aproximava. E ele chegou mesmo, como um celerado. Volumoso, poderoso, assombroso. Mas temente a Deus, pois passou a tocar um bendito: “Louvando a Maria, o povo fiel…” Parecia querer anunciar-se como um enviado dos céus.

Para o menino desta história, foi um Deus-nos-acuda. Pedi pernas para correr e me esconder daquela assombração, muito mais apavorante do que ashistórias de zumbis, lobisomens, mulas sem-cabeça, boitatás, almas penadas, gralhas mal-assombradas.

Na manhã seguinte lá estava ele, repousando debaixo de uma árvore. Grandão e perigoso. Mesmo de longe o bicho dava medo. Mantendo distância, aos poucos o menino foi se informando do que se tratava. Mas só fui me dar conta da revolução que a chegada do caminhão causara àquele remoto sertão muito tempo depois.

Ele espalhou nos nossos ares o cheiro da gasolina. As garotas do lugar endoideceram. Ninguém ali cheirava igual ao motorista do caminhão. Nem se vestia do seu jeito e falava ao seu modo. Tabaréus da roça, nunca mais. Agora elas ficavam de olho na Ladeira Grande, esperando algum rapaz da cidade. Humilhados e ofendidos, nós, os indesejados rapazes da roça, assim que vestíamos umas mal-ajambradas calças compridas e nos sentíamos próximos da idade adulta, passávamos a sonhar em dar o fora. Queríamos ser como ele, o motorista. A chegada do caminhão era o corte epistemológico do sertão.

Tinha de acontecer. Um dia eu também ia subir num caminhão no rumo de uma cidade. E depois da primeira veio a segunda, a terceira, e outra e mais outra. Até chegar aqui,  para contar a história.

Comecemos pelo aeroporto Santos Dumont, onde um dia um rapaz de vinte anos chegou, olhou a cidade de longe e foi embora. Eu me lembro: era uma bela tarde de janeiro, o mês do Rio. Céu de brigadeiro. O esplêndido azul de Machado de Assis. O azul demais de Vinícius de Moraes. Ano: 1961. O passageiro estava em trânsito. Vinha da Bahia com destino a São Paulo. Desceu aqui para fazer uma conexão, depois de cinco horas preso numa cadeira de uma geringonça ensurdecedora e vagarosa, relíquia aeronáutica da Segunda Grande Guerra. Um pau-de-arara do ar chamado curtis commander que, mal avistava uma pista de aterrissagem, ia baixando. Descer no Rio havia sido uma bênção. Para os seus ouvidos, suas pernas, seus olhos. Assim o vejo: olhando a cidade por trás dos vidros que o enjaulavam no saguão do aeroporto, enquanto aguardava a chamada para o embarque. Azul era também a cor do seu paletó. Ele estava convenientemente vestido para a sua primeira viagem de avião. Trajava até uma gravata vermelha sobre uma camisa branca. E os seus sapatos espelhavam, de tão bem lustrados. Numa das mãos, portava uma maleta com tudo o que possuía de  seu, aos vinte anos – o que incluía meia dúzia de livros – além da roupa do corpo. Já que não podia sair, contentou-se em olhar à distância a cidade que só conhecia de prosa e verso, cinema e canções. E tudo nela, que vinha dela, o fascinava. E dava medo. Imaginava-a fora da rota dos imigrantes, inatingível para principiantes. O Rio era a corte – dos sabidos e malandros. Suas artes e letras, sua natureza deslumbrante o atraíam. “Deus fez o mundo em sete dias, dos quais tirou um para fazer o Rio de Janeiro,” dizia a voz de ouro de Luiz Jatobá, num documentário de Jean-Manzon. Mas a manchete do jornal comprado na banca do aeroporto o amedrontava. Era sobre uma operação de extermínio chamada de mata-mendigo. E ali estava ele, entre duas visões da cidade: uma sedutora, outra assustadora. Teve vontade de ficar. A chamada para o vôo o levou em frente. Tinha que ir para São Paulo. Assim estava escrito na sua passagem. Era um baiano do interior, um tímido roceiro, e estava indo para a locomotiva da nação, onde sempre haveria de caber mais um. Voltaria ao Rio um dia, para vê-lo de perto, entrar nele, conhecê-lo nas solas dos seus sapatos, se para tanto não lhe faltasse coragem. E algum preparo. O Rio não era uma cidade para capiaus, tabaréus da roça.

Trinta e cinco anos depois, um passageiro diário das linhas urbanas Copacabana-Centro, Centro-Copacabana vai retornar ao Santos Dumont. A pé. Para tentar descobrir o que foi mesmo o que aquele garoto interiorano viu – e se por um momento poderiam voltar a ser a mesma pessoa, ainda capaz de ver a cidade com um olhar de novidade.

(O Centro das Nossas Desatenções)

A história continua. Dia após dia a cidade abre espaço para a escrita dos que chegam, atraídos pelas suas luzes verdes, seu orgiástico futuro. Se tudo for uma ilusão, pouco importa. Procuraremos fazer disso uma ficção.

Nunca fui santo (Anchieta e os índios: a propósito d’O auto de São Lourenço)

Conferência proferida em Paris, no Amphithéâtre Poincaré – “Carré des Sciences” –, da antiga Escola Politécnica, em 17 de novembro de 2000.

Comecemos com um esclarecimento: lemos o texto de José de Anchieta numa adaptação livre do escritor Walmir Ayala. Trata-se de uma publicação destinada ao circuito escolar, em edição datada de 1997. Na apresentação, o adaptador informa que O Auto de São Lourenço é composto de 1.493 versos, 867 deles em tupi, 595 em espanhol, um em guarani e 40 em português. De acordo com o parecer de Walmir Ayala, o texto em tupi é primário, em função da sua audiência: “o índio de inteligência curta e lenta”. A exígua parte em português também comunga da mesma elementariedade, pois era dirigida a brancos rudes, incultos, lançados à aventura da colonização: soldados, marujos, colonos e comerciantes. Já o texto em espanhol é cintilante, bem mais literário, por endereçar-se a uma pequena elite possivelmente presente no Brasil à época. E, naturalmente, por ser o espanhol a língua mãe de José de Anchieta.

Um exemplo da cintilação do texto em espanhol, considerado uma jóia de poesia mística, é a abertura do Primeiro Ato, na cena do martírio de São Lourenço, na tradução do já citado Ayala:

Cantam:

Por Jesus, meu Salvador,
Que morre por meus pecados,
Nestas brasas morro assado
Com fogo do seu amor.
Bom Jesus quando te vejo
Na cruz, por mim flagelado,
Eu por ti vivo queimado
Mil vezes morrer desejo.
Pois teu sangue redentor
Lavou minha culpa humana,
Arda eu pois nesta chama
Com fogo do teu amor…
(etc.)

E assim, com técnica tomada emprestada a Gil Vicente e dicção barroca, O Auto de São Lourenço foi representado pela primeira vez no terreiro da capela de São Lourenço, sobre o morro de São Lourenço, na aldeia de São Lourenço, hoje a cidade de Niterói, no estado do Rio de Janeiro. E no dia de São Lourenço, 10 de agosto. Presumivelmente no ano de 1583.

Obra de cunho sabidamente didático, a serviço da catequese e da moralização dos costumes, O Auto de São Lourenço é um singelo poema dramático, rico de imagens. Mas é, sobretudo, uma peça de propaganda, de difusão dos dogmas da Igreja Católica, numa terra sem fé, sem rei e sem lei, e onde, na visão dos jesuítas, o diabo pintava e bordava. O demo era o índio, que levava os portugueses a caírem nas tentações de uma natureza luxuriante, do cio da terra, de uma vida selvagem sempre em festa: sol, sexo, cauim, mar e selva. Eta vida boa! Imaginemos o efeito desse excitante cenário para aqueles solitários navegantes que penaram meses e meses na travessia do Atlântico em busca de uma sombra sob as árvores das patacas, o pau-brasil. Com tanta filha de Eva a desfilar do jeito que veio ao mundo, os náufragos, aventureiros e degredados que aportaram às costas do Brasil não hesitaram em despachar o pecado de volta para o além-mar. E caíram na farra. Afinal, os franceses já não haviam descoberto que não existia pecado no lado de lá do Equador? Ah, os franceses! Eles levavam José de Anchieta ao desespero. À loucura.

Leiamos a carta que o santo homem escreveu à Corte, em Lisboa:

A vida dos franceses que estão neste Rio é já não somente apartada da Igreja Católica, mas também feita selvagem; vivem conforme aos índios, comendo, bebendo, bailando e cantando com eles; pintam-se com suas tintas pretas e vermelhas, adornando-se com penas dos pássaros, andando nus às vezes, só com uns calções, e finalmente matando contrários, segundo o rito dos mesmos índios, e tomando novos nomes como eles, de maneira que não lhes falta mais que comer carne humana, que no mais sua vida é corruptíssima.

Mas não foi só por isso que Anchieta, em O Auto de São Lourenço, demonizou a (boa) relação dos nativos com os franceses. O que estava em jogo era o interesse lusitano de ocupar e colonizar o país. Para os portugueses, a presença francesa nestas paragens tornava-se um estorvo.

A didática moral de José de Anchieta tinha, portanto, um desdobramento político. O seu desempenho nessas selvas e águas de sonho e fúria foi de agente duplo, a serviço da Igreja e da Coroa. E com muita competência, diga-se. Ele foi um missionário obstinado, incansável, que fez o melhor uso possível da comunicação para atingir os seus fins. Hoje, diríamos ter-se havido nessas terras ignotas como um comunicador imbatível. Usou o sermão, a poesia e o teatro como instrumentos de conquista de corações e mentes. Recorreu ao corpo-a-corpo em suas louváveis ações assistencialistas, facilitadas pelo seu conhecimento do tupi-guarani, chegando a escrever uma pequena gramática dessa língua, na qual poetou de forma participante, panfletária, maniqueísta. E com muita criatividade, como prova O Auto de São Lourenço.

E o que é esse seu auto?

A eterna peleja do Bem contra o Mal, santos x pecadores, anjos x demônios, canibais x cristãos, enfim, Deus e o Diabo na Terra do Sol.

O Bem – A fé cristã e/ou a moral e dogmas da Igreja Católica.

O Mal – Os costumes do Novo Mundo, incluindo-se nisso os rituais antropofágicos do velho povo que aqui já estava havia 15 ou 20 mil anos quando os europeus chegaram com sua santa fé, e dispostos a convertê-lo a ela, subjugá-lo e até mesmo eliminá-lo, em caso de disposição em contrário, pois assim estava escrito na bula Inter Coetera, assinada pelo Papa Alexandre VI, em 4 de maio de 1493, na qual outorgava aos descobridores de novas terras em todo o planeta “a salvação das almas, abatendo-se as nações bárbaras e reduzindo-as à fé católica”. Obedecida ao pé da letra pelos conquistadores espanhóis e portugueses, a bula de Alexandre VI significou, para os silvícolas das Américas, um passaporte para o inferno. O terror instalado nos territórios recém-conquistados levou o Papa Paulo III a emitir uma contra-ordem, em 28 de maio de 1537, quando, na sua bula Universibus Cristi fidelibus, reconheceu os índios como  “homens iguais aos outros, com o direito à sua liberdade e a possuir e gozar os seus bens ainda que não estivessem convertidos”. Mas Paulo III estava longe demais dos campos de batalha. Sua mensagem não surtiu o menor efeito.

A prova disso foi a tese apresentada pelo dominicano Juan Ginés de Sepúlveda, na reunião do Concílio de Trento realizada em Valadolid, na Espanha, em 1550, defendendo a servidão natural dos selvagens e a justiça do extermínio deles. Se por um lado a crueza da tese era chocante, a ponto de dividir o mundo católico, por outro não era novidade, pois já vinha sendo aplicada em larga escala. Era a “guerra justa” contra os hereges, ou seja, os índios rebeldes à catequização. A mesma que Anchieta iria defender no Brasil. Sempre que encontrava resistência à sua missão evangelizadora, proclamava que a melhor catequese era a espada e a vara de ferro.

Soldado exemplar da Companhia de Jesus, o Exército de Deus que surgiu na linha de frente da Contra-Reforma para dar combate ao protestantismo “judaizante”, José de Anchieta fez da palavra a sua arma. Em O Auto de São Lourenço ele pôs no inferno os seus personagens indígenas, que em realidade foram guerreiros tupinambás do Rio de Janeiro, e que preferiram morrer de pé, lutando, até o último homem, a se deixar catequizar ou escravizar. A esse respeito, o auto de Anchieta não deixa de ser uma sublimação da ação pelo pensamento, ou, como nos sonhos, a realização inconsciente de um desejo: quem sabe ele teria desejado passar dos bastidores para o palco das batalhas, junto com os soldados que, efetivamente, mandaram para o inferno os rebeldes tupinambás aglutinados na Confederação dos Tamoios, da qual não sobrou um único índio para contar a história, 16 anos antes desse auto ser representado? Nesse dia, o dia do juízo final das tribos confederadas, Anchieta estava lá – por trás das barricadas.

Considerando-se os antecedentes dos personagens, pode-se até deduzir que O Auto de São Lourenço é também a representação simbólica de uma dupla vingança de José de Anchieta. Aqui ele colocou no mesmo saco, quer dizer, no mesmo inferno, os imperadores romanos algozes de São Lourenço e os líderes indígenas que não rezaram pelo catecismo dos jesuítas, numa associação metafórica entre os martírios dos cristãos nas grelhas e os rituais canibalísticos. Uns e outros mereceriam a condenação eterna, pelos seus pecados sem remissão. E que o terror imposto por Deus aos condenados viesse a servir de exemplo para uma platéia de índios escravizados e colonos broncos.

A ficha técnica do auto:

Personagens: Guaxará, rei dos diabos. Aimberê e Saravaia, criados de Guaxará. Taturama, Urubu e Jaguaruçu, companheiros dos diabos. Valeriano e Décio, imperadores romanos. São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro. São Lourenço, padroeiro da aldeia de São Lourenço. E mais: uma velha, um anjo, o Temor de Deus, o Amor de Deus, cativos e acompanhantes.

Sinopse do auto:

Após a cena do martírio de São Lourenço, Guaxará chama Aimberê e Saravaia para ajudarem a perverter a aldeia. São Lourenço a defende, são Sebastião prende os demônios. Um anjo manda-os sufocarem Décio e Valeriano. Quatro companheiros acorrem para auxiliar os demônios. Os imperadores recordam façanhas, quando Aimberê se aproxima, o calor que se desprende dele abrasa os imperadores, que suplicam a morte. O Anjo, o Temor de Deus e o Amor de Deus aconselham a caridade, contrição e confiança em são Lourenço. Faz-se o enterro do santo. Meninos índios dançam.

Quem foi cada personagem principal desta história:

São Lourenço, o mártir. Diácono da igreja de Roma pelos anos 250, quando o imperador romano passou a ver no crescimento do cristianismo uma ameaça ao seu trono, mandando fechar e confiscar todos os lugares de culto. Ao ser preso e conduzido ao martírio, o papa Sisto II encarregou Lourenço de distribuir tudo o que tinha aos pobres. Mas o imperador exigiu que ele lhe entregasse todos os tesouros da igreja, dos quais tinha ouvido falar. Lourenço, então, reuniu e apresentou-lhe toda a ralé romana, dizendo: “Eis aqui os nossos tesouros, que nunca diminuem e podem ser encontrados em toda parte”. Por causa disso, foi posto na grelha, no dia 10 de agosto de 258. Enquanto era queimado num braseiro, ainda teve ânimo de fazer uma piada para o carrasco: “Vira-me, que já estou bem assado deste lado”.

Roma dedicou-lhe 34 igrejas, uma honra maior do que as merecidas pelos seus padroeiros, São Pedro e São Paulo. São Lourenço era o padroeiro da aldeia onde o auto foi representado pela primeira vez.

São Sebastião (245 – 288). Natural da cidade de Narvonne, França, educou-se em Milão, terra natal da sua mãe, uma cristã fervorosa. Ao atingir a idade adulta, tornou-se militar, chegando a ser nomeado comandante da guarda pessoal do imperador Deocleciano. Quando descobriram que Sebastião era cristão, condenaram-no a morrer por flechadas. Os arqueiros deram-no por morto, mas seus ferimentos foram curados pela viúva de outro mártir, São Castulo. Ao saber disso, Diocleciano enfureceu-se e ordenou que Sebastião fosse surrado a pauladas até morrer. O seu dia é 20 de janeiro e o seu emblema, uma flecha, motivos que o levaram a tornar-se o padroeiro do Rio de Janeiro. Foi no dia 20 de janeiro de 1567 que os portugueses liquidaram a Confederação dos Tamoios, matando todos os confederados e apossando-se definitivamente da cidade.

Valeriano – Publius Vicinius Valerianus foi o imperador que mandou prender e martirizar São Lourenço.

Décio – Caio Méssius Quintus Valerianus Trajanus, imperador romano de 249 a 251. Foi quem desencadeou a primeira perseguição sistemática aos cristãos, em 250.

Guaxará – Como poderoso chefe indígena de Cabo Frio, participou das lutas da Confederação dos Tamoios. Em 1566, comandando 180 canoas de guerra, deu combate aos portugueses na baía de Guanabara, numa longa batalha naval. Foi assassinado pelos soldados lusitanos, a 13 de julho daquele ano.

Saravaia – Outro grande chefe, também integrante da Confederação dos Tamoios.

Aimberê – Cacique da aldeia de Uruçumirim, cujo território ia da Glória ao Flamengo, no Rio de Janeiro, foi o fundador da Confederação dos Tamoios, entre os anos de 1554 e 1557, unindo todas as tribos inimigas, de São Vicente, no litoral de São Paulo, a Cabo Frio, no litoral fluminense, na maior organização de resistência nativa que o país teve. Sua legenda de grande guerreiro só é superada pela de Cunhambebe, o maior líder indígena dos quinhentos, que foi cortejado por Villegagnon como chefe de Estado e rei do Brasil.

Na primeira grande assembléia dos indígenas confederados, realizada em Ubatuba, no litoral paulista – e que ainda se chamava Yperoig –, Aimberê propôs o nome de Cunhambebe para ser o chefe supremo da Confederação dos Tamoios e foi ovacionado estrondosamente. O grande morubixaba, que se orgulhava de ter nas veias o sangue de mais de 5 mil inimigos, a maioria portugueses, emocionou-se com a aprovação unânime de seu nome. E assumiu o comando dando o seu grito de guerra: “PERÓS!” O que significava: ferozes! E foi aí que a terra tremeu, nas fazendas e engenhos de açúcar dos escravizadores de índios, entre os quais se destacavam Brás Cubas, em Santos e São Vicente, e João Ramalho, por todo o planalto de Piratininga, até onde é hoje a cidade de São Paulo.

Com a morte de Cunhambebe, em 1557, vitimado por uma estranha epidemia levada pelos europeus, Aimberê passou a comandar a Confederação dos Tamoios. E morreu lutando, na batalha final do Rio de Janeiro, em 1567. Essa batalha, aliás, foi insuflada por José de Anchieta, que foi de São Vicente à Bahia, para convencer Mem de Sá, então o governador-geral do Brasil, a liquidar de vez com “a brava e carniceira nação, cujas queixadas ainda estão cheias do sangue dos portugueses”. E foi uma carnificina. Os soldados de Mem de Sá e de seu sobrinho Estácio enlouqueceram com a vitória e avançaram sobre a praça da guerra, cortando as cabeças dos cadáveres e enfiando-as em estacas. Essa praça era uma enorme área, onde estão hoje dois famosos bairros do Rio de Janeiro, o Flamengo e a Glória, a glória das cabeças cortadas. Morreram todos, inclusive uns 30 franceses que haviam aderido ao sistema de vida tribal, entre eles o genro de Aimberê, marido de sua filha Potira, de nome Ernesto, que o sogro chamava de papagaio louro.

Jose de Anchieta tinha um verdadeiro pavor de Aimberê, que descreveu como “homem alto, seco, de catadura triste e carregada, e mui cruel”.

Encerramos este episódio com um esclarecimento: tamoio nunca foi nome de tribo. Tamoio quer dizer o mais velho da terra (“tamuya”), o mais antigo do lugar. Logo, a Confederação dos Tamoios significava a Confederação dos Nativos.

O Apóstolo do Novo Mundo:

Tido e havido como Apóstolo do Novo Mundo, Santo do Brasil e fundador da literatura brasileira, José de Anchieta nasceu em São Cristóvão de la Laguna, capital de Tenerife, nas ilhas Canárias, em 19 de março de 1534. Em 1551, entrou para o Colégio dos Jesuítas em Coimbra. Por motivos de saúde, mudou-se para o Brasil em 1553. Em 25 de janeiro de 1554, ajudou o padre Manuel da Nóbrega na fundação do Colégio de São Paulo, em São Vicente.

A bem dizer, Anchieta foi o maior embaixador que Portugal teve no Brasil, por todo o século XVI. Seus dotes diplomáticos eram insuperáveis. Tinha uma coragem pessoal e uma autoconfiança surpreendentes, ainda mais levando-se em conta o seu porte físico nada privilegiado. Era capaz de adentrar territórios indígenas sublevados e convencer os chefes mais exaltados de que não era um português igual aos outros, e que não aprovava as atrocidades cometidas pelos seus patrícios. Em 1563 foi incumbido por Mem de Sá de tentar a pacificação dos tamoios, que vinham impondo sucessivas derrotas aos fazendeiros e donos de engenhos numa vasta região conflagrada. Arrastando um Manuel da Nóbrega doente e com os pés em chagas, Anchieta empreendeu uma expedição arriscada a Ubatuba onde, depois de longas conversações, acabou ficando naquela aldeia como refém, enquanto Aimberê, o chefe supremo, negociava com os administradores portugueses de São Vicente e de Piratininga as suas condições para um acordo de paz, sendo a principal delas a libertação de todos os índios em cativeiro. Anchieta, durante a lenta e dramática espera pelo desenrolar das negociações, escreveu nas areias da praia de Ubatuba o seu célebre poema à Virgem (De Beata virgini Dei matre Maria). Quando, finalmente, a paz foi conseguida e ele mandado de volta para casa, garantiu que, se dependesse dos portugueses, o acordo não seria quebrado. Mas foi, um ano depois. Por eles mesmos, os que pediram a paz.

Em 1567, tomou parte ativa na conquista definitiva do Rio de Janeiro, por Mem de Sá, tendo exercido vários cargos administrativo em São Vicente, até 1577. Foi elevado a provincial, na Bahia, em 1578. Da Bahia foi a Pernambuco, voltou a São Vicente e passou a residir no Rio de Janeiro. Indo e vindo de um lado a outro, em 1585 ficou bem doente e deixou o cargo de provincial. Voltou ao Rio em 1586.

O Apóstolo do Novo Mundo viveu 44 anos no Brasil. Morreu no dia 9 de junho de 1597, aos 63 anos, no estado do Espírito Santo, e num lugar chamado Reritiba, que hoje é a cidade de Anchieta. E entrou para a nossa História como o José do Brasil, aquele que o país inteiro espera ver canonizado, para levantar a nossa auto-estima cristã, já que nunca tivemos um santo.

Vai ver, Anchieta jamais o será. Pela simples razão de também haver cometido os seus pecados, como todos nós.

Amém.

Notas de um escritor nativo

Aula Inaugural do Instituto de Letras da UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 28/03/2000

Queridos calouros:

Vocês estão chegando à universidade no ano em que o mundo ia acabar. Para a sorte de nós todos, as profecias não se cumpriram, embora algumas vezes me baixe a sensação de que este velho mundo já acabou mesmo e eu próprio não seja mais do que um zumbi martirizado do tempo, a contemplar na linha do horizonte a fumaça do grande incêndio anunciado desde a minha infância, quando, ao pôr-do-sol de cada dia, os homens guardavam as suas enxadas, para pitar um cigarro de palha e filosofar diante do crepúsculo. A vermelhidão do céu era sempre motivo de reflexões sobre o fim do mundo que, na crença de todo um povo, não passaria do ano dois mil. Imaginem o que é alguém ter se criado num cenário como este, onde todo dia era o dia do crepúsculo do mundo. Ou ia ficar doido, ou se tornar um romancista.

Numa carta datada de dois de julho de 1991, que guardo até hoje, o jornalista e escritor Geneton Moraes Neto relata o seguinte: “O sol uma vez parecia que ia pegar fogo de verdade no céu de uma cidade do interior, num final de tarde da minha infância. Minha mãe me dizia que aquilo podia ser o fim do mundo. O céu nunca tinha ficado tão vermelho. Fiquei esperando, naquele fim de tarde, o incêndio que nunca começou. Se eu fosse escrever um conto para jogar no fundo da gaveta, diria que a vida não pode ser um incêndio adiado. É melhor que o céu pegue fogo logo.”

Não é difícil compreendermos a angústia de uma criança diante dessa espera, a espera do fim do mundo, que o Geneton tão bem evocou naquela carta. Nossos pais creditavam-na ao lendário Antônio Conselheiro, aquele que liderou o movimento messiânico que culminou com a Guerra de Canudos, na Bahia, de 1896 a 1897, não por acaso chamada de “a guerra do fim do mundo.” Na verdade a profecia vem das Escrituras, na advertência de Deus a Noé, depois do dilúvio. Assim está escrito: “E Deus concedeu a Noé o sinal do arco-íris; não mais a água – da próxima vez, o fogo.”

Nos anos sessenta um escritor norte-americano chamado James Baldwin, tão admirável quanto duplamente discriminado, por ser negro e homossexual, transformou o versículo bíblico sobre o fim do mundo num libelo impressionante contra o racismo, ao escrever um livro intitulado”Da próxima vez, o fogo,” que virou best-seller e se tornou um documento importante para os movimentos pelos direitos civis nos Estados Unidos. E aqui já começamos a trazer a questão para o nosso campo – o das letras. Para propor uma releitura da história do fim do mundo que não houve. Como metáfora.

Tragamos o fogo para dentro de nós mesmos, como o James Baldwin o levou às consciências norte-americanas. Para incendiar o mundo – de idéias, arte e beleza. E esse é que é o incêndio que não pode ser adiado.

Agora, fim de mundo mesmo é morrer de sede na terra de Canaã.

É importar feijão numa terra onde, em se plantando, “nela dar-se-á tudo.”

São as desigualdades gritantes que se escancaram diante de nós.

É todo esse quadro deplorável de injustiças, crianças sem escolas, pais sem emprego, etc etc, etc, corrupções, impunidades, a geléia geral que a TV Globo anuncia, a nós todos, espectadores impotentes diante de uma realidade de violência ameaçada pelo caos.

Como dizia o finado André Gide, por favor, não me entendam depressa demais. Não é meu propósito aqui tornar-me um panfletário fora de tempo e lugar. Sei. Seria mais palatável oferecer-lhes umas abobrinhas de fácil digestão. Mas aí o espírito do finado Oduvaldo Viana Filho, o nosso Vianinha, aquele cristão que morreu antes da hora, me convoca a uma penosa reflexão: “O brasileiro precisa olhar no olho a tragédia do seu país.” Um caso a pensar, embora eu desconfie, com ou sem razão, que o pensar, hoje, é um assunto fora de moda. Mas venho de um tempo em que as pessoas pensavam. E com arte e beleza. Como o Gilberto Gil, por exemplo, quando cantava coisas assim: “Eu, brasileiro, confesso/ minha culpa, meu degredo/ meu sonho desesperado/meu irrevelado segredo/ Isto aqui é o fim do mundo/ isto aqui é o fim do mundo…/ Pão seco de cada dia/ tropical melancolia… Isto aqui é o fim do mundo/ isto aqui é o fim do mundo…”

Enquanto penso que já não mais pensamos, eis que chega um poeta do Ceará, chamado Adriano Espínola, e me entrega um poema que é um primor de síntese, intitulado “Avenida Brasil”. É, Avenida Brasil. E é assim: “Atenção, devagar: / assalto à mão armada/ a 100 m. / Atenção, não olhe: / espancamento e estupro/ a 200 m./ Atenção, não se abale: / assassinato e roubo / há 500 anos.”

Agora chegamos a outro fim de mundo: a comemoração destes 500 anos. Afinal, o que temos a comemorar? O extermínio, a cada século, de um milhão de indígenas, o povo que estava aqui quando os brancos chegaram? A escravidão dos negros, apanhados a laço em suas terras e trazidos debaixo de chicote, nos famigerados navios negreiros? A fúria extrativista dos invasores, a expropiar a flora, a fauna e o solo? Não. A conquista e colonização dessa terra não foram feitas com rosas, sabemos todos. Mas com cobiça, violência e sangue.

Ora, se até os vice-reis do Rio de Janeiro, que governaram o país de 1763 a 1808, ficavam horrorizados com a escória que encontraram aqui, por que nós também não vamos nos horrorizar, hoje, ao lermos os relatos deles à corte portuguesa? Nesses relatos, eles diziam que os homens que cá estavam não vieram para construir um país, mas para se enriquecerem o mais depressa possível – nem que para isso tivessem que arrasasar a terra. Podem conferir no livro “O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis”, do extraordinário cronista carioca Luiz Edmundo, autor também de “O Rio de Janeiro no tempo de D. João VI” e “O Rio de Janeiro do meu tempo”, obras que, entre tantas outras, nos levarão a concluir que as bandas podres vêm há muito do tempo, no país dos náufragos, piratas e aventureiros. Qualquer semelhança entre o passado e o presente, não será mera coincidência.

Ainda assim, ou seja, mesmo aos trancos e barrancos, o país se fez. Temos um país, sim, multifacetado, multiracial, multicultural, multitudo, com um potencial humano fantástico, mas ainda atado aos grilhões do seu passado colonial e subjugado, além da conta, creio eu, às reengenharias das novas dominações universais. Quinhentos anos depois do tão comemorado descobrimento, ainda não atingimos os níveis desejáveis na conquista e repasse de conhecimentos, distribuição de riquezas e tudo o mais que vocês sabem por experiência própria. O pior é que podia ser bem pior. Sempre que penso nisso – e estou sempre pensando nisso -, rezo um Pai Nosso e uma Ave-Maria pela boa alma de Napoleão Bonaparte, o que pôs D. João VI para correr, até dar com seus costados nestas bandas, e trazendo toda a corte portuguesa, que aqui, nesta cidade, se instalaria, revertendo o mando, com o Rio de Janeiro passando a ser a sede do poder, e a comandar o império português, na maior revolução administrativa da nossa história.

Se há um personagem dessa história que precisa ser olhado com respeito e, até, alguma ternura, é ele mesmo, o desafortunado D. João VI. Achincalhado no cais de Lisboa, quando até ovo podre lhe jogaram na cara, na sua fuga para o Brasil, ele viria amar verdadeiramente este País. Mas dele só nos lembramos pela beiçola, a feiúra, o seu lado grotesco beirando o ridículo, como o hábito de encher os bolsos com pedaços de frango, e pelos chifres com que a mulher enfeitava-lhe a cabeça, o que era público e notório. Com isso, esquecemos todo o bem que nos fez. Até à sua chegada, o Brasil não produzia sequer um alfinete. Na condição de colônia, dependia de Portugal para tudo. E como Portugal não produzia utilidades que pudessem atender as necessidades além-mar, havia carência de tudo: facas, tesouras, talheres etc. Como vocês sabem, D. João VI chegou à Bahia no dia 22 de janeiro de 1808. Seis dias depois, decretou a abertura dos portos às nações amigas, ou seja, à Inglaterra. Só que os ingleses se equivocaram na primeira remessa de mercadorias. Por pensarem que isto aqui ficava no Polo Norte, enviaram pesados cobertores e patins para o gelo, que ainda assim foram muito bem recebidos, tal era a carência de tudo. Os patins foram desfeitos e o seu material transformado em facas, garfos, tesouras. E os cobertores enviados para os garimpeiros em Minas Gerais. Ao se instalar no Rio, em lo. de abril de 1808, D. João VI revogou o alvará de 5 de janeiro de 1785, que proibia a instalação de manufaturas no Brasil. E foi aí que o País começou a prosperar de ano para ano, enquanto Portugal entrava em dificuldades. Não custa nada lembrar o mais que ele fez: trouxe os 14 mil livros e documentos, salvos do terremoto de Lisboa, em 1755, e que deram origem à Biblioteca Nacional; trouxe a primeira instituição de ensino superior do País, a Escola Naval, criada por sua mãe, D. Maria I, à semelhança da Escola Naval Britânica; criou o Jardim Botânico e a Escola de Astronomia; elevou o Brasil a Reino Unido de Portugal e Algarves, em 1815; em 1816, promoveu a vinda da Missão Artística Francesa, de tanta influência na arquitetura da cidade; em 1820, inaugurou a Praça do Comércio, onde hoje é a Casa França Brasil, que deu origem à Associação Comercial do Rio de Janeiro. Aqui, foi aclamado rei, em 1818, quando os comerciantes o saudaram como o libertador do comércio. Ao contrário de sua mulher, que cada vez mais odiava os brasileiros e o traía sem parar, D. João VI sentia-se bem no Rio de Janeiro. Mas Portugal, às voltas com prejuízos políticos e comerciais, exigia o seu regreso. Se ele não retornarsse a Lisboa, perderia o trono. Voltou, embora contrariado, em 1821, deixando o seu filho Pedro como regente. D. João VI morreu em 1826. Envenenado. Morreram também o médico, o cirurgião e o cozinheiro. Para não ficar testemunha. Foi uma queima de arquivo geral.

Grande personagem, esse D. João VI. Seu destino foi de uma teatralidade shakespeareana. Numa crônica comovente, o escritor português Raul Brandão pintou-lhe o seguinte retrato:

“Grotesco, feio, com a existência aos baldões, sem um bocadinho de ternura (a morte leva-lhe todos os amigos), rei ainda por cima, as suas anedotas, a sua vida, a sua figura, são ainda hoje motivo de chacota… E no fundo, sob essa capa ridícula, por baixo da barreira da papeira, da beiça, do olhar desconfiado, havia, houve sem dúvida uma ternura enorme. A mulher traiu-o; os filhos enganaram-no e mentiram-lhe; teve de fugir, de se livrar do veneno, das revoltas, da intriga… Esqueçamos-lhe a carcaça. Já hoje a figura está reduzida à sua verdadeira essência: passaram-lhe de vez as hemorróidas. É um homem simpático que fez neste mundo o bem que pôde. Foi ele quem povoou o mar do Brasil de sardinhas para os pobres comerem com pão. Plantou árvores. Amou – e foi talvez sob o grotesco uma alma delicada. Não seria uma grande inteligência nem um grande caráter – mas passou a vida a afligir-se. Por qualquer lado que encare é um motivo de chacota. É o senhor D. João VI – é o pataco – é o rapé – É a beiça… É – mas é também o melhor homem da sua época, e, sob o grotesco, encontra-se uma grande beleza escondida, sumida, escarnecida…”

Conclusão: se para Portugal a fuga de D. João VI foi o fim do mundo, para o Brasil foi o começo de um país.

Ao pensar nos grandes personagens da nossa História, ouço ao longe um hino da minha infância. Era assim:

“Glória aos homens, heróis desta pátria/ esta terra querida, que é o nosso Brasil…”

O meu herói é o maior de todos: tinha quase dois metros de altura. E seu grito de guerra fazia a terra tremer:

– PERÓS!

Meninos, eu conto: vem aí o grande chefe, trazendo um português amedrontado. E as mulheres da aldeia, muito assanhadas, já estão gritando: – Nossa comida está chegando!

Agora, com vocês, o guerreiro tupinambá Cunhambebe, o meu querido canibal.

Ele se orgulhava de ter nas veias o sangue de mais de cinco mil inimigos, muitos deles portugueses.

Estamos falando do primeiro chefe supremo da Confederação dos Tamoios que, entre os anos de 1554 e 1555, uniu todas as tribos inimigas, de São Vicente a Cabo Frio, na maior organização de resistência aos colonizadores que este país teve. Foi aí que o pau comeu, em combates sem tréguas.

Mas é preciso fazer aqui um esclarecimento: tamoio não foi nome de tribo, como muitos de nós somos levados a pensar. Tamoio significa o mais velho da terra, o mais velho do lugar. Logo, a Confederação dos Tamoios significava Confederação dos nativos.

O grande chefe Cunhambebe tinha um ódio mortal aos portugueses. Tanto, que ele podia ficar uma semana sem comer, se não tivesse um pedaço de carne lusitana para o seu repasto.

Bradava aos quatro ventos que os portugueses eram perós, ou seja, ferozes, traidores, mentirosos e covardes. Ele chamava os portugueses de covardes porque, sempre que apanhava um deles, o gajo se apressava em dizer que era francês, tentando escapar do porrete e de ser devorado. Cunhambebe era o índio amigo dos franceses, que se tornaram aliados dos tamoios, com os quais foram mais diplomáticos. Chegaram aqui para tratar de negócios e não de guerra. E, enquanto permutavam as utilidades da civilização européia – machados, foices, calções, perfumes e até os famosos espelhinhos -, por preciosidades da terra, do pau-brasil às aves e suas vistosas plumagens -, os franceses caíam na farra, enchendo a cara de cauim, a birita dos nativos, e indo às índias. Com tanta filha de Eva à solta, do jeito que Deus as havia posto no mundo, eles ficaram doidinhos. Doidões, melhor dizendo. Muitos deles não iriam voltar à França, nem amarrados.

Já os portugueses tinham outros propósitos. Queriam tomar a terra na marra e escravizar os seus donos. Foi aí que Cunhambebe enfureceu-se. E fez a terra tremer.

E onde ele pisava a terra tremia mesmo. Era um gigante, com uma força e uma coragem descomunais. O Átila da floresta. Exageradão em tudo, em tamanho e vaidade, tinha quatorze mulheres, quando aos outros caciques só eram permitidas quatro. Os franceses o tratavam como rei do Brasil. Tanto que foi hóspede de Villegaignon, o malfadado idealizador da França Antártica, ali na ilha que ainda hoje leva o seu nome, por trinta dias. E com todas as pompas de chefe de Estado. Cunhambebe foi também o primeiro brasileiro a ter a sua estampa publicada na Europa, na Galeria dos Homens Ilustres, do frade franciscano André Thevet, ainda nos anos 500. E o alemão Hans Staden, que foi seu prisioneiro, fez elogios às suas artes militares, chamando-o de chefe supremo. Ele nunca perdeu uma batalha. Mas não morreu de pé, lutando, como achava horrado morrer. Morreu na cama, em 1557, vitimado por uma estranha epidemia, que dizimou mais de trezentos membros da sua tribo. Sua morte provocou desolação e revolta. E sua aldeia, em Angra dos Reis, ficou pequena demais para receber os que compareceram ao seu funeral. Os tupinambás, assim como todos os índios confederados, acharam que a epidemia havia sido trazida pelos brancos, dentro de suas estratégias de guerra para eliminá-los.

O grande chefe Cunhambebe, que levou todo um povo a lutar até o último homem para não se deixar escravizar, não mereceu da História oficial mais do que notas de rodapés ou verbetes mínimos, como este aqui, assinado por um historiador chamado Rocha Pombo:

“Este índio foi o tipo do selvagem na sua expressão mais repelente. Tinha ele uma força e uma estatura e uma corpulência de Cíclope, uma coragem de bruto obsecado, uma dureza e ferocidade de monstro. Em outras condições daria um Átila, talvez ainda mais devastador. Devanecia-se de abalar a terra com o seu tropel. Nunca perdoou a um português.”

Pouco importa, meu querido canibal, a esta altura da peleja, como os tais historiadores o trataram. Sua estampa está no nosso imaginário não como de “um selvagem na sua expressão mais repelente”, mas como do mais temido chefe indígena brasileiro, com grandes brilhos de virtudes por trás da sua brutalidade, como um frade franciscano francês o descreveu. Você inscreveu a sua legenda como o senhor destas águas de sonho e fúria. Um herói da resistência. E de Cunhambebes bem que estamos necessitados.

A Confederação dos Tamoios foi uma utopia nativa que durou cerca de doze anos. Com a morte de Cunhambebe, o seu comando passou às mãos do bravo Aimberê, o cacique da aldeia de Uruçumirim, que ficava por ali onde hoje é o bairro do Flamengo. Foi liquidada em dois dias, 19 e 20 de março de 1567, quando Mém de Sá veio da Bahia, para dar reforço a seu sobrinho Estácio, que foi flechado no rosto e morreu um mês depois. O poder de fogo dos portugueses reduziu os tamoios confederados a cacos. Foi uma carnificina. A vitória levou as tropas de Mem de Sá à loucura. Cortaram as cabeças dos cadávares e as enfiaram nas estacas.

E era uma vez os grandes índios.

A partir daí, os brancos escreveram a história, como os seus legítimos donos.

E os índios foram transformados em alegorias de um carnaval que eles iniciaram em seus rituais canibalísticos. O carnaval que se tornou o maior espetáculo da Terra.

Meus considerados:

Já se disse que ação é personagem.

Que literatura é linguagem.

Que não existe literatura sem História, com H maiúsculo.

Literatura é tudo isso, sim senhores.

Mas é também delírio e indignação.

O primeiro poeta deste país foi um indignado. Chamava-se Bento Teixeira. Era um português do Porto e chegou a Pernambuco, no século XVI, com a idade de seis anos incompletos. Tornou-se um homem livre, boquirroto e debochado. Num certo sentido, e isso pela sua independência e personalidade briguenta, ele não deixa de ser uma espécie de precursor de Gregório de Matos. Foi tido como o primeiro livre-pensador do Brasil e “talvez o indivíduo que maior cultura possuía nas letras, tanto sagradas quanto profanas, em todo o século, em Pernambuco.” Teve ainda a seu crédito a primeira manifestação, em letra de forma, da literatura no Brasil, com a publicação de “Prosopopéia,” um poema heróico em decassílabo. Mas ele era um cristão novo. Foi perseguido, preso e condenado à prisão perpétua, em Lisboa, onde acabou por vir a ser libertado, a 30 de outubro de 1599, “pobre, só, fraco e muito doente.” Sua liberdade, porém, foi condicional: não podia sair de Lisboa. Ou seja: não teve o direito de voltar pra casa, em Pernambuco. Morreu aos 39 anos. E a História o esqueceu. Em 1995, o historiador paraibano Gilberto Vilar fez o que pôde para tirá-lo do esquecimento, ao publicar um livro intitulado O primeiro brasileiro, uma obra admirável, tanto do ponto de vista histórico quanto literário, que a TV Globo comprou para uma minisérie e engavetou. Isso para dizer que a nossa História está cheia de personagens em busca de autores. E para lembrar que as Santas Inquisições foram outro fim de mundo, como o Holocausto, o genocídio dos índios e a escravidão dos negros. Eis aí as quatro chagas do milênio.

Vida que segue, como dizia o finado João Saldanha.

Meus amigos…

Se o mundo ainda não acabou, então vamos ler.

Comecemos pela tumba de Oscar Wilde, no cemitério Père Lachaise, em Paris. Lá está escrito:

“Um mapa mundi que não inclua a Utopia não é digno de consulta, pois deixa de fora as terras onde a Humanidade está sempre aportando. Nelas aportando, sobe à gávea e, se divisa terras melhores, torna a içar velas. O progresso é a concretização de Utopias…” “O passado é o que o homem não deveria ter sido. O presente é o que o homem não deve ser. O futuro é o que os artistas são.” (…) “O Estado deve fazer o que é útil. O indivíduo deve fazer o que é belo.”

Benvindos às letras.

Processo criativo. Ou: Como uivar para a Lua numa noite sem a menor possibilidade de estrelas

UERJ, março de 1999

Em princípio, criar e coçar é só começar. Mas como é que se faz para começar?

Se tudo depende da primeira frase, já temos uma para entrar neste tema que vem despertando muita curiosidade, principalmente para aqueles que estão se iniciando no mundo das letras. Como se o processo criativo fosse a caixinha de Pandora que cada escritor guarda dentro de si. Essa busca ao tesouro começa com outra pergunta, curta e concreta, que pode gerar respostas longas e subjetivas, pois no entender deste já velho escriba não há arte mais abstrata do que a escrita. A pergunta é: “Como nasce uma história?”

Um escritor norte-americano chamado Henri Miller, hoje em desuso mas que fez muito sentido para a minha geração, definiu o processo criativo de uma forma um tanto quanto megalômana: “Deus fez o mundo em 7 dias. Depois entrou nele. Este o segredo da criação.” Já o nosso Glauber Rocha, um cineasta de vocação literária por excelência, e que tinha fama de delirante, baixou ao terreiro dos deuses afro-baianos, ao falar da gênese de seus filmes, em entrevista ao locutor que vos fala, quando do lançamento de Deus e o Diabo na Terra do Sol, em 1964. Disse ele: “O negócio é fazer mandinga e esperar o santo descer. Aí então a gente é bem capaz de fazer um take de 4 minutos, na mão, entre luz e sombra, entre foco e fora de foco, balançando ou não. Será possível ir aos infernos de outra maneira?” Clarice Lispector também confessou que às vezes ficava dias e dias, com os olhos na folha em branco, à espera de que o texto baixasse em seu teclado. Igual a qualquer um de nós, diante da telinha do computador, até que o milagre aconteça. Ou que uma voz salvadora sopre em nossos ouvidos: “Fé em si mesmo e mãos às teclas. Com sorte, você terá uma frase, ou um parágrafo, quem sabe uma página inteira que valha a pena.” E aí, coragem. Porque outras perguntinhas perturbadoras surgirão: “E agora? Como é que se faz para continuar?” E se uma Musa Inspiradora beijar-lhe as mãos, levando você ao êxtase, ao vórtice dos iluminados, ainda assim haverá ainda uma outra pergunta, a lhe deixar perdido no tempo e no espaço, completamente desnorteado: “Como vou terminar isso?” Sim, queridos, se o começo é difícil, o meio é uma tremenda mão-de-obra e o fim o ajuste de contas, como no Dia do Juízo. Uma só palavra fora de lugar e iremos para o inferno. Os leitores não anjos, cheios de candura para nossas besteiras.

O escritor aqui levou trinta anos para começar. Foram trinta anos lendo um livro atrás do outro, obsessivamente. Trinta anos pedindo socorro a Machado de Assis, Guimarães Rosa, Drummond, João Cabral, Maiakovski, Garcia Lorca, Walt Whitman, Rimbaud, Jorge Luís Borges, Vargas Llhosa, Garcia Márquez, Joyce, Faulkner, Hemingway, Scott Fitzgerald, Truman Capote, James Baldwin, Carson McCullers. Trinta anos lendo o Almanaque Capivarol e o Biotônico Fontoura, tanto quanto bula de remédio, para ver se achava a receita, enquanto cantava: “O teclado não me ama, o teclado não me quer. O teclado não me chama, de Baudelaire.” Trinta anos lendo rostos, ruas, becos, estradas, palácios, palhoças, igrejas, bordéis, campo e cidade, mar e sertão. E escrevendo. Para a cesta do lixo. Até que uma noite…

Era uma noite escura, sem a menor possibilidade de estrelas. E foi em São Paulo, esse país amigo ao Sul do Brasil, onde um dia William Faulkner, depois de ter bebido uma parte considerável do seu Prêmio Nobel, acordou numa ressaca miserável e, ao abrir a cortina do hotel para tentar saber em que cidade se encontrava, bateu na testa e disse: “Oh, my God, Chicago again?”

Pois foi lá mesmo, na locomotiva da nação, destino de todos os baianos, que o baiano aqui, numa noite de breu sem luar, percebeu que tinha algo nas mãos para começar, e que desta vez, quem sabe, seria para valer.

Estava sozinho num quarto de hotel barato da Alameda Barão de Limeira, tocando numa vitrolinha igualmente barata um disco de   Miles Davis, e repetindo a mesma faixa, o tempo todo. E a faixa do disco era uma velha e terna balada norte-americana chamada My funny Vallentine. A música do Dia dos Namorados. Só que no trompete de Miles Davis lembrava mais um lamento, pungente, um uivo lancinante. Foi aí que me lembrei do velho Faulkner, em Luz em Agosto: “É a memória, e não a dor, que faz você se lembrar de centenas de ruas selvagens e ermas.” Como lembrança puxa lembrança, me lembrei também de Fitzgerald, quando dizia: “Numa noite escura da alma, são sempre três horas da manhã.” O trompete de Miles Davis não apenas puxava essas leituras. Parecia interpretar os tormentos da minha geração. Uma parte dela ouvia Jimmy Hendrix e se entupia de LSD, até ir parar debaixo dos choques elétricos nos manicômios; outra parte gemia nos porões da ditadura, uivando até a morte para um luar inexistente. Pronto. Miles Davis acabava de soprar nos meus ouvidos o título que eu buscava há 30 anos: Um Cão Uivando para a Lua. Era só ir para o teclado e começar a história. Para encurtá-la: começou com a idéia de um louco batendo papo consigo mesmo. E de repente, não mais que de repente, o teclado andou. Agora, sim, eu e ele parecíamos nos entender, nos aceitar, com uma certa inimidade. E já que ele, o arisco teclado de antes, agora me deixava à vontade, fui em frente. E oito meses depois tinha um romance nas mãos. E foi como se tivesse tirado uma espinha da minha garganta. E depois do primeiro vieram outros, um após outro, mas nunca mais iria escrever um livro com tanta rapidez. É bom lembrar que por trás dele havia toda uma vida marcada, obsessivamente, pela busca de um texto. Aquele primeiro livro significou uma vitória sobre muitas mortes, porque eu vivia um terrível sentimento de morte, a cada tentativa fracassada, ao longo do percurso. E no entanto o fracasso faz parte do aprendizado. É a pilha de realimentação do seu processo, o limão que você pode transformar em limonada.

Muitos anos depois daquela feíssima porém bendita noite, vejo-me diante do mesmo e torturante impasse: como começar um romance. E era o oitavo romance! Outra vez uma tela em branco. Outra vez a sensação de estar de pote vazio, sem café no bule. Desta vez eu não iria ser socorrido por um gigante do jazz, mas por um Deus da chuva. Era domingo e começou a chover. Cheguei à janela do meu apartamento em Copacabana, ao pé de um morro, e fiquei olhando a chuva cair sobre as árvores. As folhas se eriçavam. Passarinhos cantavam. Aí me lembrei de um canário belga chamado Jacques Brel, ou melhor, de um trecho de sua música mais famosa, Ne me quites pas: “Eu te oferecerei, pérolas de chuva, vindas de um país, onde nunca chove.” Isso me remeteu para o lugar em que nasci, uma terra chegada a uma seca. Quando chovia, era uma festa: os homens vestiam ternos brancos e rolavam na lama, felizes da vida, loucos de alegria. Corri para o teclado e bati lá: “Eis aí. Eis-me de regresso a essa terra de filósofos e loucos, a começar pelo meu pai, que disso tudo tem um pouco.” E assim nasceu um romance chamado O Cachorro e o Lobo.

Para terminar: eu vim de longe, e já nem sei mais de onde é que eu vim, como cantava Vinícius de Morais, num afro-samba memorável, que ele compôs com Baden Powell. Queimei muito as solas dos pés no chão quente para chegar a uma escola. Venho de um mundo rural, um lugar esquecido nos confins do tempo, onde se achar um livro era uma odisséia. Ainda assim um dia cheguei à palavra escrita. Foi a maior conquista da minha vida. Portanto, nunca achei escrever um sofrimento ou um ato solitário. Solidão é a do boi no campo e a dos homens nas ruas – já dizia Carlos Drummond de Andrade. Solidão é quando termino um romance. É quando todos aqueles personagens que estavam ali comigo, batendo um papo que varava o tempo, vão embora, sem me dizer adeus. Escrever é, para este escriba, um barato. Claro que não é fácil. Mas, se fosse fácil, que graça teria?

*Texto apresentado na aula inaugural do Projeto Escritor Visitante, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, em março de 1999.