Anotações sobre o romance

Introdução às oficinas literárias Para gostar de ler (e escrever) romances, realizadas na Casa do Saber do Rio de Janeiro, às terças-feiras de julho de 2009.

1.

Segundo o mestre Aurélio, o romance é a “transposição artística da vida em longa narrativa dos atos e sentimentos de personagens imaginárias”.

2.

Mestre Houaiss: “Obra narrativa escrita em língua românica, em prosa ou em verso”.
“Prosa, mais ou menos longa, na qual se narram fatos imaginários, às vezes inspirados em fatos reais, cujo centro de interesse pode estar no relato de aventuras, no estudo de costumes ou tipos psicológicos, na crítica social etc.”

3.

Outras definições:

“Composição poética narrativa do romanceiro popular, em particular a de tema amoroso”.

“Descrição marcada pelo exagero e pela fantasia (vai fazer um romance para contar um simples incidente…)”.

“Fato real que, por ser muito complicado, parece inacreditável.”

Etc.

4.

Grande Enciclopédia Larousse Cultural: “Gênero literário em prosa relativamente longa, caracterizado pela narração de acontecimentos fictícios, mas geralmente verossímeis, relacionados a uma ação centrada num enredo, na análise de personagens, ou no exame de uma situação”.

Portanto, o romance requer narrador/narradora, personagem central/ protagonista (ou narrador/personagem), personagens secundários, cenário, trama, subtramas, fabulação, começo, meio e fim, não necessariamente nesta ordem.

5.

De Honoré de Balzac: “É preciso desfolhar toda a vida social para ser um verdadeiro romancista, porque o romance é a história secreta das nações”.

6.

Roland Barthes: “Ato de sociabilidade, o romance institui a literatura”.

7.

Alain Robbe-Grillet: “Só a escrita romanesca constitui a realidade”.

8.

Antes de sabermos que o romance é tudo isso e mais alguma coisa (por exemplo: que em parte é um legado da Antiguidade, e sucedâneo do poema épico, mas que na Europa medieval considerava-se romance um fenômeno de língua, ou seja, tudo o que não era escrito em latim), pois antes que fôssemos informados de tudo isso, a palavra já descia melodiosamente em nossos ouvidos, por significar namoro, caso amoroso etc., deixando-nos a imaginar enredos que incluíam encontros fortuitos e lenços perfumados. Nas tertúlias ancestrais aos pés dos fogões, para espantar o medo da noite num remoto sertão, romance era uma história de amor e aventura cantada ao som de uma viola, como a do Pavão misterioso, ou de bravura, como A chegada de Lampião ao inferno. Não é por acaso que a poesia de cordel, forte legado ibérico ao Nordeste brasileiro, popularizou-se como rimance, significando isto romance com rima.

9.

“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. Assim começa o Evangelho Segundo São João. Para nos dizer que o dom da palavra é uma graça divina. Ao dar fala ao homem, Deus o teria distinguido no reino animal. Afinal, Ele o criara à sua imagem e semelhança. “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito Pai, cheio de graça e de verdade”.

Recorro a este memorável texto bíblico por dois motivos. Primeiro, pela sua beleza literária. Segundo: considerada o livro dos livros, o mais lido de todos os tempos, no mundo ocidental, a Bíblia é um caso exemplar de fabulação, a começar pelo Primeiro livro de Moisés chamado Gênesis, o mito dos mitos, que verdade científica alguma conseguiria suplantar no imaginário humano. Revisitemos o seu início, ainda que tão somente pelo prazer de reler o mais admirável de todos os textos:

  No princípio criou Deus os céus e a terra.
         E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sob a face do abismo; e o espírito de Deus se movia sobre a face das águas.
         E disse Deus: Haja luz. E houve luz.
         E viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação entre luz e as trevas.
         E Deus chamou a luz Dia; e às trevas chamou Noite. E foi a tarde e a manhã o dia primeiro.
         Etc.

Tão conhecida quanto essa história é a da própria Bíblia.

Nascida no deserto com Moisés, no século 13 antes de Cristo, ela reúne uma coletânea de livros escritos por diferentes autores ao longo de vários séculos. Os que se relacionam à aliança de Deus com o povo judeu estão no Antigo Testamento. Já o Novo Testamento apresenta os relatos concernentes à aliança de Jesus Cristo com todos os povos. O conjunto dessa obra sagrada tem exercido uma poderosa influência na literatura. Nem é preciso um grande esforço de memória para lembrar alguns títulos de romances e de contos de inspiração bíblica. Cinco casos exemplares: “Esaú e Jacó”, de Machado de Assis, “Absalom, Absalom” e “Desça, Moisés”, de William Faulkner, “O hóspede de Job”, do português José Cardoso Pires, e o recentíssimo “Caim”, da nossa contemporânea Márcia Denser.

Esse poder de sedução da Bíblia, para os escritores, se explica. Além de suas revelações, que fundamentam as crenças cristãs, nela encontram-se todas as matrizes literárias: a mítica, a trágica, a épica, a lírica, a dramática. E tudo com fabulação, estilo, uso estético da linguagem, no que se inclui a qualidade poética, sem a qual não se chega à literariedade.

Portanto, se no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, o Verbo se fez literatura, já como uma criação do homem, a quem Deus deu a fala. E ele, o bicho-homem, fabulista, fabulador, fabuloso por natureza, da palavra falada chegou à escrita. E ela, a literatura, se desenvolveu com o próprio desenvolvimento da espécie, pela sua necessidade de contar histórias e de preservar a sua memória. Mas a literatura só ganharia existência concreta, ou seja, corpo, forma, difusão e perenidade, a partir do advento da imprensa, no século 15 depois de Cristo.

Povos primitivos já desenvolviam uma rica produção de lendas, mitos e histórias, por vezes associada à música, à dança e à dramatização, em espetáculos religiosos e profanos. E assim se formou a tradição da literatura oral, que gerou grandes poemas épicos, os textos sacros e as representações dramáticas das civilizações antigas da Europa e da Ásia. Na Idade Média, baladas, poemas, contos, gestas, adágios e adivinhações da cultura popular passaram à forma escrita, através de mãos eruditas. O avanço seguinte viria com a palavra impressa. E aqui cabe um tributo ao alemão Johannes Gensfleisch Gutenberg, o inventor dos caracteres móveis que dariam origem à tipografia, e daí às artes gráficas, à imprensa, sem as quais a indústria editorial não viria a existir.

Resultaram desse processo obras como o “Mahabharata” e o “Ramayana”, da Índia, a “Odisséia” e a “Ilíada”, de Homero, o “Edda” escandinavo, e a própria Bíblia.

10.

O primeiro verdadeiro romance da literatura universal foi o “Dom Quixote”, que teve a sua primeira parte publicada em 1605, sendo que a segunda sairia em 16l5. E com ele Cervantes pôs em xeque as ilusões e princípios estéticos de toda a literatura anterior à sua. O tempo agora era outro. A Espanha deixara de ser um conquistador do mundo para tornar-se o país da burocracia. Todo o seu heroísmo de conquistador havia se degradado. Dom Miguel de Cervantes fez mais: expandiu as fronteiras do romance, tornando um espaço entre o real e a imaginação, levando o leitor ao terreno da dúvida. “O engenhoso fidalgo da Mancha” viria a fazer o mais patético dos empedernidos a rir-se de si mesmo. E a partir dele, o romance passou a ser um desestabilizador das certezas humanas. Além disso, Cervantes inaugurou a figura triangular herói-mediador-objeto do desejo, e com isso compôs a estrutura profunda do romance ocidental.

A sinopse do “Dom Quixote”:

Um fidalgo provinciano que passava o tempo todo a ler romances de cavalaria, acabou por se identificar com os heróis de suas histórias preferidas. Um dia, vestiu uma velha armadura, armou-se de espada e lança, e partiu para uma louca aventura. Ao encontrar um bando de tropeiros de bestas, parou para conversar com eles. E tentou persuadi-los de que ali pelos arredores havia uma camponesa chamada Dulcinéia, que era a mulher mais bonita do mundo e a senhora de seus sonhos. Os tropeiros deram-lhe uma surra e o levaram de volta para casa, onde o padre do lugar, ajudado por um barbeiro, queimou solenemente todos os seus livros. Sua loucura, porém, era incurável. Ele voltou a montar em seu cavalo, o Rocinante, e partiu de novo, desta vez na companhia de um fiel escudeiro chamado Sancho Pança, que tudo faria para remediar as consequências dos desatinos que a desvairada imaginação do amo acarretavam. Vencido em combate, foi forçado, por juramento, a abandonar a sua aventura, quando, então, percebeu a fatuidade da sua quimera, e morreu, deixando a Sancho Pança a realidade de uma existência desprovida de heroísmo e fantasia.

11.

Certo, o romance moderno nasceu na Espanha, no século 17, mas cresceu na Inglaterra do século 18, com a revolução industrial, quando o campo marchava para a cidade e Londres se tornava a maior capital do mundo, enchendo-se de bordéis, criando o cartão de ponto e o comportamento padronizado da vida operária. Expandiu-se no século 19, quando chegou ao apogeu, pelo conjunto da obra de um elenco de gigantes: Tolstoi e Dostoievski, Eça de Queirós e Machado de Assis, e Flaubert, Sthendal, Balzac, Dickens…

12.

No século 20, um irlandês pede a palavra. Ora muito bem, estava tudo muito bom, mas chegara o momento de dar uma sacolejada nessas histórias com começo, meio e fim. Afinal, a mente humana não funciona de forma tão linear, mas por fluxos de consciência. O mundo já estava em plena era da psicanálise, que tanto se valeu da literatura. Pois agora a literatura iria se valer da psicanálise. Ao tempo cronológico interpõe-se o tempo psicológico e os monólogos interiores. E esse tempo não era mais o do grego Odysseus, o homérico Ulisses, rei de Ítaca, e sim o de um outro Ulisses, representado pelo anônimo corretor Leopold Bloom, que não tinha nenhuma Tróia para conquistar epicamente, montado num cavalo de pau. A aventura desse outro Ulisses resumia-se a gastar as solas dos seus sapatos, perambulando pela cidade de Dublin, por todo o dia 16 de junho de 1904, cruzando pelo caminho com a mulher, Molly, e um jovem chamado Stephen Dedalus.

Paródia da “Odisséia”, o “Ulisses” de James Joyce quebra a estrutura tradicional do romance, e, ao combinar características de lenda, reportagem, farsa, drama, sinfonia, tratado escolástico, referências simbólicas emprestadas da mitologia, da história e da literatura, ele faz da experimentação de linguagem, invenção de palavras e inovações estilísticas a sua grande novidade. Foi um escândalo.

13.

O século 20 foi também o de Marcel Proust, Virgínia Woolf – que a crítica situa entre Joyce e Proust -, Franz Kafka, Thomas Mann, Ítalo Calvino, Cesare Pavese, Sartre, Simone e Camus, Marguerite Duras e Boris Vian, e da tropa de choque norte-americana, comandada por William Faulkner, John dos Passos, Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, os antecessores de William Styron, Norman Mailer, Truman Capote, Carson McCullers, Saul Bellow, Flanery O’Connor, Salinger, Phillip Roth. Sem esquecermos a Beat Generation de Jack Kerouac, que botou o pé na estrada em ritmo de jazz, muita birita e marijuana, ouvindo Allen Ginsberg recitar: “Eu vi as melhores cabeças da minha geração destruídas pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa…”

 E, de lá para cá, Paul Auster, Don Delillo. 

14.

América hispânica: ninguém escrevia ao coronel. E aí o coronel escreveu “Cem anos de solidão”. E a utópica “pátria grande” sonhada pelo cubano José Marti entrou no mapa do mundo, no qual García Márquez, Borges, Cortazar, Vargas Llosa, Juan Rulfo, Juan Carlos Onetti, Cabrera Infante e etc. se tornaram nomes familiares.

15.

No Brasil, os modernistas de 1922 (Mário e Oswald de Andrade à frente), propugnavam por um rompimento com a norma lusitana, e que viéssemos a escrever de acordo com a nossa fala. Mas foram os romancistas de 30 – Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos e José Lins do Rego -, que o realizaram com um grande poder de fogo. Os traços dessa geração: Rachel – o depoimento vigoroso e solidário, contra um quadro social deplorável. Jorge Amado – a extraordinária capacidade de criar personagens, de contar histórias; a linguagem desabusada. Zé Lins – a fabulação. Graciliano – o estilo.

16.

Vida que segue: João Guimarães Rosa – o grande rio que nasce em Cordisburgo, Minas Gerais, e deságua no Mississipi, onde William Faulkner fundou um território mítico e nele inscreveu a sua legenda. Os dois eram primos. E aparentados de James Joyce, mas, em relação a este, tiveram a vantagem das vastidões continentais, dos espantos de um continente que, se já não era mais o Novo Mundo, mundo ainda novo era.

E que mistérios tem Clarice?
Os dos rios que correm para dentro de si mesmos.
E era nesses rios que ela mergulhava, até as profundezas de outras audazes mergulhadoras, chamadas Virgínia Woolf e Katherine Mansfield.

17.

Quando Clarice chegou, cá estava Lygia Fagundes Telles, assentada no seu trono de rainha paulistana das Letras. Autora de um best-seller, “As meninas”, é no conto, porém, que ele se torna ainda mais admirável, como podemos conferir em “Antes do baile verde” e “A estrutura da bolha de sabão”. Lygia pertence à geração de Fernando Sabino, Autran Dourado, José J. Veiga, Antonio Callado, José Cândido de Carvalho, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Murilo Rubião, Carlos Heitor Cony, os cirurgiões plásticos que fizeram as costuras finais nas extirpações, iniciadas pelo Modernismo de 22, às adiposidades da última flor do Lácio, ou seja, os barroquismos, a verborragia e o empolamento de linguagem que herdamos dos colonizadores portugueses.

18.

Minha geração encontrou a estrada da modernidade asfaltada. Da Manaus de Márcio Souza à Porto Alegre de Moacyr Scliar, e, um pouquinho depois dele, João Gilberto Noll. E todas as veredas levavam às Minas Gerais de Oswaldo França Júnior, Ivan Ângelo, Wander Piroli, Roberto Drummond, Carlos Herculano Lopes. Ao Rio de Nélida Piñon, Sérgio Sant’Anna, e do gaúcho-carioca Flávio Moreira da Costa. À Bahia de João Ubaldo Ribeiro, Marcos Santarrita e Sônia Coutinho. À São Paulo de Ignácio de Loyola Brandão, João Antônio, Raduan Nassar. Ao Paraná de Domingos Pellegrini Júnior, ao Pernambuco de Raimundo Carrero etc., etc., etc.

19.

Agora, temos mais escritores por metro quadrado do que leitores. Tanto que ficou difícil saber quem é quem. Mas todos podem ser encontrados nos cadernos culturais da imprensa, nas livrarias e em mais de um milhão de blogs de tudo quanto é canto do Brasil.

Inícios de contos memoráveis

1. Imagine a leitora que está no ano de 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem o que é uma missa cantada daqueles anos remotos. Não lhe chamo a atenção para os padres e os sacristães, nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as safenas, as luzes, os incensos, nada. Não falo sequer da orquestra, que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra, com alma e devoção. (Machado de Assis, em Cantiga de Esponsais).

2. Todos aqueles homens e mulheres ali na platéia sombria parecem apagados habitantes dum submundo, criaturas sem voz nem movimento, prisioneiros de algum perverso sortilégio. Centenas de olhos estão fitos na zona luminosa do palco. A luz circular do refletor envolve o pianista e o piano, que neste instante formam um só corpo, um monstro todo feito de nervos sonoros. (Érico Veríssimo, em As mãos de meu filho).

3. … era uma viagem inventada no feliz. (Guimarães Rosa, em As margens da alegria).

4. A fronteira crepuscular entre o sono e a vigília era, neste momento, romana: fontes salpicando e ruas estreitas com arco. A dourada e pródiga cidade de flores e pedra polida pelos anos. Às vezes, em sua semiconsciência, estava outra vez em Paris, ou entre escombros de guerra alemães, ou esquiando na suíça e num hotel entre a neve. Algumas vezes, também, era um barbeiro da Geórgia, certa madrugada em casa. Era Roma esta manhã, na região sem tempo dos sonhos. (Carson McCullers/ O Transeunte).

5. Horizontalmente desperto entre as dimensões do universo, praticando sorrisos de alegria, sátira, o fim de tudo, de Roma e também de Babilônia, dentes trincados, um enorme calor vulcânico, as ruas de Paris, as planícies de Jericó, muito deslizar como de réptil distraído, uma exposição de aquarelas, o mar e o peixe com olhos, sinfonia, uma mesa num canto do Torre Eiffel, jazz no teatro da Ópera, um despertador e o sapateado da condenação, conversas com uma árvore, o rio Nilo, de Cadillac coupé até Kansas, o roncar de Dostoievski, um som sombrio.

6. Este mundo, a face de alguém que existiu, a forma sem o peso, pranto sobre a neve, a branca música, uma flor ampliada ao duplo do tamanho do universo, nuvens negras, o olhar fixo da pantera enjaulada, espaços sem morte, Mr. Eliot de mangas arregaçadas torrando pão, Flaubert e Guy de Maupassant, uma rima silenciosa de sentido primitivo, Finlândia, matemática altamente polida e untuosa como uma cebola verde para o dente, Jerusalém, o caminho do paradoxo. […] Ó fugaz minuto de vida: acabou, o mundo está de novo presente.

7. Imagine uma manhã no fim de novembro. A chegada de uma manhã de inverno há mais de vinte anos. Pense na cozinha de um velho casarão numa cidade do interior. A peça principal é um grande fogão preto; mas há também uma ampla mesa redonda e uma lareira com duas cadeiras de balanço em frente. Exatamente hoje a lareira começou o seu rugido sazonal. (Truman Capote/ Uma recordação de Natal).

8. Começa-se com um indivíduo e, antes que se dê conta disso, descobre-se que se criou um tipo; começa-se com um tipo e descobre-se que não se criou coisa nenhuma. E isto porque somos todos uns pássaros bizarros, mais estranhos ainda por trás de nossa aparência do que desejamos que alguém saiba, ou do que nós próprios sabemos. Quando ouço um homem proclamar-se “um tipo mediano, honesto, aberto”, fico com a certeza de que tem qualquer anormalidade concreta e talvez terrível, que resolveu esconder – e seus protestos de que é mediano e honesto e aberto são a maneira de recordar a si próprio a sua conveniência. Não há tipos, nem generalizações. “Há um moço rico e esta é a história dele.” (Scott Fitzgerald/ O moço rico).

9. Aqui, um território vazio, espaços, um pouco mais que nada. Ou muito, não se sabe. Mas não há ninguém, é certo. Uma cobra, talvez, insinuando-se pelas pedras e pela pouca vegetação. Mas o que é uma cobra quando não há nenhum homem por perto? Ela pode apenas cravar seus dentes numa folha, de onde escorre um líquido leitoso. Do alto desta folha, um inseto alça voo, solta zumbidos, talvez de medo da cobra. Mas o que são zumbidos se não há ninguém para escutá-los? São nada. Ou tudo. Talvez não se possa separá-los do silêncio a seu redor. E o que é também o silêncio se não existem ouvidos? Perguntem, por exemplo, a esses arbustos. Mas arbustos não respondem. E como poderiam responder? Com o silêncio, lógico, ou um imperceptível bater de suas folhas. Mas onde, como, foi feita essa divisão entre som e silêncio, se não com os ouvidos? (Sérgio Sant’Anna, em Conto (não conto).   

Títulos, inícios e finais de romances memoráveis.

Texto apresentado nas oficinas literárias Para gostar de ler (e escrever) romances, realizadas na Casa do Saber
do Rio de Janeiro às terças-feiras de julho de 2009.

1.

Não soaria estranho, ou desnecessário, toda vez que alguém  se refira ao primeiro romance moderno da literatura universal mencione-o como sendo O Engenhoso Fidalgo D. Quixote da Mancha? Quatro séculos depois de vir ao mundo, o título de Cervantes consagrou-se de forma simplificada. Dom Quixote e pronto. Por mais (vá lá) engenhosa que tenha sido a criação original, a criatura dispensou o toque criativo do seu criador. E passou a cavalgar com suas próprias pernas através do tempo, vindo a ser memorizado sucintamente, de estalo. E mais: o emblemático Dom Quixote acabou sendo dicionarizado como um substantivo do qual derivaram alguns adjetivos. Assim:

Quixote 1. Aquele que age com Dom Quixote. 2. Pessoa sonhadora, ingênua, romântica.

Quixotesco 1. Que diz respeito a Dom Quixote, próprio ou característico de Dom Quixote. 2. Relativo a Quixote ou que envolve quixotada. 3. Fig. Diz-se do que ou de quem é generosamente impulsivo, sonhador, romântico.

Quixotismo 1. Comportamento próprio de ou semelhante ao de Dom Quixote. 2. Modo quixotesco de sentir ou agir. 3. Fanfarronice, bazófia.

Nem sempre títulos criativos se tornam memoráveis. Por exemplo: “O coração é um caçador solitário”, de Carson McCullers. Bonito, não? O romance rendeu um filme igualmente emocionante. Alguém aqui se lembra?

Vivo dizendo: “Meu reino por um título!” Umzinho assim: “Em busca do tempo perdido”, “Neste lado do paraíso”, “Suave é a noite”, “Reflexos num olho dourado”, “Balada do café triste”, “O som e a fúria” – este sacado por William Faulkner a partir de uma fala escrita por Shakespeare para Macbeth “É (a vida) uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria, significando nada”. Outros de Faulkner que me encantam: “Enquanto agonizo”, “Luz em agosto”. Um tal de Dee Brown saiu-se com este: “Enterrem meu coração na curva do Rio”. Só matando esse cara. Os que mais me humilham: “Memórias póstumas de Brás Cubas”, “Grande sertão: veredas”, “Cem anos de solidão”, “Jornada de um imbecil até o entendimento” (Plínio Marcos), que parece parafrasear o célebre “Jornada de um dia para dentro da noite” (Eugene O’Neill). Um caso curioso: Graciliano Ramos deu ao que se tornaria mais lembrado de seus livros o seguinte título: “O mundo coberto de penas”. Foi o editor Augusto Frederico Schimit quem sugeriu que ele o trocasse para… “Vidas secas!” Este foi na mosca. Um título que não sai dos meus ouvidos: “Um país, o coração”, do poeta gaúcho Carlos Nejar. Outro: “A República dos sonhos”, de Nélida Piñon.

Alguém aqui ficaria com inveja dos autores de títulos como  “Hamlet”, “Madame Bovary”, “O vermelho e o negro”, “Crime e Castigo”, “Anna Kariênina”, “Dom Casmurro”, “Ulisses”? Agora, roamos-nos.

Em casos assim, foram as obras que fizeram os títulos.

À parte isso, quais os ingredientes de um titulo genial?

Originalidade, significação, abrangência, ritmo, cadência, imprevisibilidade. O título surpreendente, que mata a pau, é um golpe de mestre. E um golpe de sorte, claro.

2.

Criar e coçar é só começar?

“No meio do caminho da vida, tendo perdido o caminho verdadeiro, achei-me embrenhado em selva tenebrosa”.

Em seu livro “E a história começa – dez brilhantes inícios de clássicos da literatura”, Amós Oz cita a primeira frase de “O Inferno” de Dante como possibilidade de um exemplo padrão para todas as histórias, argumentando que “No meio do caminho da vida” é, mais ou menos, onde todas as histórias começam.

“Então – ele prossegue -, você se senta e se pergunta o que deveria vir primeiro; como chegar a esse début do meio do caminho? Sentando-se. Rabiscando a página. Amassando-a. Jogando-a fora. Rabiscando a página seguinte: formas, flores, triângulos, losangos, uma casa com uma pequenina chaminé, um gato pelado. Amassando outra vez. Jogando fora. […] Na verdade, isso acontece o tempo todo, não apenas com romancistas, mas com todos os que escrevem o que quer que seja”.

“É a espera” – assim começa “Os desencantados”, romance de Budd Schulberg baseado na relação de um jovem roteirista de Hollywood, aspirante a escritor, com uma estrela cadente da literatura norte-americana, facilmente identificável como Scott Fitzgerald. O que o narrador/personagem dessa história esperava? Talvez uma idéia salvadora para o roteiro de um filme que não estava conseguindo escrever.

Não foram poucas as vezes em que Clarice Lispector se viu diante de uma máquina de escrever se dizendo: “É a espera”. Ela achava que não havia outro jeito de começar, senão esperando, esperando, esperando, até que a primeira frase caísse em seu colo. Como se, enquanto você espera, seu subconsciente trabalha a seu favor.

Mas ora, o que conta é o começo salvador que baixa nas teclas como num passe de mágica, com o poder de fazer com que se leia o romance e dele nunca se esqueça, como aconteceu com este leitor quando, ainda na adolescência, bateu os olhos na primeira página do “Dom Casmurro” e levou um choque. Foi no momento em que Bentinho confabulava sobre o passageiro ao seu lado no bonde de volta para casa. A frase: “conhecia-o de vista e de chapéu”. Isto não provocara apenas um grande impacto no jovem leitor. Parecera-lhe uma verdadeira aula de texto literário, por seu modo de dizer tão diferente do que ele estava acostumado a ouvir. E onde estava a diferença: na linguagem e estilo desconcertantes de que aquela frase era apenas um começo.

Do “Dom Casmurro” e sua Capitu passemos a “Anna Kariênina”:

“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”.

De cara, já adivinhamos à trama sonhada por Balzac, aquela que desfolhava todos os lençóis da história secreta de uma nação, no caso, a Rússia do século 19. A partir de um caso de adultério, Tolstoi pôs todo aquele século num romance que recentemente ganhou no Brasil uma tradução à altura, feita pelo caro romancista e contista Rubens Figueiredo, em primorosa edição da Cosac Naify.

– Suba, Kinch! Suba, seu jesuíta execrável!

O leitor aqui voltaria a se lembrar desta fala do começo do “Ulisses” ao fazer suas pesquisas sobre o Rio de Janeiro do século 16, para escrever o romance “Meu Querido Canibal”, e se deparar com o papel ambíguo dos jesuítas no Brasil, ao tempo da colonização portuguesa. Sobretudo o do padre José de Anchieta que, em selvas e águas de som, sonho e fúria, agia com um rosário numa mão e uma espada na outra, atuando, ao mesmo tempo, a serviço de Deus, para catequizar os silvícolas, e do rei de Portugal, ao consentir que fossem exterminados, em caso de resistência à sua catequese.

– Suba, Kinch! Suba, seu jesuíta execrável!

Conheceria James Joyce a história do José do Brasil?

De Joyce a Faulkner, em “Intruder in the dust” (“O intruso”, no Brasil, ou “O mundo não perdoa”, em Portugal):

“Era precisamente meio-dia nesse domingo quando o xerife chegou à cadeia com o Lucas Beauchamp embora toda a cidade (e todo o concelho, para falar a verdade) já soubesse desde a véspera à noite que o Lucas matara um branco”.
“O rapaz estava lá, à espera. Fora o primeiro a chegar e estava preguiçosamente a fingir-se ocupado ou pelo menos inocente…”

Bom, só são uns começos, para se gostar de ler os romances de que tratam.

3.

(Personagem: figura humana fictícia criada por um autor).

Na antiga Grécia ele era épico. Um arquétipo, um modelo, como Ulisses e Aquiles. Ou trágico como Édipo Rei. Esse herói clássico estava acima dos homens comuns, por ser nobre de sangue azul, mas sujeito às vicissitudes humanas, das quais o calcanhar de Aquiles serve de exemplo. Os épicos geraram o romance. Os trágicos, o teatro.

A partir do renascimento, entra em cena o herói moderno, no papel do homem-comum, cuja nobreza está no seu caráter, nas suas ações, na sua própria condição. No entanto, o que vai se consagrar na modernidade é a figura do anti-herói, que é patético. O primeiro deles fundou a literatura moderna. Precisa dizer de quem se trata?

4.

(Diálogos: falas fictícias, que podem ser mais convincentes do que as verdadeiras).

Do conto “O fim”, de Jorge Luis Borges. Cenário: uma bodega no pampa argentino. Personagem 1. Um negro a dedilhar um violão, numa longa espera (7 anos) do personagem 2, um cavaleiro que chega, sem que se saiba qual o conflito que existe entre os dois.

“Sem alçar os olhos do instrumento, onde parecia buscar alguma coisa, o preto disse com doçura”:
– Já sabia eu que podia contar com o senhor.
O outro, com voz áspera, replicou:
– E eu contigo, moreno. Uma porção de dias te fiz esperar, mas aqui vim.
Houve um silêncio. Por fim, o negro respondeu:
– Estou me acostumando a esperar. Esperei sete anos.
O outro explicou sem pressa:
– Mais de sete anos passei sem ver meus filhos. Encontrei-os naquele dia e não quis mostrar-me como um homem que vive às punhaladas.
– Já compreendi – disse o negro. – Espero que os tenha deixado com saúde.
– Dei bons conselhos a eles, que nunca são demais e nada custam.
– Fez bem. Assim não se parecerão a nós.
– Pelo menos a mim – disse o forasteiro e acrescentou como se pensasse em voz alta: – Meu destino quis que eu matasse e agora, outra vez, põe-me a faca na mão.
O preto, como se não ouvisse, observou:
– Com o outono se vão encurtando os dias.
– Esta luz que fica me basta – replicou o outro, pondo-se de pé. Perfilou-se diante do negro e falou-lhe como cansado:
– Deixa em paz o violão, que hoje te espera outra espécie de desafio.
Os dois encaminharam-se à porta. O negro, ao sair, murmurou:
– Talvez neste me vá tão mal como no primeiro.
O outro respondeu, com seriedade:
– No primeiro não te saíste mal. O que se deu é que querias chegar ao segundo.
Afastaram-se um pouco da casa, caminhando a par. Um lugar da planície era igual a outro e a lua resplandecia. De repente olharam-se, detiveram-se e o forasteiro tirou as esporas. Já estavam com o poncho no antebraço, quando o preto disse:
– Uma coisa quero pedir-lhe antes que cruzemos ferros. Que nesta briga ponha toda sua coragem e toda a sua manha, como naquela outra de há sete anos, quando matou meu irmão.
Talvez pela primeira vez em seu diálogo, Martim Fierro tenha ouvido o ódio. […]

E assim, numa sequência de diálogos exemplares, numa construção labiríntica, e cuja tensão se assemelha a toques sutis em fios desencapados, Borges conta o fim do mais lendário bandoleiro argentino.

5.

(Tempo cronológico-tempo psicológico: o primeiro se processa num plano objetivo; o segundo, é subjetivo. A propósito deste, é ler “Ulisses”, de Joyce, “talvez a mais fiel radiografia jamais feita da consciência humana”, na abalizada opinião de Edmund Wilson).

Faulkner cruza os dois tempos o tempo todo na primeira parte de “O som e a fúria”, que tem sua ação centrada nas oscilações da memória de um oligofrênico, que mistura os acontecimentos vivenciou com o que vivencia, dos três aos trinta e três anos de idade. Na segunda parte deste romance encontra-se tudo o que é preciso saber sobre a relação tempo cronológico-tempo psicológico, fluxo de consciência, monólogo interior:

“Quando a sombra do caixilho apareceu nas cortinas era entre sete e oito horas da manhã e então eu já me encontrava no tempo outra vez, e ouvia o relógio. Ele era do meu avô, e quando o pai o deu para mim disse: Quentin, eu lhe dou o mausoléu de toda esperança e de todo o desejo; é mais do que penosamente possível que você irá usá-lo para adquirir o reducto absurdum de toda a experiência humana […] Eu o dou a você não para que se lembre do tempo, mas para que possa esquecê-lo por alguns momentos e não gaste todo o seu fôlego tentando conquistá-lo. Porque nem uma batalha se vence ele disse. Elas não são nem ao menos disputadas. O campo de batalha revela ao homem somente a sua loucura e desespero, e a vitória não é mais do que uma ilusão de filósofos e loucos”.

(Em tempo: a mais recente tradução de “O som e a fúria” (muito elogiada, por sinal), é do querido poeta Paulo Henriques Brito, que ministra um curso de formação de escritores, na PUC – Rio).

6.

Por fim, um final antológico – de Scott Fitzgerald:

“Gatsby acreditava na luz verde, no orgiástico futuro, que ano após ano surgia e se afastava de nós. Se esse futuro nos iludiu, pouco importa: amanhã correremos mais depressa, ergueremos mais os braços… Até que uma bela manhã…

E assim, barcos contra a corrente, partimos em busca de um passado que não volta”.

Eurico em Alagoinhas Uma temporada entre luz e sombra

(No centenário de nascimento do poeta Eurico Alves Boaventura – 1909 – 2009)

Todos os crepúsculos agora estão em mim...
Almas estranguladas passeiam com a minha alma de confidências,
pelas escuras alamedas do passado...
Porque vens, agora, sombra amiga,
quando esta longa noite do tempo veio para esquecer,
porque vens aflorar no meu caminho a sinfonia do meu tormento?
Perdi sonhos, perdi desejos infecundos, perdi de ouvir a música do tempo.

É como se fosse a vida que imitasse a arte. Assim pensa o autor destas linhas num dia do mês de março de 2009, ao ler um poema que Eurico Alves Boaventura escreveu em 1951. Trata-se do belo e melancólico Rondó das sombras consoladoras, cujo trecho acima ilustra à perfeição a memória de uma tarde de 1970, quando o poeta recebeu em sua casa, numa ensolarada e solitária rua que se chamava Manuel Bandeira, uma alma estrangulada pelo excesso de horas presa à poltrona de um ônibus comum, do Rio de Janeiro a Feira de Santana.

Foi uma breve visita. E de surpresa. Nada além de uma pausa a meio do caminho para outros nortes, e para acorçoar-se ao sabor de um café e dois dedos de prosa, que resultariam num passeio de confidências pela longa noite do tempo em alamedas escuras do passado, e que, revisitadas agora, desembocam na página de Luz em agosto na qual William Faulkner escreveu: É o conhecimento – e não a dor – que faz você se lembrar de centenas de ruas selvagens e ermas.

Erma, sim. Selvagem, não – poderia ter concluído o recém-chegado à ruazinha àquela hora deserta, e ao ser recebido com a fidalguia peculiar a um homem de letras citadino de reconhecível herança aristocrática rural. E Juiz de Direito, ainda por cima, embora já a viver os crepúsculos da aposentadoria na sossegada Rua Manuel Bandeira, a quem o autor da Estrela da vida inteira devia a homenagem, por razões que a esta altura, imagina-se, poeta algum ignora, pelo menos na Bahia.

Recorda-se aqui a entrada da casa por uma varanda lateral, onde havia uma cadeira de balanço. Acrescente-se ao impacto visual das singelezas à chegada, portas e janelas azuis, e paredes brancas, tudo a trazer para a arquitetura urbana do século XX uma evocação da era das mansões coloniais, se é que não se delira nessa recordação.

De certeza é que àquela hora o sol amenizava-se, já em queda para o poente. E que um vento morno regia a música do tempo, numa orquestra a farfalhar em memorável concerto a sua Antífona para depois de amanhã: O vento marca o tempo, o tempo que ouço uivando/ nas marchas dos moços sem rumo.

Elegantemente trajado, como de hábito, o doutor Eurico Alves Boaventura encaminhou o seu visitante a uma mesa senhorial ao centro da sala, na qual reinava o silêncio, quebrado apenas quando surgiu uma senhora (parente sua, talvez) para cumprir o sagrado ritual da hospitalidade sertaneja, ao portar uma bandeja com um bule e duas xícaras de café. O que faltava ali? Os convivas de outra sala há onze anos atrás, numa cidade chamada Alagoinhas, onde o anfitrião era o mesmo dessa tarde que parecia mais propícia a uma soneca do que a recepções não programadas.

Mas não. O protagonista desta história era, antes de tudo, um ser gregário, um mestre na arte do convívio. Recebeu a inesperada visita de braços abertos, e de forma tão calorosa que preenchia o vazio das ausências, a começar pela dos familiares, àquela hora cuidando de seus afazeres fora das instâncias domésticas. E de que cuidava ele, agora, à sombra dos seus sessenta e um anos? Dos retoques finais num livro de mais de mil páginas datilografadas, que lhe havia consumido, em pesquisas e elaboração, a maior parte dos anos já vividos. Com o calhamaço à mesa, de repente a sala povoou-se dos vaqueiros que traçaram a rota primitiva dos destinos da Colônia que Portugal criou neste lado do Atlântico, na saga que levaria à civilização do pastoreio. Ler em voz alta era para ele uma praxe que vinha há muito do tempo, certamente bem anterior às tertúlias na biblioteca de sua casa de Alagoinhas, em noites em que cintilava uma nova constelação da poesia brasileira, que em sua voz descia redonda em ouvidos até então mais afinados com a lírica d’antanho, que os anos não traziam mais, numa cidade que ainda se movia ao ritmo dos boleros, embora já a ensaiar os primeiros passos de Rock’n roll.

Se foi um privilégio privar dos saraus na intimidade do seu lar alagoinhense, a partir do que seus convivas não mais leriam poesia da mesma maneira, imagine o que dizer da honra de ser brindado com as primeiras páginas de uma obra inédita, cuja envergadura sociológica e histórica transcendia a dimensão do volume e o esforço ciclópico do autor para realizá-la. Mas de repente ele parou. E não por cansaço ou para fazer algum comentário. Com uma mão sobre a página (devia ser a quinta ou a sexta), cuja leitura interrompera, e, abaixando ainda mais os olhos, que se apertavam por trás dos óculos, disse, em tom sussurrante, como se falasse para si mesmo:

– Quando eu me lembro…

Perturbado pelos sinais de desgosto que a repentina lembrança estampava num rosto àquele instante visivelmente sulcado de mágoas, o eterno ouvinte do poeta, ensaísta etc. e mestre informal Eurico Alves Boaventura eclipsou-se entre a luz externa, porta e janelas afora, e a sombra interna em uma alma martirizada do tempo. Restava saber que martírio era esse.

– Você sabe o que aconteceu comigo?

A cena congela aqui, no retrospecto que se tenta fazer agora. Porque a memória só alcança até aquela pergunta, diante da qual o seu ouvinte não se sentiu uma sombra consoladora, mas uma presença incômoda, desassossegadora, que trazia para aquela sala a lembrança da cidade onde o que acontecera fora abominável demais para ter consolo ou remissão, embora não saiba, agora, se já chegara àquela mesa, naquela casa de Feira de Santana, e naquela tarde de 1970, sabendo o que se passara com o Meritíssimo Juiz de Direito da Comarca de Alagoinhas no terrífico ano de 1964, na sequência das arbitrariedades militares, cuja dolorosa lembrança o tornava (a ele, o Juiz) refém do estribilho do rondó que escrevera vinte e três anos antes: Todos os crepúsculos agora estão em mim… Pois agora, e por ironia do destino, ele devia estar sentindo deveras a dor que poderia então ter sido apenas um fingimento.

O que foi mesmo que lhe aconteceu?

– Sim, eu me lembro – diz Valdemar Paraguassu, que há muitos anos vive em Salvador, mas em 1964 morava em Alagoinhas, e a poucos passos da casa do doutor Eurico, como o chamam todos daquela cidade que o conheceram. – Fomos presos num mesmo dia. Assim que me soltaram, fui embora, para assumir um emprego no Banco do Brasil em outro lugar. Por isso não soube o que aconteceu com ele depois da sua prisão. O que me lembro é do clima de terror daqueles dias, quando um comerciante encrenqueiro de lá passou a acusar de subversivo todo aquele com quem ele tinha alguma contrariedade, ou simplesmente a quem não simpatizava. Foram tantas as prisões por denúncias desse tipo, que elas viraram uma esculhambação, a ponto de o comando local das repressões ter de exigir que só fossem feitas por escrito. E com firma reconhecida!

O que dizer disso agora? Que teria sido cômico se não fosse trágico?

No caso específico do doutor Eurico, porém, a maledicência fora engendrada por um Oficial de Justiça. É o que recorda Aristóteles Freitas Costa, que àquela época era um dos alunos que mais se destacava no Ginásio de Alagoinhas, e que, como outros estudantes intelectualmente inquietos, tinha em doutor Eurico um mentor extra-classe. Costumava visita-lo no Fórum, às vezes acompanhando-o a caminho de casa, parando numa esquina e outra, em conversações que podiam ultrapassar uma boa meia hora. Formado em Direito, o velho Arica hoje mora no bairro de Icaraí, em Niterói, RJ. O que lembrou mais, ao telefone:

– Ele me aconselhava a não parar de estudar. E me indicava autores, me incentivava a ler muito. E bem. Uma vez me emprestou um livro de poesias traduzido por Manuel Bandeira, que não devolvi, porque não o vi mais, depois da sua prisão.

– E por que você não o viu mais?

– Eu trabalhava numa sorveteria do meu pai e um dia vi o policial que prendeu o doutor Eurico parado na porta, me encarando. Deduzindo que ele estava de olho em mim, fui me esconder numa fazenda que a gente tinha, e por lá fiquei um tempo, esperando a poeira baixar. Quando voltei, o doutor Eurico já não morava mais na cidade. Os comentários eram de que ele havia sido transferido para Vitória da Conquista.

Foi o que aconteceu, confirma Juraci Dórea em seu ensaio Eurico Alves e a Feira de Santana. Está no livro A poesia de Eurico Alves – Imagens da cidade e do sertão, organizado por Rita Olivieri-Godet, e publicado pela Fundação Cultural do Estado da Bahia em 1999. Amigo de Eurico de longa data, o artista plástico, arquiteto e também poeta Juraci Dórea esclarece: “[…] com exceção dos períodos de férias, Eurico pouco viveu em Feira de Santana. Aos 14 anos de idade (1923) ele já se encontrava em Salvador, matriculado no Ginásio N. S. da Vitória […] Em 1934, recém-formado, estava em Feira de Santana, porém logo no ano seguinte transferiu-se para Capivari, hoje Macajuba”… E daí em diante: Tucano, Riachão de Jacuipe, Poções, Canavieiras, Alagoinhas, Vitória da Conquista “e, finalmente, Salvador”. O que significa que o doutor Eurico Alves Boaventura só voltou a viver na capital já perto de aposentar-se, e isto pouco ou nada influiria mais em seu destino literário.

Voltemos à sua temporada de Alagoinhas (1959-1964), não necessariamente Une Saison en Enfer, mas que só não se tornou uma página em branco na história de Eurico graças às incansáveis buscas biobibliográficas de Juraci Dórea e à memória de Maria Eugênia Boaventura, que era bem pequena naquele tempo, mas ainda se lembra que a casa ficava à Rua Carlos Gomes, 63, com a biblioteca na sala de visitas, e que era frequentada pela professora Normândia Azi Lacerda, o advogado Murilo Cavalcanti, um funcionário da Justiça do Trabalho chamado Giése (José Giése da Cruz, primo do autor destas linhas), o alfaiate que fazia os blazers do seu sempre elegante pai, que por sua vez fundou o Lyon’s Clube da cidade, tendo sido o seu primeiro presidente. Maria Eugênia recorda-se ainda que o doutor Eurico foi professor do Ginásio de Alagoinhas, onde dava aulas pautadas pela pluralidade de conhecimentos.

Entre as pessoas lembradas pela professora Maria Eugênia, há uma que poderia emergir das sombras reivindicando este epitáfio:

Tropeço, dentro da noite em cadáveres de sonhos...
Porém, mãos de suicidas,
As dolorosas e augustas mãos dos suicidas,
Vêem ensombrar a minha fronte para eu sonhar...
Todos os crepúsculos agora estão em mim...

No contexto destas memórias, esses versos evocam o trágico fim de um dos convivas das tertúlias à Rua Carlos Gomes, 63, Alagoinhas, Bahia. Nascido num distrito de Inhambupe chamado Junco (hoje a cidade de Sátiro Dias), onde fora batizado e registrado com um sobrenome de origem alemã como nome próprio, aposto ao de José, Giése cometeu o tresloucado gesto na casa do bispo de Juazeiro da Bahia, aí pelo ano de 1971, deixando uma carta cujo conteúdo o bispo jamais revelaria, por considerá-lo um segredo de confissão. Para que não se avente premonições do poeta, lembremos que o Rondó das sombras consoladoras é de 1951, e, também, que Eurico e Giése só vieram a se conhecer em 1959. Mas como evitar a tentação de dizer outra vez que foi a vida que imitou a arte?

1959-2009: Memórias, Sonhos…

Assim se passaram cinquenta anos: envoltos em sombras [que] abafaram os passos das distâncias/ para que não perturbassem o sono do silêncio…

– Atirador 22, sentido! Marche, marche! Do Tiro de Guerra 110 ao Ginásio de Alagoinhas, e de lá ao Fórum ou à Rua Carlos Gomes, 63 – em 1959!

Há um fabuloso tempo a ser reencontrado nessa marcha de volta.

Chegou a hora de fazer-se a luz sobre a sombra dolorosa e inexpressiva como um sonho morto que até aqui pairava na sua memória, porque você, por mais que se esforçasse, não conseguia enxergar com nitidez todo o impacto causado pela chegada do juiz-poeta Eurico Alves Boaventura àquela cidade das luzes verdes nas fachadas, em um ano de sonhos dourados de uma juventude que ele mesmo faria crer-se promissora. “Memória! Junta na sala do cérebro…” Sobre o que vocês conversavam? Nas tertúlias que promovia, ele lia seus próprios poemas? E que poetas lidos ou recomendados por ele foram verdadeiras revelações? Alguns deles chegaram a ser tão decisivos para sua formação literária, quanto os ficcionistas – Jorge Amado e Graciliano Ramos, por exemplo -, que o professor Carloman Carlos Borges levou você a conhecer, dois anos antes? Enfim, qual foi o seu real legado?

Resposta: só agora, e graças à memória do caro colega do Ginásio de Alagoinhas Aristóteles Freitas Costa, me dou conta de quem pode ter me levado a ler um poema de Federico Garcia Lorca traduzido por Manuel Bandeira, e que começa assim:

Cantam os meninos
na noite quieta;
arroio claro,
fonte serena.

OS MENINOS:
Que tem teu divino
coração em festa?

EU:
Um dobrar de sinos
perdido na névoa.

A lembrança desses versos, muitos anos depois de os haver lido em algum lugar do passado, e certamente num livro emprestado pelo doutor Eurico, levou-me a escrever o romance Balada da infância perdida, cuja primeira edição é de 1986, e que foi traduzido para o inglês com o melódico título Blues for a lost childhood. E agora também me lembro do meu segundo dia de trabalho como aprendiz de repórter policial no Jornal da Bahia, ao desembarcar de Alagoinhas em dezembro de 1959. Como no dia anterior eu havia fracassado na cobertura do movimento do porto de Salvador, onde não fui capaz de farejar uma manchete espetacular – um tiroteio cinematográfico entre policiais e contrabandistas -, me empurraram para o Necrotério Nina Rodrigues. Dali não iria voltar sem assunto. Logo à entrada via-se, estirado num estrado, o cadáver de um rapaz que se matara.

Corri para o jornal e comecei a matéria com um poema de Godofredo Filho que falava do absurdo de se morrer aos 20 anos, entregando-a em seguida, e com a ansiedade imaginável, ao chefe de reportagem, o poeta João Carlos Teixeira Gomes, que a passou ao chefe da reportagem policial, o também poeta Jeová de Carvalho, que por sua vez mostrou-a ao editor-chefe, o ficcionista Ariovaldo Matos que, de dedo em riste, disse ao aprendiz de repórter que ele estava ali para fazer jornalismo e não literatura, que poesia era coisa de… Bom, felizmente não perdi o emprego. Mas o que importa aqui é que com certeza foi Eurico quem me levou a ler Godofredo Filho. E Cassiano Ricardo. E Jorge de Lima – com quem se correspondia – de cuja obra hoje se diz que “permanece robusta e poderosa como um penhasco, na solidão incomparável do gênio”.

… Reflexões

Não dá para imaginar que Eurico um dia tenha tido pretensões de ser posto pela posteridade nas mesmas alturas de seus mais festejados (e fraternos) pares Manuel Bandeira e Jorge de Lima. Ele não era, como Gilberto Freyre – que reconhecia como grande escritor – “uma pessoa feita para se ver no espelho”. E sua obra continua “restrita a um pequeno círculo de amigos e especialistas”, como constata Juraci Dórea, mesmo em se tratando de “uma figura de proa nos primórdios do modernismo na Bahia”, no dizer do consagrado poeta Florisvaldo Mattos.

Tiremo-lo das sombras. Para que este não seja um tributo a cem anos de solidão.

Agora ele era o herói

(Conferência proferida no seminário “Da Chegada da Família Real à República no Brasil”, realizado no Sesc-Iracema, de Fortaleza, Ceará, em 12/05/08).

Não corram tanto! Assim vão pensar que estamos fugindo…

A voz que fazia esse apelo era a de quem menos se poderia esperar prudência em circunstâncias tão dramáticas. Tratava-se de uma pobre demente, que voltava a respirar o ar das ruas, depois de 16 anos de reclusão. Mas, se ainda lhe restava lucidez para temer a repercussão daquela correria, faltava-lhe a percepção da sua imperiosa necessidade. A cidade estava na iminência de ser invadida por um exército inimigo tão poderoso, que podia reduzi-la a cacos.

Impossível reconstituir imaginariamente tal cena sem um bocadinho de ternura. Dentro de um coche a toda velocidade, D. Maria I emerge das profundezas de sua alienação preocupada com a imagem pública que a família real ia deixar. “Não corram tanto! Assim vão pensar que estamos fugindo…” Coitada! Mal sabia o que a aguardava, e à sua numerosa corte, no cais do porto. Loucura mesmo era aquilo. Gritaria. Apupos. Empurrões. Cenas dilacerantes. Muita gente querendo embarcar à força. Senhoras distintas se atiravam na água, tentando alcançar botes que as transportassem para bordo dos navios de guerra – já abarrotados de fidalgos – e se afogavam. O filho de dona Maria, Dom João Carlos de Bragança, o Príncipe Regente – que mais tarde seria coroado rei como D. João VI – disfarçou-se de fugitivo anônimo, ao chegar num carro fechado e sem o libré da corte, para escapar das hostilidades de uma população indignada. Não teve ninguém a recebê-lo, protocolarmente. Como chovia muito, só não patinhou na lama, ao atravessar o charco sobre pranchas mal postas, porque foi sustentado por dois cabos da polícia.

Coube à duquesa de Abrantes descrever os acontecimentos como um “estado de frenesi popular”. Com a palavra, a duquesa: “O muito nobre e sempre leal povo de Lisboa, não podia familiarizar-se com a idéia da saída d’El-Rei para os Domínios Ultramarinos… Vagando tumultuariamente pelas praças, e ruas, sem acreditar o mesmo, que via, desafogava em lágrimas, e imprecações a opressão dolorosa, que lhe abafava na arca do peito o coração inchado de suspirar: tudo para ele era horror; tudo mágoa; tudo saudade; e aquele nobre caráter de sofrimento, em que tanto tem alçado acima dos outros povos, quase degenerava em desesperação”.

Esse breve relato é de uma testemunha ocular da história. E por ele pode-se deduzir que aos excluídos das embarcações pouco importava se o que estava em causa era uma estratégia para a salvação de um reino, muito bem sucedida, o que, finalmente, já se reconhece, ao reavaliar-se de forma menos emocionalizada o que antes era tido como uma fuga, e havido como uma decisão covarde de um príncipe regente frouxo, pusilânime, bufão.

Nessa reavaliação, gastam-se muito papel e tinta em cadernos especiais dos jornais, revistas e livros que vão para as listas de best-sellers; lotam-se os auditórios das universidades, da Academia Brasileira de Letras, dos espaços culturais os mais variados; dobram os sinos, rufam os tambores e o plim-plim da Rede Globo. Em meio a isso tudo, um historiador chamado Jurandir Malerba, autor de A corte no exílio, em longo artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo de 6 de abril último, fez as seguintes reflexões:

“Numa época como a nossa, em que tudo, até mesmo a história e a identidade coletiva de um povo, virou mercadoria, não é de estranhar o estardalhaço mercadológico em torno da efeméride. Da noite para o dia, ilustres desconhecidos tornam-se celebridades e posam de sábios e eruditos; leitores de meia dúzia de livros se acotovelam para ‘entrar no debate’; publicações de qualidade suspeitíssima ganham espaço na mídia. Uns se apropriam do fato como guardiões da história; outros vaticinam contra ela, acusando os abusos e as manipulações da memória” etc, etc, etc, até ele próprio admitir que a transferência da corte e do império ultramarino portugueses sempre foi alvo de interpelações apaixonadas. E propõe que nós, os leitores de meia dúzia de livros sobre o assunto, façamos um dever de casa, respondendo às seguintes perguntas:

Essa transferência terá sido uma fuga ou uma sábia decisão do regente? Foi atropelada ou “um alvitre amadurecido”? Qual o tamanho da comitiva? D. João foi um hábil estadista ou um tolo manipulado por seus homens de Estado? A vinda da corte acelerou ou protelou a independência do Brasil na era das revoluções? Foi benéfica para o Brasil ao garantir a sua integridade territorial – a América hispânica se esfacelou em pequenas repúblicas – ou foi prejudicial ao induzir a uma transição conservadora e centralizadora? Quais suas eventuais marcas na sociedade e no Estado que se construíram no Brasil ao longo do século 19 e mesmo depois?

Por mais conhecidos que sejam os antecedentes dessa história, permitam-me recorrer a eles em busca de elementos que possam ajudar nas respostas pelo menos de parte das perguntas aqui propostas.

Tudo começou quando os ingleses e os franceses ambicionaram repartir o mundo entre si, nos primórdios do século 19. Como cada lado pretendia mais capital e mais mercado, as disputas os empurraram para a guerra. A Inglaterra impôs um bloqueio marítimo à França, e esta revidou com o bloqueio continental que deixava o Reino Unido isolado e proibido de comerciar com a Europa dominada pelo imperador francês, Napoleão Bonaparte. Ilhado, o comércio inglês só podia se expandir através de Portugal, dono de um caminho marítimo para o continente americano.

Naquele grave momento europeu, o príncipe regente D. João (que governava Portugal desde 1792, em virtude da enfermidade mental da sua mãe, D. Maria I), tentava uma neutralidade impossível no conflito das duas potências. Unida à Espanha, a França tinha as mesmas ambições da Inglaterra. E invadiu Portugal em novembro de 1807. Sem condições de enfrentar as tropas napoleônicas, D. João não teve outra saída senão se valer do plano inglês de transferir a sede da monarquia portuguesa para o Brasil, numa esquadra escoltada pela marinha britânica. Não nos esqueçamos que por trás de tudo estava uma guerra mercadológica. Logo, a escolta não seria nenhum gesto magnânimo de uma velha aliada. Portugal se comprometia a dar plena liberdade comercial aos ingleses, mas regateando para não ceder a todas as exigências deles, como as de tarifas alfandegárias irrisórias. Exige-se de cá, barganha-se de lá, o certo é que o acordo foi fechado ao soar do gongo, no dia 29 do mesmo mês de novembro daquele mesmíssimo ano de 1807. E então, ao amanhecer do dia seguinte, quando o exército de Napoleão Bonaparte, comandado pelo general Andoche Junot, entrou em Lisboa, só avistou as últimas velas dos barcos portugueses sumindo na linha do horizonte, levando uma nobreza que em poucas horas saqueara os cofres, e embarcara com milhões de cruzados em ouro e diamantes e mais da metade do dinheiro em circulação no país. Imaginem a cara dos que ficaram lá, a ver navios.

Depois de suportar todas as pressões da França e da Inglaterra, as traições dentro de seu próprio governo, e as tensões no cais do porto, D. João partiu debaixo de um temporal. O seu navio, o Príncipe Real, carregava cerca de mil passageiros, ou mais, que se amontoavam em total desconforto, com muita gente tendo de dormir no tombadilho. E o pior de tudo: poucos víveres a bordo. D. João, porém, se manteve calmo durante toda a viagem, como se dissesse a si mesmo, o tempo todo, que o pior já havia passado.

Alguns dias depois da partida, um temporal dispersou o comboio formado por cerca de 40 navios, que conduziam milhares de refugiados. No dia 22 de janeiro de 1808 – portanto, depois de quase dois meses de viagem -, D. João aportou em Salvador, com parte da esquadra, sendo recebido festivamente pelo povo baiano, tendo à frente o conde da Ponte, governador e capitão-geral da Bahia.

Os primeiros dias do príncipe em Salvador foram de júbilo e reivindicações. Motivos de queixas não faltavam contra a administração portuguesa em nosso país. O Brasil-Colônia sofria com a opressão dos monopólios, as proibições e os impostos, que tinham estagnado o comércio, impedido o desenvolvimento da agricultura e destruído o espírito de iniciativa. A insatisfação com o vulto dos encargos e restrições já havia levado à Inconfidência Mineira, quando se discutia a possibilidade da independência do Brasil, mirando-se no exemplo dos Estados Unidos. E isso não fazia muito tempo. Como sabemos todos, a Conjuração em Minas Gerais resultou no enforcamento de Tiradentes, em 21 de abril de 1792. Em 28 de janeiro de 1808, por sugestão do futuro visconde de Cairu, José da Silva Lisboa, o governador da Bahia conseguiu que D. João decretasse a abertura dos portos brasileiros às nações amigas, “a benefício do Comércio e Agricultura, que tanto desejo promover”.

A Carta Régia firmada por D. João em Salvador, além de inaugurar sua regência itinerante, tinha um duplo alcance: ao mesmo tempo em que atendia a uma solicitação local, honrava o seu compromisso de permitir total liberdade comercial aos ingleses em todo o território brasileiro. Em pleno bloqueio continental na Europa, a abertura dos portos às nações amigas era uma figura de retórica, pois beneficiava unicamente a singularíssima Inglaterra.

A comitiva real ainda se encontrava na Bahia quando os comerciantes locais enviaram ao príncipe uma representação, pedindo-lhe que não permitisse que os ingleses se estabelecessem com casas de negócios nos domínios do Brasil, para não os prejudicar. Os termos do documento:

“O Comércio para ser igual deve ser gênero por gênero, mas ele é vantajoso para aquela Nação que tira algum numerário. Os ingleses não querem comércio igual; querem tirar dele toda a vantagem, recebendo ainda menos de um milhão em gêneros quando introduzem dez em fazenda, querendo tudo o mais em ouro. A Nação que contribui depaupera-se e quando passa um século a riqueza fruto da Indústria Nacional foge toda para a Inglaterra e a vantagem está de sua parte”.

E assim, entre festividades e reivindicações, D. João não teve pressa em deixar a Bahia, para o desgosto de sua mulher, dona Carlota Joaquina, que detestou a cidade, por achar que ela tinha negros demais. Em relação à demora do príncipe na Bahia, bem mais aceitável foi a apreensão do grupo que se desgarrou do restante da esquadra que aportou em Salvador, e, durante mais de um mês, ficou a bordo no porto do Rio, à espera de notícias tranqüilizadoras. Maior ainda foi o tempo de ansiedade da capital do país, que no dia 14 de janeiro de 1808 entrou em grande alvoroço, com a chegada de um brigue de guerra chamado Voador, trazendo a boa nova de que toda a corte portuguesa podia a qualquer momento singrar nas águas da Guanabara.

Então a pacata cidade do Rio de Janeiro, com apenas 50 mil habitantes, agitou-se. Não era para menos. Afinal, ela ia receber os mais augustos hóspedes de toda a sua história. Mas como acomodar, confortavelmente, tão ilustres figuras, e que, de acordo com as informações recebidas, vinham acompanhadas de numerosíssima corte?

Foi aí que o último vice-rei do Rio de Janeiro, Dom Marcos de Noronha e Brito, o conde dos Arcos, pôs toda a sua capacidade administrativa à prova. Para começar, decidiu que a família real ficaria hospedada no palácio que era a sede do governo e sua residência (e hoje é o Paço Imperial, na Praça XV, de frente para a rua Primeiro de Março). Ele, o conde dos Arcos, removeu dali o Tribunal da Relação e a Casa da Moeda, mandando fazer reparos em todo o edifício, com enriquecimento da ornamentação interna e a substituição do mobiliário.

Na seqüência de suas iniciativas, enviou mensageiros a São Paulo e Minas Gerais, não só para levarem a novidade, mas também para conseguirem mantimentos e outras utilidades. A demora de D. João na Bahia acabou sendo benéfica para o Rio, que teve mais tempo para preparar-lhe uma recepção retumbante, com pomposas luminárias, coretos engalanados, e uma alegoria com um monumental retrato do príncipe sendo homenageado por um índio. O desembarque festivo da família real e sua corte aconteceu no dia 8 de março. Mas já na véspera, a população da cidade se apinhou nos altos dos morros para aguardar o instante em que a esquadra lusa atravessasse a barra. No dia seguinte, todos acorreram em delírio ao cais e se deslumbraram logo ao primeiro olhar para aquelas personagens metidas em roupagens tão luxuosas que pareciam divinas. Suas Altezas pisaram em terra aos pés de um altar levantado para as bênçãos do Chantre (o cantor litúrgico) da cidade, solenemente rodeado pelo cabido da catedral. Depois do desembarque triunfal, D. João e seu séquito adentraram a cidade em magnífico cortejo, ao som de sinos e salvas entre alas de militares e sobre um chão juncado de folhas e de flores. O desfile seguiu pela rua Direita (hoje Primeiro de Março) até a igreja da Sé, na rua do Rosário, onde se celebraram grandes cerimônias religiosas e o príncipe e a princesa concederam o primeiro beija-mão real no Rio de Janeiro.

O que surpreendeu a todos, porém, foi o tamanho da corte, calculada em mais de 15 mil pessoas. Gente demais para uma cidadezinha ainda modesta, cujo perímetro urbano continha apenas 75 logradouros públicos, sendo eles de 46 ruas, 4 travessas, 6 becos e 19 campos ou largos. Espantado com as proporções da imigração da nobreza e seus acólitos que ele teria de alojar, D. Marcos de Noronha, o conde dos Arcos, providenciou rapidamente a anexação ao palácio dos vice-reis dos dois edifícios maiores que ficavam mais próximos: a Cadeia e o Convento do Carmo, onde, no pavimento mais nobre, foram instalados os aposentos de D. Maria I, a Rainha Louca, que ali passou os últimos anos de sua triste vida, que expirou no dia 20 de março de 1816.

Continuemos na questão crucial para o Rio de Janeiro, à chegada da corte, assim definida por Gastão Cruls: “Se a família real trazia nas suas arcas muitos milhões de cruzados em valores públicos e privados, se muitos fidalgos não se tinham separado de mobiliário e de alfaias, se as repartições se transferiam acompanhadas do respectivo papelório, se íamos ter biblioteca e tipografia, maior ainda o embaraço para dar alojamento a tudo isso”.

A desocupação compulsória de muitas residências em benefício dos fidalgos portugueses trouxe sobressalto aos proprietários e inquilinos, que logo viam pregado a uma de suas portas um sumário edital do governo, com as iniciais P. R. (de Príncipe Regente), que a maledicência popular dizia ser a abreviatura de “ponha-se na rua”. Pois era para a rua mesmo que os antigos moradores tinham de ir, de mala e cuia, à procura de um lugar para encostar a carcaça, longe da fidalguia. Tanto transtorno acabou por provocar a necessidade de se intensificar a construção civil, para moradias e repartições públicas.

Enquanto isso, o reino se instalava, provocando no país uma revolução administrativa sem precedentes em toda a sua história, que já chegava aos 308 anos. Mais que depressa, foram criadas repartições civis, militares, judiciais e eclesiásticas destinadas aos órgãos governamentais de profundas e seculares raízes na cidade de Lisboa. E assim se invertia a estrutura orgânica na relação entre a metrópole e a sua principal colônia. O Império português passava a ter o seu comando no Brasil. Os primeiros decretos de impacto assinados por D. João, aqui, foram, sem dúvida, o da abertura dos portos – que apesar do favorecimento à Inglaterra, viria a incrementar a navegação com os Estados Unidos da América e com as principais nações da Europa -, e a revogação, em 1º. de abril de 1808, do alvará de 5 de janeiro de 1785, que proibira a instalação de indústrias e manufaturas em nosso país, exceção feita à construção naval, que sempre fora estimulada pelos reis de Portugal desde o século XVI. Bem a propósito, escreveu o padre Luís Gonçalves dos Santos (Padre “Perereca”), em suas Memórias para Servir ao Reino do Brasil: “Se na cidade da Bahia, o Príncipe Regente Nosso Senhor, pela sua memorável carta régia de 28 de janeiro lançou a primeira pedra fundamental no alicerce do grande Império que veio criar no Brasil, pela concessão da franqueza do comércio, nesta Corte do Rio de Janeiro pôs a segunda pedra fundamental pelo alvará de 1º. de abril, permitindo aos brasileiros toda e qualquer qualidade de indústria”.

Até a chegada de D. João, a Colônia vivia na maior carência. Sem indústria própria, dependia do que Portugal podia e queria lhe abastecer. Faltava tudo por aqui. Não havia sequer copos, tesouras e talhares para todos. Com a abertura dos portos, a Inglaterra, desconhecendo totalmente o nosso clima, enviou para cá um carregamento de patins para a neve, fogões para calefação interna, bacias de cobre para aquecimento de camas, e grossos cobertores. O mais incrível é que nada foi devolvido. Compraram tudo. As bacias foram aproveitadas como escumadeiras nos engenhos de açúcar; as lâminas de patins transformaram-se em trincos de porta, facas e até ferraduras; os cobertores de lã seguiram para as zonas de mineração, onde seriam usados para reter as partículas de ouro nas águas dos rios. Ao serem informados das necessidades brasileiras, os ingleses passaram a enviar tecidos de Manchester, porcelanas, ferro, chumbo, cobre, zinco, pólvora, queijos, manteiga, cerveja. E quando o comércio com os franceses passou a ser permitido, estes nos enviaram jóias, móveis, velas de cera, medicamentos, relógios, licores, e, principalmente, artigos de toalete, coisas da moda, quinquilharias finas, todos os perfumes de Paris.

Conquanto sejam por demais conhecidos os benefícios que D. João trouxe ao país, não custa nada rememorar suas principais contribuições para o nosso processo civilizatório, como a Biblioteca Nacional, com mais de 14 mil livros, além dos documentos salvos do terremoto de Lisboa, em 1755; a nossa primeira instituição de ensino superior, a Escola Naval, criada por D. Maria I, à semelhança da Escola Naval Britânica; a Impressão Régia, de cujos prelos sairia, em 10 de setembro de 1808, o primeiro número da Gazeta do Rio de Janeiro, um pequeno jornal que publicava na última página o movimento de chegada e partida de navios no porto do Rio; o Jardim Botânico; o Banco do Brasil; A Escola de Astronomia; a elevação do Brasil a Reino Unido a Portugal e Algarves, em 1815; a promoção da vinda da Missão Artística Francesa, em 1816; a inauguração da Praça do Comércio, em 1820, que deu origem à Associação Comercial do Rio de Janeiro.

Com a morte de D. Maria I, em 1816, ele viria a ser aclamado rei, o que, no entanto, só aconteceria em 1818, pelos seguintes motivos: 1º. – seu desejo de observar o luto de 10 meses; 2º. – a campanha militar luso-brasileira no Sul, contra os uruguaios; 3º. – a revolução de Pernambuco, em 1817; 4º. – conspiração em Portugal. Na aclamação, os comerciantes do Rio de Janeiro o saudaram como o Libertador do Comércio. Ele se sentia satisfeito pela decisão tomada naquele tumultuoso mês de novembro de 1807. No Brasil, era olhado com uma ternura que não tinha em casa, nem no seu país. Dona Carlota Joaquina, porém, não escondia o seu ódio aos brasileiros. E traía o marido cada vez mais. Ela não parava quieta em lugar algum. Nem acompanhava D. João, que vivia entre o Paço de São Cristóvão, onde passou a morar, e o Paço da Cidade, que deixara de ser a sua residência, por ele não suportar o barulho do comércio e dos cascos dos cavalos na rua Direita, durante o dia, e das bebedeiras e batuques noturnos na quitanda dos escravos. Se, em Portugal, D. João era um comodista, capaz de ficar quase um ano sem sair do palácio de Mafra, o que ia lhe valendo a fama de doido, no Rio ele se tornou um andarilho. No seu roteiro de passeios, estavam a Chácara de Botafogo, o Jardim Botânico – onde lhe construíram até uma casinhola -, a Ilha do Governador – ali se hospedando com os monges beneditinos -, a Ilha de Bom Jesus – a convite dos frades franciscanos -, a Ilha de Paquetá – na qual dispunha de uma casa particular -, a Fazenda de Santa Cruz.

Em A Pequena-Grande História de D. João, texto de apoio a uma peça teatral que escreveu para o Teatro A Barraca no ano de 1979, o dramaturgo português Helder Costa lhe reputa “uma vida trágica, de uma teatralidade Shakespeariana”. E traça-lhe um perfil irretocável: “A loucura da mãe empurra-o para o trono, o casamento com Carlota Joaquina para a infelicidade, a diplomacia internacional para o compromisso, a hesitação, a indefinição. O Brasil será o Paraíso onde o Rei irá descansar. Longe do campo de batalha em que se transformou a Europa, sente-se tranqüilo e seguro, próspero e compensado. Mas em Portugal, o povo agita-se e derrota o ditador inglês. Em pânico, as velhas famílias recordam-se do seu país de origem, das terras e dos palácios abandonados, e obrigam o Rei a voltar. Para que tudo regresse à ordem, para que o país não caia em excessos”.

Ele regressou a Lisboa em 1821, deixando em seu lugar o filho Pedro, que no ano seguinte iria reger a independência do Brasil. Junto com a comitiva real, seguiu, em suntuoso sarcófago, o corpo de D. Maria I (“Não corram tanto! Vão pensar que estamos fugindo…”), que esperou 5 anos para ser levado à sua última morada, uma sepultura no Convento do Coração de Jesus, o reino do silêncio que a soberana havia fundado, e de cujo trono loucura alguma a destituiria mais.

D. João VI morreu em 1826… envenenado! Final da história, nas exatas palavras de Helder Costa: “Morreram também o médico, o cirurgião e o cozinheiro. Para não ficar testemunha”.

Se, por um lado, D. João VI é reconhecido como um vulto excepcional da História do Brasil, à qual deu um grande impulso, por outro nunca se livrou inteiramente do estigma de fujão, covarde, feio, apalermado, sovina, ridículo, mal-amanhado em suas vestes remendadas, curto de inteligência, precário de caráter, filho de mãe demente, um porco que devorava 9 frangos por dia, estraçalhados à mão, jogando os ossos ao chão; e que não tomou um único banho nos 13 anos que reinou no Brasil. E chifrudo, ainda por cima. Ave Maria, Majestade! Mas consolai-vos. Enquanto o mundo girou e a lusitana rodou, vossa alteza agora era o herói. Alvíssaras, pois, pois.

Leitura e história em Hans Staden: diálogos entre culturas no Sítio

Trabalho apresentado no II Enllij/ UESB – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, na cidade de Jequié, em 2 de maio de 2008.

A leitura

Um livro de Monteiro Lobato, no qual, em seus serões no Sítio do Picapau Amarelo, Dona Benta conta aos netos Narizinho e Pedrinho as aventuras de Hans Staden, o alemão que um dia, no ano de 1547, saiu de casa, na pequena cidade de Homberg, no estado de Hessen, “para ver o mundo, viajar, cortar os mares”. No seu caminho estavam as cidades de Bremen, ainda na Alemanha, Campon, na Holanda, Setúbal e Lisboa, em Portugal, onde esperava embarcar rumo às Índias. Não encontrando navio em tal direção, engajou-se como artilheiro em outro, que estava de partida para o Brasil, com quarenta marinheiros. Depois de oitenta e oito dias de mar, eles chegaram a Pernambuco, colônia governada por Duarte Coelho, que pediu ao capitão do navio recém-chegado que o ajudasse, com os seus homens, a deter uma revolta dos nativos.

(Vejamos como Dona Benta explica aos seus netinhos os motivos dessa revolta:

-… Os colonos haviam capturado e escravizado alguns selvagens. A raça vermelha, ou índia, nunca suportou a escravidão. Preferia a morte, e se não fosse a ganância dos brancos, quer portugueses, quer espanhóis, ganância que os levou a insistir na escravidão dos índios, não teria havido nas Américas os horrores que houve).

Como viajava a serviço de Portugal, logo ao chegar à terra brasileira, o alemão teve que virar caçador de índios, e ajudar os colonos portugueses de Pernambuco a derrotá-los, depois de mais de um mês de batalhas. Aliás, nessa viagem não faltou campo de treinamento de guerra a Hans Staden. Pra cá e pra lá, houve muito tiroteio, nas caças a navios corsários, entre eles um de contrabandistas franceses de pau-brasil. Mas, batalha dura mesmo foi a do regresso a Lisboa, com 108 dias de calmaria. Os mantimentos escassearam e todos os marinheiros passaram fome. Para evitar a morte, tiveram de comer um carregamento de couro de cabrito que traziam a bordo. Só puderam tirar a barriga da miséria quando piratearam um barco inimigo, carregado de farinha, vinho e outras iguarias.

(Ao ser contado por Dona Benta, esse episódio suscitou o seguinte comentário do seu neto Pedrinho:

– Que boa vida! – exclamou o menino. – Bem diz vovó que a história da humanidade é uma pirataria sem fim…

Ao que Dona Benta respondeu:

– Infelizmente é verdade, meu filho. Com este ou aquele disfarce de pretexto, o mais forte tem sempre razão e vai pilhando o mais fraco.

Narizinho entrou na conversa:

– É a fábula do lobo e do cordeiro… lembrou a menina).

Bem, Hans Staden voltou a Lisboa são e salvo, depois de 16 meses de viagem. Descansou por uns tempos, já pensando em ir mais longe. Em 1549, ele partiu de Sevilha com uns espanhóis que queriam chegar ao Rio da Prata, e de lá seguir até o Peru, de onde esperavam voltar cobertos de ouro. O navio espanhol naufragou nas proximidades de uma praia chamada Itanhaém, no litoral de São Paulo, quando tentavam alcançar São Vicente. Todos se salvaram, a nado. Hans Staden resolveu ficar por ali, vindo a ser contratado pelos portugueses para combater os indígenas que lhes eram hostis. Em 1554, foi capturado e feito prisioneiro dos tupinambás por nove meses, sob o terror de ser devorado pelos temíveis canibais.

Para Monteiro Lobato, as memórias de Hans Staden representavam o melhor documento daquela época (século XVI), quanto aos costumes e mentalidade dos índios. Em vista disso, dizia ele, dona Benta não poderia deixar de contá-las aos seus queridos netos – como não poderiam as outras avós e mães deixar de repeti-las aos netos e filhos. E acrescentou: “Para facilitar-lhes a tarefa damos a público este apanhado, em linguagem bem simples, no qual seguimos fielmente a obra original”.

Lobato achava também que as aventuras de Hans Staden se equivaliam às de Robinson Crusoé, do livro de Defoe, que chegou a se tornar talvez o mais popular do mundo, graças exatamente às suas muitas adaptações para crianças, “remoçadas no estilo, de acordo com os tempos”. Foi o que ele fez em As aventuras de Hans Staden: uma adaptação com linguagem atualizada, emparelhando-as às de Robinson Crusoé em pitoresco, interesse humano e lição de moral. Sem se falar na capacidade de fabulação que ele emprestou à sua narradora de sempre, que bastava se sentar numa velha cadeirinha de pernas surradas para pôr as crianças à roda, cada uma mais interessada do que a outra em ouvi-la. E tome perguntas. Com paciência de avô, dona Benta dá verdadeiras aulas de português, história, geografia etc. Explica as divergências entre tupinambás e tupiniquins, e as dos portugueses com os franceses, trazendo para o Sítio do Picapau Amarelo os choques entre povos de culturas diferentes. E tudo com o poder de sedução da velha e boa contadora de histórias.

Numa nota biográfica sobre Monteiro Lobato lê-se que ele fez de dona Benta o personagem adulto que aceita a imaginação criadora das crianças, admitindo as novidades que vão modificando o mundo. E que seus personagens infantis são crianças abertas a tudo, querendo ser felizes, confrontando suas experiências com o que os mais velhos dizem, mas sempre acreditando no futuro. E nisso, acrescentemos agora, ele estabelecia um diálogo entre gerações. E também com o remoto passado, como em As aventuras de Hans Staden.

A história por trás do livro que Lobato reescreveu

No ano de 1557 era publicado na Alemanha um relato que instantaneamente causou um grande estardalhaço. Título: Descrição verdadeira de um país de selvagens nus, ferozes e canibais, situado no novo mundo América, desconhecido na terra de Hessen antes e depois do nascimento de Cristo, até que, há dois anos, Hans Staden de Homberg, em Hessen, por sua própria experiência, os conheceu e agora publica, aumentada e melhorada diligentemente pela segunda vez. Ou seja: a capa do livro era um resumo da obra, assombrosa, para os padrões da época. Foi um arraso, comparável ao que Hans Staden presenciou, ao ver o grande guerreiro Cunhambebe comandar uma batalha dos tupinambás contra os tupiniquins, concluindo que caíra nas mãos de um gênio militar. E o chamou de “chefe supremo”. Foi sua salvação. Naquele ano de 1554, o mais temido, respeitado e odiado dos morubixabas andava com a vaidade à flor da pele, por ter sido o cacique escolhido unanimemente para chefiar a Confederação dos Tamoios, que uniu várias tribos amigas e inimigas num só exército, de São Vicente a Cabo Frio. Por que Confederação dos Tamoios? Porque significava a união dos mais velhos do lugar (tamoio quer dizer isso), que viria a dar combates sem trégua aos invasores dos territórios indígenas, que amarelavam quando o grito de guerra de Cunhambebe fazia a terra tremer. PERÓS! Maneira de ele dizer: Ferozes. Era o que dizia dos portugueses, que também chamava de traiçoeiros e covardes. Vingava-se esfregando as mãos, lambendo os beiços e arregalando os olhos diante de um pedaço de português pronto para ser degustado, de preferência um braço e os dedos das mãos.

Quando foi apanhado, Hans Staden lutava com os tupiniquins, aliados dos portugueses, portanto inimigos dos tupinambás e de todos os confederados. Cunhambebe pensou que ele fosse português, o que o condenava à execução. O alemão insistia em dizer que era francês, pois sabia da aliança dos franceses com os nativos, contra os portugueses. Tenha sido pelo exercício da dúvida, ou pela lisonja, o certo é que Cunhambebe desistiu de devorá-lo, dando-o de presente a um cacique de uma aldeia amiga. O que não significou o fim do apavoramento de Hans Staden, que rezava o tempo todo. Conforme narrou em seu livro, Deus ouvia suas preces e o socorria, detendo tempestades, que tanto apavoravam os índios. Por suas graças recebidas dos céus, ia tendo o seu sacrifício protelado. Acabou escapando de ser o personagem principal de um ritual antropofágico, para contar a história. O episódio do seu embarque num navio francês é simplesmente eletrizante, envolvendo artimanha, diplomacia, sangue-frio.

Mesmo sendo considerada fantasiosa demais – logo, não tão verdadeira assim -, essa história provocou pesadelos nos seus leitores, que se viam digeridos por seres demoníacos, a lhes chuparem os ossos até o tutano. Nas peripécias de Hans Staden, não faltavam ação, suspense, perigo, exotismo, azares, golpes de sorte e… milagres! Foi, portanto, com essa infalível receita de best-seller, que surgiu numa pequena cidade chamada Marpurgo, a primeira edição do primeiro livro sobre o Brasil, cuja existência, conforme se lia no próprio título, os alemães desconheciam, ainda que a cobiça por novos mundos já tivesse tomado conta da Europa, sob a capa da sedução da aventura nos mares (“nunca dantes navegados”), que levavam às riquezas desconhecidas em terras e ilhas distantes. Tal avidez havia se intensificado já nos inícios das grandes navegações, a partir de uma carta do navegante florentino Américo Vespúcio, publicada em Paris como um folheto, em fins de 1503 ou inícios de 1504. Nessa carta, endereçada ao financista de Florença Lorenzo di Pierfrancesco dei Médici, seu patrão e amigo, a quem chamava de “magnífico”, Vespúcio relatava a viagem que fizera em 1501-1502 às “novas regiões que – por mando desse sereníssimo rei de Portugal, às suas custas e com sua frota – procuramos e encontramos, às quais é lícito chamar de Novo Mundo, porque nenhuma delas era conhecida dos maiores; porque é coisa novíssima para todos que ouvira [falar] delas…” Fechemos as aspas para lembrar que ele estava a reportar-se à expedição lusitana às costas brasileiras, no ano seguinte à de Pedro Álvares Cabral, numa longa jornada comandada por Gonçalo Coelho, que resultou nos batismos do Cabo de São Roque, no Rio Grande do Norte, Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, Baía de Todos os Santos, Rio de Janeiro, Angra dos Reis, Santos e São Vicente, dali seguindo até a Patagônia. O Novo Mundo descrito por Américo Vespúcio dava asas à imaginação do velho continente: era sem rei nem lei, com uma população imensa, impressionável pela sua total liberdade de costumes – social e moral -, pois desconhecia o pecado; todos viviam como saíam do ventre materno, em despudorada libidinagem, entregando-se perdidamente aos excessos amorosos; doença era raridade – e facilmente curável, com ervas; vivia-se 150 anos, caso não se morresse antes, nas guerras tribais; os homens eram fisicamente perfeitos e as mulheres formosíssimas, inclusive “nas partes que não podem honestamente ser nomeadas”; além disso, os homens podiam possuir quantas mulheres desejassem; e elas, em sua luxúria que excedia a imaginação humana, inventavam artifícios que tornavam o ato do amor mais excitante. Acrescentemos a isso as referências aos rituais canibalísticos e imaginemos o impacto causado aos corações e mentes do Velho Mundo.

Lida avidamente, a carta de Vespúcio contabilizou em pouco tempo vinte e cinco edições em latim, italiano, alemão, holandês e tcheco. Esse sucesso retumbante foi esquentado por uma edição em Veneza, quando apareceu na capa, pela primeira vez, o título Novus Mundus. A sua repercussão se tornou mais espetacular ainda quando um editor de Augsburgo, em uma cartada genial, inseriu ilustrações que amplificaram o interesse pelo documento. E depois vieram outras cartas, algumas tidas como falsas, o que pouco importava. Àquela altura, o navegante florentino já tinha se tornado a personagem mais lendária dos descobrimentos.

Para além do seu alcance popular, os escritos de Américo Vespúcio viriam a ter influência na construção teórica do estado natural do homem, iniciada pelo humanismo filosófico do século XVI. Foram lidos por Michel de Montaigne, Erasmo de Roterddam, Thomas Morus, Rabelais, Nicolau Maquiavel – e também por Leonardo da Vinci e Boticelli. E empanaram a aura heróica de Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral. Tanto quanto o brilho do escrivão da frota de Cabral, Pero Vaz de Caminha, autor da carta a el-rei Dom Manuel, datada de primeiro de maio de 1500, que o tempo consagraria como a certidão de nascimento do Brasil, e também como uma crônica admirável, pela riqueza de informações sobre a terra, que lhe pareceu bela e rica, e seus habitantes, que descreveu como se os pintasse: “A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar as vergonhas; e nisto têm tanta inocência quanto em mostrar o rosto”, Caminha escreveu, daqui da Bahia, dali, de Porto Seguro. Com tanta agudeza de percepções, por que sua carta, e a de Colombo, não repercutiram tanto quanto a de Américo Vespúcio?

No caso do genovês, provavelmente por ele não haver localizado corretamente as Antilhas caribenhas aonde os ventos o levaram. Situou-as no Oriente, ou seja, na cobiçada Índia, chamando os seus habitantes de índios, designação que se tornaria comum a todos os povos do continente. Mesmo tendo garantido haver entre eles homens que nasciam providos de rabo, como os macacos, a carta de Colombo não produziu uma fascinação comparável às aventuras de Marco Pólo, no século XIII, nem às do seu contemporâneo Américo Vespúcio.

Quanto à carta de Caminha, passou em branco. Nem sequer foi aberta por Dom Manuel I, que a largou sobre um móvel, onde não despertou a curiosidade de ninguém, durante muito tempo. Deveu-se isto à política do sigilo de Portugal, em decorrência de sua rivalidade com a Espanha, que vigiava todos os seus projetos marítimos, através de um bem montado serviço de espionagem. Mas, pelo visto, Américo Vespúcio não se via obrigado a silenciar sobre suas idas e vindas nos caminhos marítimos dos portugueses, os quais seguira menos a mando de D. Manuel I e mais a convite de um banqueiro seu compatriota chamado Bartolomeu Marchionni, que vivia em Lisboa. Personalista, sedento de fama, nada o deteria em sua busca de notoriedade. Tanto que passou por cima de Colombo, Cabral, Caminha e Gonçalo Coelho – de quem era comandado e ao qual jamais fez a menor referência – e acabou patenteando para si próprio o que chamou de “a quarta parte do mundo”, que a partir de então passaria, pelos séculos afora, a ser a América do Américo, apenas por haver escrito uma carta na qual batizou um continente, e com ela, e mais algumas outras prováveis ou improváveis, se tornou o mais lido cronista dos descobrimentos, deixando a Europa aturdida ao ver que havia no mundo um outro rosto além do seu. Um rosto selvagem, porém belo, com uma boca que comia carne humana, para se refazer das energias gastas nas batalhas. Pois assim vivia o velho povo do Novo Mundo: em festa ou em guerra.

Marinheiro que pegou o barco quando as grandes navegações já haviam avançado em mais de 40 anos, Hans Staden não se destinava à lenda dos navegantes epopéicos. Era um anônimo em busca de horizontes fora do limitado Velho Mundo. Entre as aventuras transatlânticas e as desventuras de um naufrágio e da vida de prisioneiro sob a ameaça de ser devorado pelos canibais, sentiu na pele o que os outros escritores viajantes viram apenas de passagem. Por isso ele fez o relato mais impressionante daquela época, que teve numerosas edições em alemão, flamengo, latim, inglês e francês. Mas só apareceria em língua portuguesa no finzinho do século XIX, no quarto volume da revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Para Lobato, com o passar do tempo o livro de Hans Staden se tornara incompreensível e indigesto, só interessando aos eruditos. Daí, conforme suas próprias palavras, ele, o criador do Sítio do Picapau Amarelo, o haver traduzido em linguagem acessível às crianças, “em harmonia moderna, troante com o gosto do momento”, para o encanto e espanto dos meninos de antigamente, entre os quais se incluía este que vos fala.

Como se constrói um personagem

(Conferência proferida na Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro e publicada no jornal Rascunho,
de Curitiba, em julho de 2007).

“Começa-se com um indivíduo e, antes que se dê conta disso, descobre-se que se criou um tipo; começa-se com um tipo e descobre-se que não se criou coisa nenhuma. E isto porque somos todos uns pássaros bizarros, mais estranhos ainda por trás de nossa aparência do que desejamos que alguém saiba, ou do que nós próprios sabemos. Quando ouço um homem proclamar-se ‘um tipo mediano, honesto, aberto’, fico com a certeza de que tem qualquer anormalidade concreta e talvez terrível, que resolveu esconder – e os seus protestos de que é mediano e honesto e aberto são a maneira de recordar a si próprio a sua conveniência”.

Isto é o começo de um conto. Título: O moço rico. Autor: Scott Fitzgerald. O que temos aí? Um narrador a confabular sobre a sua insegurança, ao situar-se na linha imaginária entre seres reais (personagens estranhos, por trás de seus rostos e vozes), e os de papel (máscaras ou representações dessas mesmas pessoas), que podem nada significar. Como se   temesse ser devorado pela Esfinge que ainda vai criar, à imagem e semelhança de um amigo de longa data. Não deduzamos que ele se sente perdido na selva das palavras. Tem uma bala na agulha e a detonará no momento preciso – passamos a perceber isso quando nos revela o seu alvo: “Não há tipos, nem generalizações. Há um moço rico e esta é a história dele…”

Pronto. O personagem já foi enunciado. Mas ainda vai demorar um pouco para sabermos o seu nome e qual é o seu conflito básico, o que, afinal, é a motivação de todo conto.

Figura ambígua – passível de ser confundida com o próprio Fitzgerald -, esse narrador estaria diante do seguinte dilema: como transformar uma pessoa em personagem, sem fazer dela uma caricatura grotesca? Daí as suas auto-advertências, que acabam por levá-lo a um intento ambicioso. Desconstruir as falsas imagens que os pobres têm dos ricos e estes de si mesmos. “Quando pegamos um livro sobre os ricos, um instinto qualquer logo nos prepara para a irrealidade. Até os narradores mais inteligentes e neutros, tornaram o mundo dos ricos tão irreal quanto o país das fadas”.

Ou seja: até ali, ao escreverem sobre os ricos, todos os escritores (norte-americanos, bem entendido) teriam obliterado um suporte essencial à construção de personagens: o da verossimilhança. E esse “ali” era a década de 1920, quando, na euforia do primeiro pós-guerra, os Estados Unidos da América se tornaram a nação mais rica do mundo.

Mas temos mais duas possibilidades de interpretação do preâmbulo do conto que ainda se vai contar:

Primeira: uma oficina do contista para si mesmo, enquanto aquece os dedos e a mente, preparando-se para pôr o seu personagem em ação. (Um contemporâneo de Fitzgerald, William Faulkner, dizia que, para ele, o barato de ser escritor era poder criar um animal de duas patas e pô-lo em movimento).

Segunda: um jogo de cena, no qual, antes de sermos apresentados ao personagem, ele, o narrador, pede permissão para nos introduzir a um universo que julga desconhecermos: “Deixem que eu lhes fale dos muitos ricos. Eles são diferentes de nós – de mim e de vocês. Habituaram-se a possuir e usufruir desde muito cedo e isso os influencia, tornando-os brandos onde somos duros, e cínicos onde somos confiantes, num processo difícil de compreender, a não ser que se tenha nascido rico”.

Atentemos para essa aliança estratégica narrador-leitor. O que se explica. Durante um bom tempo, Fitzgerald ganhou muito dinheiro escrevendo contos para revistas de grande circulação na classe-média. Aqui o vemos a tentar seduzi-la, através do conceito que o seu narrador faz dos ricos.

“Lá no fundo de seus corações se acham melhores do que nós, porque tivemos de descobrir sozinhos as compensações e os refúgios da vida. Mesmo quando penetram profundamente no nosso mundo, ou descem abaixo do nosso nível, continuam a pensar que são melhores do que nós. São diferentes”.

E só então, já no final do primeiro capítulo da história que ainda não começou a contar, ele nomeia o seu personagem, revelando-nos, finalmente, a saída que encontrou para construí-lo:

“A única maneira que tenho para descrever o jovem Anson Hunter é abordá-lo como se fosse um estranho e manter teimosamente o meu ponto de vista. Se por um momento aceitar o dele, estarei perdido – e nada terei a mostrar a não ser um filme absurdo”.

Resumo da ópera: eis aí um caso exemplar de estratégia narrativa, para quem se interessa pelo processo criativo dos escritores, a começar pela angústia da primeira frase – ah, a tela em branco! O que estará a me dizer? Que estou de pote vazio? Que não tenho mais café no bule? Decifra-me ou te devoro? Até que numa bela manhã um santo baixe (ou será uma santa, chamada Inspiração?). Aquela para a qual o próprio Fitzgerald, durante um período de desoladora baixa criativa, que o fizera perder a sua esplêndida miragem, exclamava: “Volta, volta, oh, resplandecente!”

Deixem que eu lhes fale um pouco mais de Fitzgerald, o soberbo criador de tipos que se tornou o melhor e o pior protagonista de si mesmo, ora no papel de autor glorioso, ora no de personagem arruinado.

Quando a luz verde que iluminava o palco do seu orgiástico futuro se apagou, ele desceu às trevas de um inferno íntimo, para declamar, com a autoridade que o fracasso lhe conferia: “Na noite escura da alma são sempre três horas da manhã”. Enquanto isso, um outro personagem subia ao paraíso. Chamava Ernest Hemingway. Lá de cima, com a autoridade do sucesso,  contemplou a decadência daquele que havia sido um dos seus pares mais constantes. E sentenciou: “Seu talento era tão espontâneo como o desenho que o pó faz nas asas de uma borboleta. Houve uma época em que ele tinha tanta consciência disso quanto a borboleta, não ligando para o fato de que seu talento podia apagar-se ou desaparecer de todo. Mais tarde começou a preocupar-se com as asas feridas e sua estrutura; aprendeu a refletir, mas já não conseguia voar porque o amor ao vôo o abandonara. Restava-lhe apenas a lembrança dos dias em que voar fora um ato natural”.

A ironia dessa história: ele também, o personagem chamado Ernest Hemingway, acabou vendo a sua musa inspiradora bater asas do seu ninho, qual uma borboleta. E todos sabemos no que isso deu. Hemingway pegou uma espingarda, não para sair à caça da inspiração, na esperança de poder trazê-la de volta. Simplesmente enfiou o cano da arma na boca. E apertou o gatilho. Portanto, há que se ter cuidado com qualquer atormentado pela página em branco. E ainda mais se ele estiver com a barba por fazer.

Mas se ela, a santa Inspiração, voltar, qual uma Fênix, o escritor poderá reerguer-se, sentindo-se capaz de pegar de novo o fio da meada, e enfiá-lo pelo fundo da agulha. E daí, entre a euforia e a ansiedade, tentará de novo costurar um personagem, que com sorte adquirirá pernas para andar por conta própria, movido pela dialética do discurso ficcional. Se ele, o personagem, chegar a tanto, tudo que o autor tem de fazer é não atrapalhá-lo, pondo pedras no seu caminho.

Epílogo do resumo: o personagem chamado Anson Hunter, The rich boy, deu a Francis Scott Key Fitzgerald um conto memorável, até hoje incluído nas antologias de suas melhores histórias curtas, ou, se preferem, short stories. Uma delas, organizada, traduzida e prefaciada por Ruy Castro, foi publicada no Brasil recentemente, pela Companhia das Letras. O menino rico (na tradução do Ruy) está na página 126. E este “menino rico” é apenas um entre os muitos tipos fascinantes criados por Fitzgerald. O mais inesquecível deles é Jay Gatsby, o protagonista de O grande Gatsby, que já teve três adaptações cinematográficas. Na virada dos mil e novecentos para os dois mil, fizeram uma eleição no mundo de língua inglesa, para a escolha dos melhores romances do século 20. O grande Gatsby foi o segundo mais votado, ficando abaixo apenas do Ulysses, de James Joyce, consensualmente tido e havido como a obra mais inovadora de todos os tempos. Era agora que o velho Scott poderia morrer dando umas boas risadas.

Laureado autor da Era do Jazz, que lhe deu fama, grana, e lhe ensinou a conjugar o verbo dissipar em todos os tempos e modos, no eixo Nova York – Paris – Riviera francesa (cenário de seu melancolicamente belo Suave é a noite),Fitzgerald morreu cedo, aos 44 anos, esquecido em Hollywood, que detestava (trabalhou em roteiros como o de E o vento levou, imagine!), ali tendo de dar duro para pagar as contas do hospício onde sua mulher, Zelda, estava internada. Deixou um romance inacabado, O último magnata, que foi levado às telas, com Robert De Niro no papel principal, numa atuação contida, densa, que certamente aplaudiria, sentindo-se um pouco compensado pelos massacres hollywoodianos às suas histórias, como no filme A última vez que vi Paris, adaptado de Babilônia revisitada – que também está na antologia organizada por Ruy Castro -,um contosensível, pungente, comovedor, de trágica beleza, que o artificialismo de Hollywood deturpou a ponto de torná-lo irreconhecível.

Scott Fitzgerald não era brilhante apenas na construção de cenários, tipos, estratégias narrativas, ritmo e cadência, enfim, na arte e beleza do seu texto, da sua linguagem e do seu estilo, que cativam logo de cara: “Jim Powell era um boa-vida. Por mais que eu deseje convertê-lo num personagem sedutor, sinto que seria falta de escrúpulo de minha parte enganar o leitor quanto a esse ponto. Era um boa-vida até os ossos, um boa-vida indiscutível, noventa e nove e três quartos por cento boa-vida…” – e por aí ele foi, sedutoramente. Também era capaz de, numa única frase, por vezes aparentemente banal, tocar no ponto mais vulnerável de uma heroína. Um exemplo: “Ela era ainda uma bela mulher de trinta anos”. Outro: “Ela falava com a voz cheia de dinheiro”. Precisa dizer mais?

*

Mas sim. De onde vem esse ser chamado de a ou de o personagem?

Se ao abrirmos ao acaso qualquer dicionário da língua portuguesa, e formos à letra P atrás dela ou dele, encontraremos, em primeiro lugar, duas outras letras: F e S, de feminino e singular. A seguir, saberemos que a palavra deriva do francês personne (pessoa, indivíduo) acrescida do sufixo age, que, sabemos todos, é masculino.Até aí morreu Neves, uma, ou um, personagem popular.

Na sua primeira acepção, personagem significa “pessoa notável, eminente, importante; personalidade”. E também “pessoa”, sem qualquer qualificativo, quer dizer, alguém igual a mim e à maioria dos mortais. Depois vêm as outras definições: “Papel representado por um ator ou atriz, a partir de figura humana fictícia criada por um autor. Representação teatral de pessoas tiradas da história ou da imaginação. Imagem com que uma pessoa se apresenta em público. Personagem literário em que um autor se encarna etc, etc. Vendo que todas as acepções, de todos os dicionários, dão mais ou menos no mesmo, busquei Persona. Abri um, e nada. Recorri à Grande Enciclopédia Larousse e a “Persona” também não estava lá. Mas alguém sempre me socorre no mundo das palavras. E desta vez tinha de ser ele, o meu querido e finado amigo Antônio Houaiss. Eis aí: Persona/ persõna/ [lat.], s.f (sXX). 1. PSIC – Na teoria de C.G. Jung, personalidade que o indivíduo apresenta aos outros como real, mas que, na verdade, é uma variante às vezes muito diferente da verdadeira.

O item número 2 é rebarbativo: “Personagem literário” etc. O terceiro também repete muito do que foi dito sobre “Personagem”. No final, volta a referir-se à teoria psicanalítica de Carl Gustav Jung (1875-1961, psiquiatra suíço), o vocábulo foi usado originalmente do alemão, emprestado do latim. E só.

Somados todos os verbetes, o reducionismo da teoria de Jung deixa a impressão de que ele choveu no molhado. Mas é preciso levar em conta – digo-me -, que um dicionário geral da língua não tem o objetivo de contribuir para a resolução de dúvidas muito especializadas.

Agora vem a pergunta: por que masculinizei a palavra (o personagem), se ela é feminina? Na verdade, faço tal uso quando o dito cujo é masculino. Ou, vai ver, é porque, primeiro, ele era o herói. Na antiga Grécia era épico. Um arquétipo, um modelo, como Ulisses e Aquiles. Ou trágico como Édipo Rei. Esse herói clássico estava acima dos homens comuns, por ser nobre de sangue azul, mas sujeito às vicissitudes humanas, das quais o calcanhar de Aquiles serve de exemplo. Os épicos geraram o romance. Os trágicos, o teatro.

A partir do Renascimento, entra em cena o herói moderno, no papel do homem-comum, cuja nobreza está no seu caráter, nas suas ações, na sua própria condição. No entanto, o que vai se consagrar na modernidade é a figura do anti-herói, que é patético. Leiamos a sinopse do primeiro deles, que se celebrizou como o verdadeiro fundador da literatura moderna:

Um fidalgo provinciano, que passava o tempo todo a ler romances de cavalaria, acabou por se identificar com os heróis de suas histórias. Um dia, vestiu uma velha armadura, armou-se de espada e lança, e partiu para uma louca aventura. Ao encontrar um grupo de almocreves, parou para conversar com eles. E tentou persuadi-los de que ali pelos arredores havia uma camponesa chamada Dulcinéia, que era a mulher mais bonita do mundo e a senhora dos seus sonhos. Os almocreves deram-lhe uma surra e o levaram de volta para casa, onde o padre do lugar, ajudado por um barbeiro, queimou solenemente todos os seus livros. Sua loucura, porém, era incurável. Ele voltou a montar em seu cavalo, o Rocinante, e partiu de novo para as suas proezas, desta vez na companhia de um fiel escudeiro, chamado Sancho Pança, que tudo faria para remediar as conseqüências dos desatinos que a desvairada imaginação do amo acarretavam. Vencido em combate, foi forçado, por juramento, a abandonar a sua aventura. Foi então que ele descobriu a fatuidade da sua quimera e morreu, deixando a Sancho Pança a realidade de uma existência desprovida de heroísmo e fantasia.

A primeira parte de Dom Quixote foi publicada em 1605. A segunda, em 1615. E com ele, Cervantes pôs em cheque todas as ilusões e princípios estéticos da literatura anterior à sua. O tempo agora era outro. A Espanha deixara de ser um conquistador do mundo para tornar-se o país da burocracia. Todo o seu heroísmo degradava-se.

Dom Miguel de Cervantes Saavedra fez mais: expandiu as fronteiras do romance, tornando-o um espaço entre a ficção e a biografia, e um território entre o real e a imaginação, sendo tudo isso ao mesmo tempo e nada disso, levando o leitor ao terreno da dúvida. O engenhoso fidalgo da Mancha pôs o mais patético dos empedernidos a rir-se. E a partir dele o romance passou a ser um desestabilizador das certezas humanas. Não menos importante: Cervantes inaugurou a figura triangular (herói-mediador-objeto do desejo), e com isso compôs a estrutura profunda do romance ocidental.

O gênero iria crescer na Inglaterra do século 18, com a revolução industrial, quando o campo marcha para a cidade e Londres se torna a maior capital do mundo, enche-se de bordéis, cria o cartão de ponto e o comportamento padronizado. (Logo, logo, Charles Dickens nos dará conta disso).

É no século 19 que o romance chega ao seu apogeu, pelo conjunto da obra de um elenco de gigantes. É o tempo de Tolstoi e Dostoievski, Eça de Queirós e Machado de Assis, Gustave (Madame Bovary sou eu)Flaubert, Sthendal e Balzac, o que dizia: “É preciso desfolhar toda a vida social para ser um verdadeiro romancista. Porque o romance é a história secreta das nações”.

No século vinte, um irlandês pede a palavra. Ora muito bem, estava tudo muito bom, mas era hora de dar uma sacolejada nessas histórias com começo, meio e fim. Afinal, a mente humana não funciona de forma tão linear, mas por fluxos de consciência. O mundo já estava em plena era da psicanálise, que tanto se valeu da literatura. Pois agora a literatura iria se valer da psicanálise. Ao tempo cronológico interpõe-se o psicológico e os monólogos interiores. E esse tempo não era mais o do grego Odysseus, o homérico Ulisses, rei de Ítaca, e sim o de um outro Ulisses, representado pelo anônimo corretor Leopold Bloom, que não tinha nenhuma Tróia para conquistar, epicamente, montado num cavalo de pau. A aventura desse outro Ulisses resumia-se a gastar as solas dos sapatos, perambulando pela cidade de Dublin, por todo o dia 16 de junho de 1904, cruzando pelo caminho com a mulher, Molly, e um jovem chamado Stephen Dedalus.

Paródia da Odisséia, o Ulisses de Joyce quebra a estrutura do romance tradicional, e, ao combinar características de lenda, reportagem, farsa, drama, sinfonia, tratado escolástico, referências simbólicas emprestadas da mitologia, da história e da literatura, faz da experimentação de linguagem, invenção de palavras e inovações estilísticas a sua grande novidade. Foi um escândalo. Pelo menos no Reino Unido e nos Estados Unidos, que o proibiram, por considerá-lo obsceno.  Aí começou a guerra sem lança, armadura e cavalo de pau de James Joyce para conseguir publicá-lo nos países que falavam a sua língua, mas não queria rezar pelo seu catecismo, vanguardista demais. Nessa sua odisséia, de nada adiantaria ele gritar para os censores: “Ulisses sou eu!”, pois o tempo dos heróicos gregos já havia passado e ele agora era apenas um transeunte em Paris, dependendo de favores de alguns de seus pares que combatiam à sombra na livraria de Sylvia Beach – uma americana na Rive Gauche -, e em cafés como o Deux Magots e o Closerie des Lilás, de onde, no entanto, despachavam manifestos pela liberação do Ulisses.

(Parêntesis para uma lembrança: uma vez o escritor Antônio Callado – aquele lorde que tanta falta me faz -, disse o seguinte: “A cultura do século vinte tem as marcas de três nomes: Marx, Freud e James Joyce. Ninguém precisa ter lido Marx para ser marxista, Freud, para ser freudiano e Joyce, para ser joyciano. Porque as contribuições deles estão impregnadas no ar que respiramos”. Bem, Karl Marx entrou aí porque estávamos no tempo das utopias. Quem sabe hoje teríamos de trocá-lo por Bill Gates, Freud, por um autor qualquer de auto-ajuda, e Joyce por Dan Brown?).

O século vinte foi também o de Marcel Proust, Virgínia Woolf – que a crítica situa entre Joyce e Proust -, Franz Kafka, Thomas Mann, Ítalo Calvino. E da tropa de choque norte-americana, comandada por William Faulkner, John Dos Passos, Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway, este, imbatível na arte de construir diálogos.

No Brasil, os modernistas de 22 propugnavam por um rompimento com a norma lusitana, e que viéssemos a escrever de acordo com a nossa fala, levando em conta as suas incorreções. O ícone desse ideário foi um herói sem nenhum caráter, o Macunaíma, de Mário de Andrade.

Mas foram os romancistas de 30 – Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos e José Lins do Rego, que o realizaram, com muito poder de fogo. Hoje, ainda são bem nítidos os traços mais fortes dessa geração. Os de Rachel: o depoimento vigoroso e solidário, contra um quadro social deplorável. Injustiças, fome, miséria. Jorge Amado: sua extraordinária capacidade de criar personagens, de contar histórias; a linguagem desabusada; o lirismo; a simpatia pelos pobres em geral, as prostitutas, vagabundos, e pelo mundo afro-baiano, em contraposição aos mandões, déspotas etc. Zé Lins: a fabulação. Graciliano: além de todas as preocupações comuns aos demais, quanto ao quadro social, ele deixou a sua marca de estilista admirável. E dizia que tinha dois trabalhos. Primeiro, o de escrever cada palavra, frase, parágrafo, com um rigor que chegava a ser obsessivo. Depois, o de reescrever tudo, para abrasileirar o seu texto. (Isto porque, no seu livro de estréia, Caetés, não conseguira evitar a influência de Eça de Queirós).

E se o Nordeste tinha isso tudo, o Sul teve Érico Veríssimo (que dispensa apresentação), e Dionélio Machado, o autor de um clássico, Os ratos. Era o centauro dos pampas. Quanto ao Rio, já havia tido Machado de Assis e Lima Barreto, que dobraram de um século para outro e iriam atravessar os tempos. Precisava mais?  

Vale lembrar a sintonia do nosso ciclo de 30 com o dos Estados Unidos. Sem dúvida alguma, há similitudes – pelas denúncias que apresentam -, entre Vidas secas e Vinhas da ira, de John Steinbeck. Eskine Caldwell, o de Estrada do tabaco, foi outro autor norte-americano bem próximo dos nordestinos.

Então veio o segundo pós-guerra. A Itália ressurge das cinzas com o neo-realismo. Destaques: Elio Vitorini, Vasco Pratolini, Césare Pavese. Da literatura deles, nasce um cinema que arrebata o mundo, pela sua contundência e humanidade. Quem viu Ladrões de bicicleta, já associou as idéias. E que dizer de Roma, cidade aberta, de Rosselini? Este influenciou até o nosso Glauber Rocha. O romancista atrás da câmara: Frederico Fellini. O poeta: Pasolini. Portugal se deixa influenciar pelo neo-realismo italiano, com rescaldos dos romances brasileiros de 30, sobretudo em Alves Redol, o de Barranco de cegos, e nos primeiros momentos de José Cardoso Pires, por quem este leitor aqui sempre teve uma infinita admiração.

França: existencialismo. Sartre, Simone, Camus. À mesa, com seu trompete sobre ela, Boris Vian, um músico da noite, compositor e escritor, amigo de monsieur Jean-Paul e madame Beauvoir. Morreu aos 38 anos, deixando uma obra-prima: o romance A espuma dos dias, detoques surrealistas. O surrealismo, claro, faz parte dessa história, com Breton e Aragon. Na contra-cena, o nouveau roman, propondo uma estética do distanciamento, o que significava trocar o enredo e a psicologia dos personagens pelas descrições minuciosas de ambientes. Seu principal teórico foi o romancista Alain Robbe-Grillet, que ainda deve ser lembrado pelo roteiro de O ano passado em Marienbad, filme dirigido por Alain Resnais. Tendo um pé nesse movimento e outro fora dele, Marguerite Duras, com Boris Vian e Albert Camus (que na verdade era argelino) vieram a salvar o romance francês da inanição, naquele período. 

Inglaterra: tempo de Young angry men. O mais “zangado” deles se chamava Colin Wilson, autor de um sucesso entre os jovens, chamado The outsider. Desse movimento saiu um grande dramaturgo: John Osborne. Ele estourou com uma peça, que virou filme: Look back in anger. Literalmente, Olhe para trás com rancor. Mas quem ficou acima de todos foi lady Doris Lessing, a autora de A erva canta, O carnê dourado e tantos outros romances magníficos.

Estados Unidos: o maior romance de guerra (em volume e repercussão) é algo joyciano e se chama Os nus e os mortos. Autor: Norman Mailer. Ele tinha 25 anos então e já estreou como um peso-pesado das letras norte-americanas. Tornou-se prolífico. Sua obra é vastíssima. Escreveu – e ainda escreve, mesmo passado dos 80 – sobre quase tudo. Publicou livros sobre Marilyn Monroe, Cassius Clay, as convenções republicanas e democratas, o Vietnã, de cartas ao presidente (que era o Kennedy, para o qual fazia até uma defesa de Fidel Castro), sobre Jesus Cristo (um ótimo romance, por sinal, chamado O filho do homem). Brigou muito pelos direitos civis. Virou uma figura pública, no melhor sentido: aquele que intervém em praticamente todas as questões do seu tempo. É dele este petardo: “Para os Estados Unidos da América, a paz é apenas um intervalo entre duas guerras”. O horror, o horror, diria Marlon Brando, repetindo, em Apocalypse Now, o final de Joseph Conrad em O coração nas trevas, que Francis Ford Coppola transpôs para a guerra no Comboja.

 Além de Os nus e os mortos, de Norman Mailer, um outro romance de guerra causou estrondo. O Catch 22, de Joseph Heller, que os da minha idade, se não o leram, deve tê-lo visto no cinema, com o título de Ardil 22.

Essa geração norte-americana é tão poderosa, literariamente falando, quanto a anterior. Recordemos alguns nomes: Truman Capote, Gore Vidal, Carson Mc Cullers, William Styron – lembram de A escolha de Sofia? – James Baldwin.

América hispânica: ninguém escrevia ao coronel, mas o coronel escreveu Cem anos de solidão. E a Colômbia, o Chile, o Peru, o Paraguay, o Uruguay, a Argentina, o México, Cuba, enfim, la pátria grande sonhada por José Marti entrou no mapa do mundo, no qual García Márquez, Borges, Cortázar, Ernesto Sábado, Vargas Llhosa, Juan Rulfo, Juan Carlos Onetti, Cabrera Infante e Isabel Allende se tornaram nomes familiares. Era o boom latino-americano. E nós aqui só tínhamos Jorge Amado para ombrear com esse batalhão, lá fora.

No Brasil: conheci rios, rios largos e profundos. E minha alma ficou profunda como os rios. O mais caudaloso desses rios se chama João Guimarães Rosa, tão grande que nasce em Codisburgo, Minas Gerais, e  desagua no Mississipi, onde William Faulkner fundou um território mítico e nele inscrito a sua legenda. Os dois eram primos. E aparentados de James Joyce, mas, em relação a este, tinham a vantagem das vastidões continentais, dos espantos de um continente que, se já não era mais o Novo Mundo, mundo ainda novo era.

– Nonada. Tudo o que o senhor ouviu não foi tiro de homem, não, Deus esteja.

Eis aí como Guimarães Rosa criava um personagem. Pondo-o a falar com ele. E, a partir da primeira frase, contar-lhe toda a história. Foi assim com o Grande sertão: veredas. Um monumento.

E que mistérios tem Clarice?

Os dos rios que correm para dentro de si mesmos.

E era nesses rios que ela mergulhava, até às profundezas de outras audazes mergulhadoras, chamadas Virginia Woolf e Katherine Mansfield.

Mas cá para nós: Clarice Lispector fez mal às moças. Refiro-me às que se deixaram levar pelas aparências de suas águas, achando que eram só um novo estilo de correnteza. Tirando isso de letra: caíram na armadilha da imitação da sua forma (talvez por culpa da Clarice mesmo. Depois de escrever A imitação da rosa, ela bem que podia ter feito um post-scriptum, advertindo que, ao se imitar uma flor, o máximo que se consegue é uma natureza morta). Porque chega a parecer que é fácil imitá-la, em suas inovações formais. O mesmo não se pode dizer quanto aos seus mistérios. Resumamos isso para conteúdo.

Quando Clarice chegou, cá já estava Lygia Fagundes Telles, confortavelmente assentada no seu trono de rainha paulistana das letras. Autora de um best-seller, o romance As meninas, é no conto, porém, que ela se torna ainda mais admirável, como podemos conferir em seus livros Antes do baile verde e A estrutura da bolha do sabão, entre outros. Empatados em idade, ou um aninho há mais para lá, três ou cinco para cá, estão no centro da sua geração os seguintes barões assinalados: Fernando Sabino, Autran Dourado, José J. Veiga, Antônio Callado, José Cândido de Carvalho, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Murilo Rubião, Carlos Heitor Cony, os cirurgiões plásticos que fizeram as costuras finais nas extirpações, iniciadas pelo Modernismo de 22, às adiposidades da última flor do Lácio, ou seja, os barroquismos, a verborragia e o empolamento lingüístico, que herdamos dos colonizadores lusitanos.

Minha geração encontrou a estrada asfaltada. Da Manaus de Márcio (Galvez Imperador do Acre) Souza, à Porto Alegre de Moacyr Scliar e, um pouquinho depois, João Gilberto Noll. E lá vamos nós à Bahia de João Ubaldo Ribeiro, Marcos Santarrita e Sônia Coutinho. Às Minas Gerais de Oswaldo França Júnior, Ivan Ângelo, Wander Pirolli, Roberto Drummond e Luiz Vilela. Ao Rio de Nélida Piñon, Sérgio Sant’Anna e do gaúcho-carioca Flávio Moreira da Costa. À São Paulo de Ignácio de Loyola Brandão, João Antônio, Raduan Nassar e da mais nova de nós, Márcia Denser. Ao Paraná de Domingos Pellegrini Júnior e etc, etc, etc.

Hoje, temos mais escritores por metro quadrado do que livrarias e leitores. São tantos, que está difícil, senão impossível, saber os nomes de cada um. Dentre os que consegui captar no meio da multidão, destaco o amazonense Milton Hatoum, o paranaense Miguel Sanches Neto, o mineiro Carlos Herculano Lopes, o paulista Marçal Aquino, o pernambucano Raimundo Carrero, os baianos Luiz Pimentel, Carlos Ribeiro, Aleilton Fonseca e Aramis Ribeiro Costa, a gaúcha Cíntia Moscovitch, os cariocas Adriana Lisboa, Marcelo Moutinho, Antonio Carlos Tettamanzi e Altamir Tojal.

Feitas essas voltas no tempo, regressemos ao começo desta história:   como se constroem personagens. Para o autor destas linhas, eles vêm do fundo de uma gaveta chamada memória. Aparecem quando menos espero. Rondam as minhas noites, entram nos meus sonhos, vigiam-me as madrugadas. A princípio, são imagens vagas, feições humanas de quem mal me lembro, sombras de um passado que o presente quer resgatar. Convivo com esses seres durante meses, às vezes anos, até que pululem no meu teclado, me façam engatar a primeira frase, e daí em frente vão me impondo o seu próprio destino.

Meu primeiro romance se chama Um cão uivando para a Lua e nasceu do impacto que uma visita a um amigo, internado numa clínica psiquiátrica no Rio de Janeiro, me provocou. Ele estava com a cabeça raspada, vinha sendo tratado a eletro-choques e babava pelos cantos da boca. Fiquei profundamente abalado. Ao voltar para casa, comecei uma história, imaginando-me na pele de um louco que batia papo consigo mesmo. Foi assim que criei um personagem chamado “A” e seu duplo “T”. Não faltou quem os associasse às iniciais do meu nome e sobrenome, a ponto de uma amiga de um amigo, à qual fui apresentado durante um jantar, me dizer na despedida:

– Que bom que você é diferente do que eu pensava?

– E o que você pensava?

– Que você…

– Era louco?

Ela riu:

– Mas não é o que todos que estão lendo o seu livro vão pensar?

O segundo: ao engraxar os sapatos em frente a um café de Lisboa (era o dia 25 de junho de 1965), passei a observar os homens que iam e vinham pela calçada, gordos, lentos, tristes. Achei que eles tinham os pés redondos. Por causa das voltas que davam em torno de si mesmos. Pronto: ali estava o título. Os homens dos pés redondos. Depois, na cidade do Porto, convivi com um homem que andava com uma tesoura no bolso. Ele dizia que iria usá-la para matar o seu chefe, no escritório em que trabalhava. Pronto: ali estava o personagem. Veio a chamar-se Manuel Soares de Jesus. Ou apenas De Jesus.

O terceiro: a história começa com a imagem de um sujeito que um dia voltou de São Paulo para a sua aldeia, no sertão baiano, e se enforcou no armador de uma rede. Fui lá para tentar descobrir como havia sido a vida desse homem. Ninguém quis me contar nada. Achei que tinha perdido a viagem. Até perceber que a negação do fato é que era o fato. Porque o sonho do lugar era o de partir. Aquele que partiu, voltou e se matou, havia matado o sonho do lugar. E assim nasceu um romance chamado Essa Terra, que já está com vinte e uma edições no Brasil, e outras em muitos países, de Cuba a Israel.

Calma! Não se assustem, achando que vou falar de todos. Pinçarei apenas uns casos, digamos, mais curiosos. Como no dia em que me lembrei do primeiro poema de Federico García Lorca que li. Foi em São Paulo, na Biblioteca Mário de Andrade. Era assim: “Cantam os meninos/ na noite quieta/ Arroio claro, fonte serena. / Os meninos: Que tem teu divino/ coração de festa? /Eu: Um dobrar de sinos/ perdido na névoa.

Muitos anos depois, a memória me trouxe isso de volta. Então me vi no meio dos meninos, cantando os hinos da escola rural, e os da igreja, batendo bola na hora do recreio, seguindo os cortejos dos caixõezinhos azuis, nos enterros das crianças. Assim nasceu o Balada da infância perdida, que, ao ser traduzido para o inglês, foi rebatizado com um título cuja sonoridade desce bem nos meus ouvidos: Blues for a lost childhood.  

Uma noite sonhei que havia matado um amigo, que não via há muito tempo. Mal cheguei ao seu apartamento, em Ipanema, ele me mostrou como a sua barriga falava das dores que estava sentindo. A cena era apavorante. Eu sentado e ele de pé, à minha frente, com a sua barriga dizendo, num crescendo: dói, dói, DÓI. Desviando o olhar, vi uma pistola de dois canos numa mesinha ao lado. Peguei a pistola, achando que ela era uma quinquilharia decorativa. Mas tive o impulso de apontá-la para o amigo, apertando o gatilho, achando que, se a arma estivesse carregada, eu poderia matar as suas dores. Para o meu espanto, o tiro saiu e atingiu-lhe o peito. Horrorizei-me ao ver a cara de horror dele, que caía em câmara lenta. Detonei a segunda bala. Ele desabou de vez. Levantei-me, pulando de alegria: “Acertei, acertei! Os dois tiros!” Era uma extraordinária sensação de vitória, para quem nunca tinha pegado numa arma. Tratei de me escafeder. Passei o resto do sonho a fugir. Num táxi. Acordei extenuado. E me perguntando: “Que violência é essa que carrego dentro de mim?” Então me decidi a voltar à psicanálise. E fui bater na porta do doutor Antônio Dutra Júnior. Ele não me aceitou de volta, por razões que não me lembro. Mas me indicou a doutora Diva Cavalcanti. Logo na primeira deitada no seu divã, ela remeteu aquelas balas para a barriga da minha mãe. E assim, enquanto a minha barriga falante contava-lhe outras dores para ela, quatro vezes por semana, meu teclado voltou a me dizer que sim, que eu ainda tinha bala na agulha. Foi assim que nasceu o romance chamado Um táxi para Viena d’Áustria.

Passei uns tempos achando que não tinha mais assunto para escrever. Estava em casa numa manhã de domingo, e chovia muito. Cheguei à janela e senti o cheiro da terra molhada. Me lembrei de Jacques Brel cantando: “Eu te oferecerei, pérolas de chuva, vindas de um país, onde nunca chove. Fui ao computador e escrevi: “Eis-me de regresso a essa terra de filósofos e loucos, a julgar pelo meu pai, que disso tudo tem um pouco”. Era a volta ao romance “Essa Terra”, vinte anos depois. Ao terminar o primeiro capítulo, me enchi de coragem e o levei para a doutora Diva. Na sessão seguinte, ela disse: “Foi a melhor coisa que você já escreveu”. Caramba! Babado forte. Senti-me a levitar, cantando as Bachianas número 5, de Villa-Lobos. Ou, quem sabe: “Introibo ad altare Dei. Ad Deo qui leatificat juventute meam”. Saí da análise, com o consentimento dela, claro. Mas o livro empacou. A duras penas, consegui chegar ao quarto capítulo, onde empaquei de novo. Nisso, fui a Portugal, para participar do júri do Prêmio Camões, que o concedeu, unanimemente, a José Saramago. De lá, segui para Roma, onde acabava de sair uma tradução do “Essa Terra”, aliás, “Questa terra”. Numa palestra na Universidade La Sapiência, falei: “Talvez o que esse nosso velho mundo esteja precisando é de uma boa e velha história bem contada”. O professor Ettore Finazzi-Agró me convidou para almoçar. E como se tivesse ouvido as impressões da doutora Diva Cavalcanti sobre o primeiro capítulo, e soubesse do meu empacamento a seguir, disse-me que louvava e dava fé ao que eu havia dito, pois as vanguardas já haviam dado o que tinham que dar. No meu regresso, abri o computador e bati a primeira frase do quinto capítulo: “Num tempo em que esse mundo velho era povoado por contadores de histórias, um galo cantando fora de hora era o começo de um romance – de amor”. E aí o teclado deslizou pianissimamente, até o ponto final de um livro chamado O cachorro e o lobo.

A seguir, vieram personagens como o meu querido canibal Cunhambebe, o primeiro chefe supremo da Confederação dos Tamoios, que fez a terra tremer de Cabo Frio a São Vicente, e o nobre seqüestrador do Rio de Janeiro, o corsário René Dugway-Trouin, que, a serviço de Luís XIV, o Rei Sol, fez o primeiro seqüestro da cidade, em 1711. Ele chegou aqui com 18 navios, 700 canhões e cerca de 6 mil homens, e tomou o Rio como refém durante 50 dias, enquanto aguardava o pagamento do resgate para liberá-lo a seus habitantes. Foi o episódio mais dramático de toda a era colonial lusitana. Bom, o meu mais recente personagem de romance tem 30 anos de batente. É o Totonhim, o narrador de “Essa Terra” e “O cachorro e o lobo”, que acaba de voltar à cena, em “Pelo fundo da agulha”.

De personagem em personagem, cheguei ao “Minu, o gato azul”, escrito para crianças. Saiu este ano. O livro, belamente ilustrado por um jovem artista chamado Adriano Renzi, foi inspirado no gatinho de estimação lá de casa, que morreu há dias, deixando-nos com um vazio imenso, que literatura alguma é capaz de superar. Por fim, meus personagens são assim: da vida, da história, da loucura e da morte. Será que existem outros?

Se preferirem uma recomendação mais original, fiquem com a de James Joyce:
“Memória, exílio e astúcia”.

Literatura, leitura e história

(Conferência realizada no congresso Saberes / PUC – PR, 2007)

“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. Assim começa o Evangelho Segundo São João. Para nos dizer que o dom da palavra é uma graça divina. Ao dar fala ao homem, Deus o distinguia no reino animal. Afinal, Ele o criara à Sua imageme semelhança. “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito Pai, cheio de graça e de verdade”.

Recorro a este memorável texto bíblico por dois motivos. Primeiro: pela sua beleza literária. Segundo: considerada o livro dos livros – o mais lido de todos os tempos, no mundo ocidental -, a Bíblia é um caso exemplar da relação entre Literatura, leitura e história. A começar pela da criação do mundo, no Primeiro livro de Moisés chamado Gênesis, o mito dos mitos, que verdade científica alguma conseguiria suplantar no imaginário humano. Revisitemos o seu início, ainda que tão-somente pelo prazer de reler o mais admirável de todos os textos:

No princípio criou Deus os céus e a terra.
E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sob a face do abismo; e o espírito de Deus se movia sobre a face das águas.
E disse Deus: Haja luz. E houve luz.
E viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação entre a luz e as trevas.
E Deus chamou à luz Dia; e às trevas chamou Noite. E foi a tarde e a manhã o dia primeiro.
Etc.

Tão conhecida quanto essa história, é a da própria Bíblia: nascida no deserto com Moisés, no século 13 antes de Cristo, ela reúne uma coletânea de livros escritos por diferentes autores ao longo de vários séculos. Os que se relacionam à aliança de Deus com o povo judeu estão no Antigo Testamento. Já o Novo Testamento apresenta os relatos concernentes à aliança de Jesus Cristo com todos os povos. O conjunto dessa obra sagrada tem exercido, infinitamente, uma poderosa influência na literatura. Nem é preciso um grande esforço de memória para lembrar alguns títulos de romances e de volumes de contos de inspiração bíblica. Por exemplo: Esaú e Jacó, de Machado de Assis; Absalom, Absalom e Desça, Moisés, de William Faulkner;  O hóspede de Job, do português José Cardoso Pires; e o recentíssimo Caim, da nossa Márcia Denser, publicado pela editora Record, e que acabo de ler, com um prazer inenarrável.

Esse poder de sedução da Bíblia, para os escritores, se explica. Além de suas revelações, que fundamentam as crenças cristãs, nela encontra-se todos os gêneros literários: o mítico, o trágico, o épico, o lírico, o dramático. E tudo com fabulação, estilo, uso estético da linguagem, no que se inclui a qualidade poética, sem a qual não se chega à literariedade.

Portanto, se no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, o Verbo se fez literatura, já como uma criação do homem. E ele, o bicho-homem, fabulista, fabulador, fabuloso por natureza, da palavra falada chegou à escrita. E ela, a literatura, se desenvolveu com o próprio desenvolvimento da espécie, da caverna à universidade, do papiro ao papel e etc. E ganharia existência concreta, ou seja, corpo, forma, difusão e perenidade, a partir do advento da imprensa, no século 15 depois de Cristo.

Povos primitivos já desenvolviam uma rica produção de lendas, mitos e histórias, por vezes associada à música, à dança e à dramatização, em espetáculos religiosos e profanos. E assim se formou a tradição da literatura oral, que gerou grandes poemas épicos, os textos sacros e as representações dramáticas das civilizações antigas da Europa e da Ásia. Há 3 mil anos a.C, os povos da Suméria, na Mesopotâmia – onde hoje fica o Iraque -, já narravam a Epopéia de Gilgamesh, talvez a primeira história do dilúvio universal, que, com autor e personagens trocados, viriam a aparecer em O primeiro livro de Moisés chamado Gênesis.  

Na Idade Média, baladas, poemas, contos, gestas, adágios e adivinhações da cultura popular passaram à forma escrita, através de mãos eruditas. O avanço seguinte viria com a palavra impressa. E aqui cabe um tributo ao alemão Johannes Gensfleisch Gutenberg, o inventor dos caracteres móveis que dariam origem à tipografia, e daí às artes gráficas, à imprensa, sem as quais a indústria editorial não viria a existir. 

Resultaram desse processo obras como o Mahabharata e o Ramayana, da Índia, a Odisséia e a Ilíada, de Homero, o Edda escandinavo, e a própria Bíblia.

Os colonizadores portugueses viriam a transplantar para o Brasil, com modificações, os elementos das culturas clássica e medieval, que neste lado do Atlântico tiveram a influência das tradições africanas e indígenas. Da Europa, assimilamos o lobisomem e a mula-sem-cabeça, enquanto que personagens como o curupira e o boitatá são indígenas. Já o saci-pererê é uma fusão de figuras da África com as dos nativos.   

No princípio, a poesia tinha um caráter social. Associada aos cantos religiosos e ao entretenimento, servia para animar efemérides, públicas e privadas, incluindo-se nisso as saudações a personalidades, e as loas aos grandes feitos militares, nas guerras de conquistas.  Era usada também para a cura de doenças. Esse uso da poesia chegou até ao sertão (baiano) em que nasci. Ali, sempre que havia alguém doente, ou um bicho – um passarinho, por exemplo -, chamava-se logo uma rezadeira, ou benzedeira, que, pela urgência do chamado, chegava toda esbaforida. Com três galhos de arruda numa das mãos, ela a movimentava na cara do enfermo, fazendo o sinal da cruz, enquanto recitava:

Com dois te botaram
com três eu te tiro 
com perna de grilo
que vem do retiro…
É de metetéia
é de manenanha.
que esse menino
fique bom,
De hoje para amanhã!

Pouco importava se a própria benzedeira não soubesse os significados de “metetéia” e “manenanha”, que sequer chegaram a ser dicionarizadas pelos mestres Aurélio Buarque de Holanda e Antônio Houaiss. O importante era o poder do seu poema – e de sua fé nele, claro, assim como a do doente -, para tirar mau-olhado, o motivo de todas as doenças do mundo, ela acreditava. E o comprovava mostrando os galhos de arruda que murchavam completamente, durante a sua função, por haver captado todo o mal incrustado no corpo adoentado.

Também se recorria às tradições daquele mundo para espantar o medo da noite. Ao pé do fogão, e à luz do seu fogo, enquanto as panelas fumegavam, cantavam-se as histórias que passavam, oralmente, de geração a geração. Refiro-me às da literatura de cordel, assim definida por um de seus autores mais populares, o Rodolfo Coelho Cavalcante:

Cordel quer dizer barbante
Ou senão mesmo cordão,
Mas cordel-literatura
É a real expressão
Como fonte de cultura
Ou melhor poesia pura
Dos poetas do sertão

A expressão cordel vem da forma como os folhetos dessa literatura eram pendurados nas feiras, para serem vendidos. Pelos sertões adentro, o povo os chamava de ABC. Ou rimance – por se tratar de narrativas rimadas.

De origem ibérica, rica em fabulação, a literatura de cordel é até hoje muito popular no Nordeste brasileiro e até mesmo em certos núcleos urbanos do Sudeste, em função dos fluxos migratórios. E produziu clássicos como A história do pavão misterioso, A chegada de Lampião no inferno e Proezas de João Grilo. Este, se tornaria a matriz do grande sucesso de Ariano Suassuna, O auto da Compadecida:

João Grilo foi um cristão
Que nasceu antes do dia
Criou-se sem formosura
Mas tinha sabedoria
E morreu depois das horas
Pelas artes que fazia

O já citado Rodolfo Coelho Cavalcante explica à perfeição o fazer poético cordelista e o seu alcance:

De tudo que acontecia
No país ia escrevendo…
Padre Cícero, Lampião,
Ia o povo todo lendo.
Criou hábito no povo
De ler um folheto novo
Para a notícia ir sabendo.

Ele nos ensina mais:

O chamado trovador
Ou poeta popular
Era semi-analfabeto
Porém sabia rimar,
Seus folhetos escrevia
E os sertanejos os liam
Por ser o seu linguajar.

Não foram poucos os poetas eruditos que buscaram inspiração nessa fonte. Um exemplo disso é o poema Cantadores do Nordeste, de Manuel Bandeira, que está no seu livro Estrela da tarde. E João Cabral de Melo Neto não poucas vezes se utilizou da estrutura, métrica e ritmo do cordel. Basta lembrar o seu famoso auto de Natal Morte e vida Severina:

O meu nome é Severino
Não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
Que é santo de romaria,
Deram então de me chamar
Severino de Maria;
Como há muitos Severinos
Com mães chamadas Maria
Fiquei sendo o da Maria
Do finado Zacarias.

E por aí vai.

E se temos aqui os nossos heróis populares – João Grilo, Lampião, Antônio Conselheiro, Cancão de Fogo, Lucas da Feira – o bandoleiro negro de Feira de Santana, que tinha a fama de roubar dos ricos para dar aos pobres, espécie de versão baiana do Robin Hood -, e etc, pois a galeria desses personagens é imensa, o México tem La Cucaracha, cantada em todo o mundo,e a Argentina o Martim Fierro, que se tornou símbolo da valentia platina, cuja lenda levou Jorge Luis Borges a escrever um conto magistral, chamado O fim, que já li mais de cem vezes, e a ele sempre retorno, com um renovado encanto.

Esse tipo de produção literária já conta com uma vasta bibliografia crítica. No ano 2000, a editora Hedra, de São Paulo, publicou uma simpática coleção dedicada a ela. Para tanto, pediu a 50 estudiosos do Brasil e do exterior para selecionarem 50 poetas populares de destaque e prepararem um estudo introdutório de cada um, assim como uma antologia dos poemas mais representativos. E destes, destaco, para fechar biblicamente este capítulo, um de Rodolfo Coelho Cavalcante, o poeta escolhido por Eno Theodoro Wanke:

Não adianta o orgulho,
O egoísmo, a vaidade,
O dinheiro, a opulência,
O abuso de autoridade.
Morre o bom, morre o ruim,
Tudo na Terra tem fim
É a lei da divindade!

Morre a árvore mais frondosa,
Morre o rio, morre o outeiro,
Morre a mulher que é bonita,
Morre o homem do dinheiro,
Morre quem faz tirania,
Só não morre a poesia
Dada por Deus verdadeiro!

Agora, passemos ao conto. Expressão de mitos humanos universais, suas origens remontam aos causos da cultura oral, envolvendo fatos verídicos ou lendários, reproduzidos com fantasia. Os elementos básicos de seu conteúdo são a imaginação, a fabulação, a lenda e o anedótico. Pela brevidade da narração, ele requer densidade, contenção de linguagem e sagacidade. Credita-se ao Egito a produção dos contos mais antigos do mundo, que foram reunidos numa antologia por Maspéro, no ano de 1889. Autores árabes produziram as histórias de As mil e uma noites, que atravessaram os tempos. Na Idade Média, e adentrando a Renascença, surgiu a linha da sátira e do realismo, de que são exemplos o Decameron, de Boccaccio, os Contos de Canterbury, de Chaucer, seguidos pelos de La Fontaine. Os contos fantásticos apareceram na época do Romantismo francês, com Nodier, e alemão (irmãos Grimm e Hoffman). Em meados do século 19, voltou ao realismo, com Daudet, Guy de Maupassant, Dickens, Mark Twain. Entre os mais memoráveis contistas do mundo ocidental estão Edgar Allan Poe, Alexandre Puchkin, Anton Tchecov, o nosso Machado de Assis. A partir do primeiro pós-guerra, o conto se tornaria uma forte expressão norte-americana, graças às produções de Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, William Faulkner, William Sorayan, Carson McCullers, Truman Capote e etc, etc. Na América hispânica os espantos ficam com Jorge Luis Borges, Júlio Cortazar, Juan Rulfo, Gabriel García Márquez. No Brasil, surgem tantos e tão poderosos contistas que quase que dá para encher uma lista telefônica inteira com os nomes deles. Monteiro Lobato, Mário de Andrade, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, José J. Veiga, Murilo Rubião, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Samuel Rawet, João Antônio, Nélida Piñon, Ignácio de Loyola Brandão, Wander Piroli, Ivan Ângelo, Roberto Drummond, Moacyr Scliar, Domingos Pellegrini Júnior, Sérgio Sant’Anna, Caio Fernando Abreu, João Gilberto Noll. E há aí os novos e novíssimos que dariam outra lista imensa. Sintetizo-a com apenas um nome: Miguel Sanches Neto, o autor do admirável Hóspede secreto.

A crônica.

Há quem assegure, como o gaúcho Luis Peazê, um estudioso e praticante do gênero, que a crônica existe desde o começo do mundo. Se tal afirmação é improvável ou não, importa menos do que sabermos que sua origem é antiqüíssima.

Vem de Cronos, deus da mitologia grega cujo nome significa “o Tempo”.

Daí significar: relato no qual os fatos são narrados em ordem cronológica.

E tornou-se o mais jornalístico dos gêneros literários e o mais literário dos gêneros jornalísticos. Isto em tempos modernos.

Antes, porém, existiram as crônicas pré-bíblicas e alexandrinas. Na Idade Média, era escrita em latim e dizia respeito à historiografia. Teve uma grande importância na era dos Descobrimentos, como registro e informação das novas terras e de sua gente nelas encontradas, o que pode ser comprovado nas cartas de Cristóvão Colombo, Pedro Álvares Cabral e Américo Vespúcio. E nos relatos do alemão Hans Staden, e dos franceses André Thevet e Jean de Lery, os primeiros escritores viajantes a descreverem a geografia física e humana do que hoje corresponde ao estado do Rio de Janeiro, tanto quanto as aventuras e desventuras dos europeus naquelas paragens, no século 16, ou seja, ao tempo dos canibais tupinambás. Tais descrições fizeram a Europa delirar. Como se estivesse lendo os contos mais fantásticos do mundo, desde O livro das maravilhas, de Marco Polo. 

Segundo o já citado Luis Peazê, a crônica passou a ser publicada em jornal a partir do século 18. E foi em Londres, onde dois colegas de faculdade, chamados Steele e Addison, fundaram, no dia 12 de abril de 1709, um periódico chamado The Tatler, que o Peazê traduziu como O Tagarela. O jornal circulava três vezes por semana, às terças, quintas e sábados, e tinha o seguinte perfil editorial: artigos sobre comportamento e entretenimento subordinavam-se à rubrica “Bomboneria do White”. Poesia: “Cafeteria do Will”. Educação: “Gregos”. Notícias domésticas e do estrangeiro: “Cafeteria St. James”. E por aí ia. 

A mais antiga crônica escrita em língua portuguesa data de 1429. Trata-se de um resumo histórico dos reis de Portugal até D. Dinis. E é exatamente nessa língua que iria se expressar um dos maiores cronistas de toda a história literária. Seu nome: Joaquim Maria Machado de Assis. Basta ler dele O nascimento da crônica. Ou ouvir isso em CD, na voz do ator Othon Bastos.

Implantada definitivamente na imprensa carioca a partir do ano de 1850, e já voltada para a descrição maliciosa da vida mundana e os fatos políticos do Rio de Janeiro, a crônica foi praticada no Brasil por verdadeiros mestres, como José de Alencar, Joaquim Manoel de Macedo, França Júnior, Artur Azevedo, Coelho Neto, Júlia Lopes de Almeida, Olavo Bilac e João do Rio. Mas foi Machado de Assis quem lhe deu um perene status literário, pelas suas notas amenas, bem humoradas, com os toques de ironia que lhe eram tão peculiares.

Na segunda metade do século 20, o gênero cresce a aparece com uma força extraordinária, a ponto de parecer uma invenção brasileira. É o tempo de Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Antônio Maria, Carlinhos Oliveira e Carlos Heitor Cony, que se tornaram não só cronistas muito populares, mas também respeitadíssimos nos círculos literários. E tiveram seguidores que não deixaram a peteca cair (muito pelo contrário), a exemplo de Luis Fernando Veríssimo, João Ubaldo Ribeiro, Moacyr Scliar, Ignácio de Loyola Brandão, Zuenir Ventura, Marina Colasanti, Affonso Romano de Sant’Anna, Fausto Wolff, dentre outros, e, por fim, mas não por último, Alcione Araújo, o dramaturgo e romancista que já imprimiu a sua marca de cronista no livro Urgente é a vida.

Próximo capítulo:
Romance.

Eu, romancista, confesso: eis aí uma palavra que desce bem em meus ouvidos. Romance! Porque, antes de mais nada, se entende isto como uma história de amor. Na verdade, na acepção que aqui nos interessa, significa gênero literário em prosa, relativamente longo, caracterizado pela narração de acontecimentos fictícios, mas geralmente verossímeis. É tido como sucedâneo do poema épico. Longa também é a sua história, do romance de cavalaria ao psicológico, passando-se pelo de capa e espada, o folhetim ou de aventuras, o didático, o epistolar, o policial.

 E se o Dom Quixote, de Cervantes, que teve a sua primeira parte publicada há 400 anos, foi o primeiro verdadeiro romance da literatura universal, digamos que o gênero surgiu para desestabilizar as certezas humanas, no entrechoque da fantasia com a realidade, fazendo-nos duvidar das verdades absolutas. Ele, o romance, desenvolveu-se com a revolução industrial e chegou à sua era de ouro no século 19. Casos exemplares dessa era: Dostoiévski, Tolstói, Flaubert, Eça de Queiroz, Machado de Assis. Foi então que outro destes gigantes, o senhor Honoré de Balzac, conceituou o romance à perfeição: “É preciso desfolhar toda a vida social para ser um verdadeiro romancista. Porque o romance é a história secreta das nações” – assim falava quem sabia o que estava fazendo. 

No século 20 – o de Franz Kafka, Marcel Proust, Thomas Mann, Robert Musil, Ítalo Calvino -, caberia ao irlandês James Joyce quebrar a sua estrutura linear, ao enveredar por labirínticas experimentações, com mergulhos nos fluxos e refluxos de consciência, estes também explorados à exaustão por William Faulkner, o fundador de um território mítico que abarcaria as águas do Mississipi, no qual confluiu o rio São Francisco do nosso João Guimarães Rosa. Eles são parentes. E bem próximos.

 E a história do romance continua sendo escrita, a cada dia, pelos romancistas de todo o mundo. Bem recentemente, aqui em Curitiba, ao participar do Paiol literário, com José Castello – li isso no jornal Rascunho -, o poeta Affonso Romano de Sant’Anna disse o seguinte:

“As coisas mais tocantes, as mais corretas, não estão sendo ditas necessariamente por antropólogos, sociólogos e filósofos. Não são eles que estão escrevendo as melhores coisas sobre o Afeganistão, o Iraque, Israel, a Palestina, a questão africana. São os romancistas desses lugares, que de repente começaram a surgir e ser ouvidos. O que prova que os escritores preservam uma certa credibilidade”.      

Bem, mesmo que tudo o que o homem precisava dizer sobre si mesmo, a vida e o mundo já tenha sido escrito, a literatura ainda é um espaço no qual ele sempre se sentirá livre para criar.   

Asas ao Verbo.

Uma Salvador sem farofa e sem dendê

(Conferência proferida na Fundação Casa de Jorge Amado, em 15 de maio de 2003, na abertura do curso A cidade de Salvador na literatura).

Situação geográfica privilegiada. Topografia acidentada. Uma história que começa nos anos 500 e segue pelas ruas – nas ruas que ainda mantêm as marcas da sua origem. 365 igrejas, uma para cada dia do ano. O passado europeu. Sincretismo religioso. O presente africano. Sacra e profana. Festeira o ano inteiro. Popular e erudita. Usos e costumes peculiares. Sete cores em sua cor. E todos os seus caminhos dão no mar.

Foi com imagens assim, tipo exportação, que Salvador se tornou uma das cidades mais sedutoras do planeta.

Sim, não há como negar que ela tem sido uma fonte inesgotável de inspiração para poetas, prosadores, pintores, escultores, dramaturgos, cineastas, compositores. Teve um até que fez uma das músicas mais tocadas e cantadas do país, sem nunca ter posto os pés aqui, ao que dizem. Trata-se do mineiro Ari Barroso, o autor de Na Baixa do Sapateiro. Quem não se lembra?

Na literatura, a sua imagem está indissoluvelmente ligada aos cenários e à galeria de tipos humanos criados por Jorge Amado, que tanto encantaram o mundo, como sabemos todos. Jorge Amado! Aquele que fez do regional, nacional. E do particular, universal. Quem não sabe?

Mas, na contemporaneidade, quais são os seus pintores? E como os novos ficcionistas baianos estão pintando e bordando esta cidade?

Ora, é possível que, quando a maioria deles nasceu, Salvador já não era mais a doce província do tempo dos seus pais, aqueles que andavam de bonde sem maiores atropelos. Quando se deram por gente, perceberam que eram pedestres cheios de temor em meio a “uma realidade de violência ameaçada pelo caos,” para usar uma expressão do nosso Hélio Pólvora sobre o Brasil das últimas décadas. Sua explosão demográfica instaura a instabilidade no percurso de seus habitantes, provoca o redesenhamento da urbe, amplifica o desnivelamento social, cria novas tensões, tudo a se refletir nas cores com que os pintores irão esboçar os seus quadros. Há algo de novo na paisagem. Se a moldura da cidade continua reconhecível, o que está dentro dela terá que ser visto com outros olhos.

Vocês poderão contra-argumentar que este palestrante não mora aqui e portanto não sabe o que está dizendo.

Antes de continuarmos, é bom deixar claro que o exposto acima é o resultado de impressões de leitura das reileituras da cidade através do olhar de seus escritores, na atualidade. E também que não pretendemos estabelecer um confronto entre o que se escreveu no passado, tendo Salvador como cenário, e os textos dos contemporâneos. Não se trata de comparação ou juízo de valor. A literatura que antecede à que iremos destacar tornou-se patrimônio da cidade e do país. A que prossegue, ainda está em processo. Se terá progresso, só o futuro poderá responder.

O presente, porém, indica que as novas pulsações da cidade estão sendo captadas, por exemplo, pela prosa de um autor como Ildásio Tavares. Por uma questão de ajuste ao seu argumento, porém, este palestrante tecerá algumas considerações em torno de um ficcionista mais novo do que Ildásio Tavares e ele próprio, o Aramis Ribeiro Costa, e dos novíssimos Carlos Ribeiro e Jean Wyllys.

Comecemos por Aramis Ribeiro Costa, que descreve à perfeição o que Salvador representa no imaginário do próprio estado da Bahia, ou seja, qual é a sua imagem para consumo interno, em A história de Joselita, a segunda novela do seu livro O fogo dos infernos, publicado em 2002 pela Editora Iluminuras, de São Paulo. É um caso exemplar.

Vejamos:

“Joselita só não era igual às outras meninas da roça porque tinha um sonho: morar na Bahia. A Bahia, para ela, era a cidade grande das compridas avenidas, dos largos e das ladeiras, dos bondes, dos ônibus, dos lotações e dos automóveis, dos elegantes magazines, do Elevador Lacerda, dos cinemas e da Rua Chile. Era a cidade das festas de largo, do Carnaval dos carros alegóricos, dos homens ricos e bonitos que podiam gostar dela. Era a capital. Salvador. Mas que, para Joselita e os da roça, a perdida rocinha entranhada nos matos, perto de Saubara, era a Bahia.”

Esta história, que começa com o sonho de Cinderela de uma pobrezinha tabaroa, termina de forma cruel.

Foram as imagens sedutoras da festeira, consumista, divertida, rica, civilizada Salvador que fizeram a interiorana Joselita sonhar em mudar de vida, desde o dia em que uma boa senhora mostrou uns postais da cidade para a menina franzina vendedora de legumes e verduras. Por um golpe da sorte, aquela santa senhora iria receber uma carta de uma sobrinha que morava na capital, pedindo-lhe uma babá. Pronto, estava selado o destino de Joselita, que iria embarcar na sua “viagem inventada no feliz,” como o menino do conto de João Guimarães Rosa, As margens da alegria. Afinal, ela estava realizando o maior dos seus desejos: trocar a solidão da roça pela animação da cidade grande. O que ela ainda não sabia: que estava trocando um mundo de feições reconhecíveis por um outro, no qual seria apenas mais um rosto na multidão. Na capital, Joselita verá o seu sonho se transformar em pesadelo. Pior: chafurdará nas profundas de um inferno que a levará à loucura. Não lhes contarei o final. É trágico mesmo. E de altíssima voltagem literária.

Já nas primeiras linhas desta novela de Aramis Ribeiro Costa o leitor aqui se reviu, lá na roça onde nasceu. Na verdade, primeiro ouviu ao longe a voz do seu pai, que sempre acordava cantando, no caminho entre o seu quarto e a cozinha, onde começava o seu dia fazendo um café, antes de ir tirar o leite das vacas, no curral bem ao lado da casa. Uma das músicas que ele gostava de cantar começava assim:

“Bahia,
quem pintou tua aquarela,
eu vi farofa amarela,
vatapá e cangerê…”

A novela do Aramis fez também com que este leitor se lembrasse das tantas vezes em que o seu pai lhe contava e recontava a história de uma epopéica viagem à Bahia, para pagar uma promessa ao Senhor do Bonfim: sete léguas a cavalo do povoado do Junco até a sede do município, a cidade de Inhambupe; a longa espera por um transporte motorizado de Inhambupe para Alagoinhas; o trem de Alagoinhas para Salvador, onde quis apenas achar a igreja do Bonfim, entrar nela tirando o chapéu, se ajoelhar, rezar e ir embora. Com a vagareza dos transportes e o tempo perdido nas baldeações, levou sete dias para vir e voltar. Contando o seguinte:

– De sete em sete léguas cheguei lá. E vi que a cidade tem sete léguas de ruas. É tão grande que é como ir daqui a Inhambupe. Lá, é como na guerra, onde filho chora e pai não vê.

O filho dele iria vê-la pela primeira vez aos 15 anos, trazido por um tio. Vieram num trem tão bonito que todos chamavam de Marta Rocha. Saltaram na estação da Calçada, pegaram um ônibus para a praça Cayru, subiram para a Cidade Alta pelo Elevador Lacerda, depois entraram num lotação e saltaram no Farol da Barra, cara a cara com o mar. Imagine o deslumbramento. Era uma tarde de sereias ao sol. O rapazola interiorano já não sabia o que mais o estonteava: se a imensidão das águas com suas ondas de espumas flutuantes, a luminosidade às vezes azulada, às vezes esverdeada, de franzir os olhos, ou a esplêndida visão de uma beldade em trajes sumários. Era como se acabasse de adentrar o paraíso. E lá estava Eva, quase como viera ao mundo. Um pouquinho mais recatada, talvez por temor de um novo castigo de Deus. Ainda assim, aos olhos de um capiau, aquela Eva de maiô era de provocar desmaios.

E a partir de então, como a Joselita da história de Aramis Ribeiro Costa, ele passaria a sonhar em viver na capital. Onde só aos dezenove anos viria a morar. Instalou-se num cubículo da rua João de Deus, a dois ou três passos do Terreiro de Jesus. O prédio tinha uma plaquinha na porta: “Família.” Em frente dele, havia um cabaré com uma vitrola que toda noite tocava a música da Dolores Sierra, a que havia nascido na roça e sonhava em viver na cidade e agora morava em Barcelona, na beira do cais.

Ele também, o rapazola interiorano recém-chegado à capital, foi parar na beira do cais. Mas como repórter de setor do Jornal da Bahia. Quis a sorte que o seu destino fosse diferente do das Joselitas e Dolores Sierras. E chega de reminiscências.

Bahia: olha só como o contista Carlos Ribeiro está pintando a tua aquarela:

“Dez horas da noite. Marcos espera o ônibus no ponto próximo ao Clube do Bahia, na Boca do Rio. Horário ruim aquele para Marcos esperar o ônibus. Você sabe, Salvador não é mais aquela cidadezinha provinciana dos anos 60/70. Somente no último final de semana, nada mais, nada menos que 12 coletivos foram assaltados. Em um deles, o cobrador foi morto com um tiro na cara. Em outro, um tiroteio entre os assaltantes e um policial civil resultou em 7 pessoas feridas, incluindo um bebê e uma anciã que saltou do veículo em movimento, quebrando as duas pernas e sofrendo rachaduras na bacia. Outra mulher, mais gorda, ficou entalada na janela e só pôde ser libertada cinco horas mais tarde, graças à ajuda de um maçarico.

Só rindo, pensa Marcos. O diabo é que, em muitas dessas tragédias cotidianas, há quase sempre uma nota humorística que torna a coisa toda inverossímil: anciãos que encontram forças para saltar de um ônibus em movimento, maridos que fogem às pressas deixando mulheres e filhos para trás, gente correndo para um lado, gente gritando para o outro, uns se espremendo em janelas, outros se esbarrando em cercas, outros ainda metendo os pés em poças de lama. Só rindo.”

Isto é só o começo de um conto intitulado O assalto, esquete noturno de uma Salvador em bad trip, no sentido literal da expressão. Está no livro O visitante noturno, publicado em 2000 pela Empresa Gráfica da Bahia. Já pelo título podemos prever que essa não será uma história de fritar bolinhos. Aqui são os passageiros dos ônibus urbanos, em trânsito ou parados nos pontos, que são fritados. Como um cego no meio do tiroteio, um deles, chamado Marcos, chega a ter vontade de rir, diante da violência banalizada, que o deixa à beira da imbecilização.

Vencedor, em 1988, do concurso de contos da Academia de Letras da Bahia, Carlos Ribeiro é um dos mais talentosos representantes da geração 90, marcadamente de contistas. A maior concentração de nomes dessa geração parece estar em São Paulo. Entre o baiano que escreveu O assalto e o paulista Marçal Aquino, autor do livro Faroestes e do roteiro do filme O invasor, há algo em comum: a visão das suas cidades sem utopias. O personagem de Carlos Ribeiro pensa nos políticos como “um monte de bosta, que não faz nada de concreto para melhorar a vida do povo.” E pensa em si mesmo “como um pária.” E assim marcha a cidade na literatura: dominada pela demagogia e a corrupção, ela vai, cada vez mais, entregando os seus cidadãos à própria sorte. E nisso Salvador não está sozinha, dirão os personagens do Rio, de Recife, de Belo Horizonte etc.

São Salvador da Bahia: se não gostou do duro retrato que Carlos Ribeiro fez de você, aguarde o próximo capítulo. E vá desviando os seus olhos dengosos que aí vem o aflito Jean Wyllys.

Não esperneie, não, nega. O escritor escreve o que vê, o que sente, o que percebe, sabe disso, não sabe?

Entonces, encoste a sua cabecinha no meu ombro que eu vou lhe contar um causo que me contou esse menino de Alagoinhas de nome meio francês e meio inglês ou holandês, sei lá. Jean Wyllys, veja vosmecê. Très chic!

O título do conto dele é: Caça e caçador. É do seu livro Aflitos, um dos vencedores do Prêmio Copene de Cultura e Arte – Literatura, de 2001, e publicado pela Editora Casa de Palavras, da Fundação Casa de Jorge Amado.

Vamos lá:

“As luzes de vapor de sódio e os prédios cinzas da Avenida Sete deslizavam sobre o pára-brisa do carro. Da janela, Miguel observava cada esquina ou poste. Poucas pessoas transitavam e havia alguns miseráveis nas calçadas. Já era a terceira vez que ele passava pelo local, depois de ter contornado o edifício Sulacap e subido pela Carlos Gomes, à procura de alguma companhia. Na altura do Palácio da Aclimação, só havia os travestis – aquelas criaturas vivas, que costumam colorir a noite com sua arte radical. Mas, próximo à Praça da Piedade, apareciam, de vez em quando, alguns garotos de programa – meninos da periferia que, não raro, prostituíam-se por um jantar. “Com um pouco de paciência,” pensava Miguel, “consigo um interessante.”

Depois de mais duas voltas, ele encontrou alguém que correspondia aos seus sonhos. Parou o carro e perguntou: “E aí, tá na batalha?” O garoto – branco e bonito, apesar do vísivil maltrato – consentiu com a cabeça. Miguel abriu a porta do carro e ele entrou. “Ponha o cinto. Como você se chama?” “Gabriel,” respondeu o garoto. “Nós temos nomes de anjos. Você acredita em anjos?” Gabriel contou que fora assim batizado porque sua mãe sonhara com um anjo de asa quebrada, afogando em um mar de sangue. Miguel olhou, por alguns segundos, as águas escuras da Baía de Todos os Santos, vigiadas pelas luzes solitárias das embarcações, e disse “É um sonho triste.”

Quando chegaram em casa, Miguel pediu a Gabriel que se abaixasse, pois não queria chamar a atenção do porteiro. A garagem estava silenciosa. Subiram pelo elevador de serviço. Ao entrar em casa, a primeira coisa que Gabriel fez foi comer um pedaço de bolo que estava sobre a mesa. “Calma, você vai ter tempo para comer o que você quiser. Antes, vamos ao serviço.” Dirigiram-se para o quarto. Gabriel prestava atenção nos móveis, eletrodomésticos, nos quadros… Nunca vira apartamento tão bonito. Miguel ligou o som de cabeceira. A música Menino Deus, de Caetano Veloso, encheu o aposento. Em seguida, começou a se despir. Só depois de tirar toda a roupa, foi que ele percebeu que Gabriel empunhava uma faca de lâmina larga. “Quieto. Não grite. Eu não vou lhe matar. Só quero a sua grana, o relógio e os Cds.,” sussurrou. Miguel, com as mãos para cima, tentava articular algumas palavras enquanto se aproximava do criado-mudo. “Não se meta a besta, desgraçado, senão eu ranco suas tripas fora,” ameaçou. Miguel abaixou-se para abrir a gaveta, no momento em que Gabriel avançou sobre ele com a faca em posição de ataque. Seis estampidos abafados pelo silenciador interrompeu, em frações de segundo, a melodia da canção. Semi-abertos, os olhos de Gabriel refletiram a face pálida de Miguel, ao passo que seu corpo parecia mergulhar num mar de sangue.”

Está contado o conto de Jean Wyllys, um que anda por aí como um repórter da vida, a espreitar as zonas de sombra, onde a solidão faz esquina com a violência, e por onde perambulam peregrinos urbanos de almas aflitas, mendigantes do amor mal soletrado, no lado avesso da cidade que, nos impasses de sua caótica pós-modernidade, já não nos oferece uma aquarela, mas um laboratório de experiências humanas perturbadoras que, pelo visto, estão engendrando uma nova literatura baiana. Que pode ser tão infernalmente cruel e tão assustadoramente violenta quanto a realidade que nos cerca. Mas, com certeza, é de alta qualidade.

Que mediações e processos traduzem experiências de vida em textos literários?

Conferência pronunciada no seminário Eu assino embaixo – biografia, memória e cultura, realizado no Centro Cultural Banco do Brasil
do Rio de Janeiro, em 22 de abril de 2003. Tema: Escutas do Eu e do Outro, Escritas da Vida).

Eis aí uma pergunta para a qual o escriba aqui não tem uma resposta definitiva. E se tivesse apenas 30 segundos para respondê-la, certamente diria: “Não sei.” Mas tive alguns dias e muitas horas para buscar os fios que ligam os autores a seus personagens, o vivido ao narrado, enfim, os substratos autobiográficos que embasam certas obras de ficção, e não só as de minha (modesta, vá lá) autoria, o que imagino seja a expectativa de vocês, uma vez que esta é a tarefa que me cabe, neste seminário. Agora tenho 29 minutos para lhes apresentar o resultado dessa busca.

Comecei pegando um livro cujo título é outra pergunta: “Por que escrevo? Ao abri-lo, dei de cara com umas linhas de um escritor contemporâneo, o paulistano Bernardo Ajzenberg, autor, entre outros, de um romance admirável, o Variações Goldman. “Como a pedra e suas camadas, tudo aquilo que funda o gesto criador é fruto de acumulação” – diz ele. E completa: “Nada surge do nada.” Eis aí, eis aí: nada surge do nada. Elementar, meu caro Watson. Isto vem bem a calhar, pensei eu, já não mais me sentindo no grau zero deste texto.

Naquele mesmo livro – Por que escrevo? -, Glauber Rocha referiu-se ao processo de acumulação da seguinte maneira: “O escritor escreve o que vê, o que lê, o que percebe, o que sofre.” Pelo visto, ele não escrevia tendo apenas uma idéia na cabeça e uma câmara na mão. Estou falando do baiano que fez um filme que é um romance que eu gostaria de ter escrito, o Deus e o diabo na terra do sol, que não deixa de ser um produto de suas errâncias pelos sertões e de suas leituras de Euclides da Cunha, Graciliano Ramos e João Guimarães Rosa, somadas à estética e ética de um John Ford, o clássico dos faroestes, do japonês Akira Kurosawa, do italiano Roberto Rosselini e às narrativas dos cegos cantadores nas feiras do Nordeste. Quer dizer: de tudo que leu, viu, ouviu, percebeu, sentiue sofreu, como homem do sertão antenado com esse mundo de Deus e do diabo.

Portanto: nenhum texto literário surge do nada, mas de uma soma de vivências e leituras. E tudo isso filtrado pela memória e embalado pela dialética do discurso ficcional.

Ao escrever aqui a palavra memória, uma lembrança me acode. A de uma frase de William Faulkner, o Prêmio Nobel de Literatura de 1950, em seu livro Luz de agosto. Esta frase: “É a memória, e não a dor, que faz você se lembrar de centenas de ruas selvagens e ermas.” Lembrança puxa lembrança: uma vez li em algum lugar que Faulkner escreveu o seu monumental O som e a fúria ao se lembrar dos lamacentos fundilhos das calças de uma menina numa árvore, da qual ela podia ver, através de uma janela, onde os funerais da sua avó estavam sendo realizados. O título do romance surgiu de outra lembrança: uma fala de um dos personagens de Shakespeare, o Macbeth, quando este monologa sobre a vida e conclui que ela é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, significando nada. E assim temos um caso exemplar da fusão de memória e leitura, que resultou num dos romances mais criativos e mais fascinantes de todos os tempos, uma saga familiar que começa com um personagem idiota de 33 anos que parou de evoluir mentalmente aos três. É arrebatador. Dou-lhes aqui um pequeno exemplo de como em O Som e a fúria ele atingiu a culminância da arte de escrever, quando dá voz a um personagem suicida chamado Quentin. Enquanto se prepara para cometer o tresloucado gesto, esse seu personagem rememora:

“Quando a sombra do caixilho apareceu nas cortinas era entre sete e oito horas da manhã e então eu já estava no tempo outra vez, ouvindo o relógio. Ele era do meu avô, e quando o meu pai o deu para mim disse: Quentin, eu lhe dou o mausuléu de toda esperança e de todo desejo; é mais do que penosamente possível que você irá usá-lo para adquirir o reducto absurdum de toda experiência humana, mas não satisfará as suas necessidades individuais, como não satisfez as dele ou as de seu pai. Eu o dou a você não para que se lembre do tempo, mas para que possa esquecê-lo por alguns momentos e não gaste todo o seu fôlego tentando conquistá-lo. Porque as batalhas nunca se ganham, ele disse. Nem sequer são travadas. O campo de batalha só revela ao homem a sua própria loucura e desespero, e a vitória não é mais do que uma ilusão de filósofos e loucos.”

Não. Não é a primeira vez que o espírito do finado Faulkner baixa nas teclas do escritor que vos fala. O meu primeiro livro, Um cão uivando para a Lua, tem a seguinte epígrafe: “Entre a dor e o nada, eu escolho a dor.” É a frase final de uma bela e trágica história de amor, o romance Palmeiras Selvagens, e da qual ele iria fazer blague. Assim: “Entre o uísque e nada, eu escolho o uísque.” Bem, o velho Faulkner era tão bom de letras quanto de copo, tanto que, no ano de 1954, ao acordar de ressaca, no quarto de um hotel em São Paulo, onde participava de um congresso de escritores, não fazia a menor idéia em que cidade do planeta se encontrava. Tentando se situar, puxou as cortinas. Ao dar de cara com os arranha-céus paulistanos, exclamou, cheio de horror: “Oh, my God, Chicago again!”

Pronto. No capítulo das leituras, Willliam Faulkner passou pelas mediações e processos que têm permeado as experiências de vida nos textos literários do palestrante aqui, posto que as leituras fazem parte dessas experiências. Elas acabam se tornando uma segunda natureza do escritor. Este aqui, em tudo que escreve, por vezes se sente homenageando todos aqueles que contribuiram para povoar a sua mente com fabulações que deram asas à sua imaginação, a começar pelos narradores anônimos de sua infância que, para espantar o medo da noite, reuniam-se ao pé de um fogão, contando histórias de arrepiar, cujos enredos envolviam almas penadas a arderem no fogo-fátuo, gralhas mal-assombradas, mulas sem-cabeça, lobsomens, zumbis, personagens apavorantes que o levavam a perder o sono. Qualquer ranger de porta, farfalhar de uma árvore ou o pio de uma ave noturna passavam a ser uma assombração.

Mas o mais fantástico foi quando apareceu ali, naquele lugar esquecido nos confins do tempo, no sertão da Bahia, uma professora para dar aulas na Escola Rural. Ela trazia um livrinho chamado Seleta Escolar. Tratava-se de uma pequena antologia de textos de autores como Machado de Assis, Eça de Queirós, José de Alencar, Castro Alves e Gonçalves Dias. Foi como se, antes daquele livrinho, o mundo não existisse para mim. E logo descobri o que queria ser quando crescesse: Castro Alves! Aquele que tinha uma cabeleira à altura de seus poemas e dava muita sorte com as mulheres.

Moça de fino trato, a professora percebeu o meu encanto pelos textos daquele livrinho, que me pôs a ler em voz alta, todo dia. Gaguejando, tropeçando nas palavras, fui aos poucos pegando desenvoltura. E então a professora passou aos exercícios de redação, com temas da nossa realidade cotidiana: a minha casa, a minha escola, as estações do ano (bom, lá só tinha duas: inverno e verão; escrever sobre as outras exigia imaginação. Mais ainda sobre um dia de chuva. Como o lugar era chegado a uma seca, acho que foi esse tema que fez de mim um romancista).

A notícia de que havia um menino da roça que ia bem na escola, a ponto de já estar lendo e escrevendo mais até do que muita gente grande, correu solta pelas baixadas, tabuleiros e taperas. Foi aí que aquele menino acabou se tornando uma espécie de leitor e escriba público.

Tudo começou num dia de feira, quando eu ia chegando ao povoado, vindo da roça em que vivia. E logo à entrada, estava um rapaz à minha espera, num beco, com uma folha de papel e um lápis na mão. Ele me pediu para escrever uma carta para uma moça, da qual estava apaixonado, mas não tinha coragem de lhe dizer isso pessoalmente. E não sabia escrever. Compadecido com a sua confissão e lisonjeado por ter sido o escolhido para uma função de tamanha importância, tentei fazer minha a sua paixão, embora sentindo o peso da responsabilidade. Se não encontrasse palavras convincentes, poderia pôr tudo a perder. O certo é que não foi tão difícil assim passar para o papel os sentimentos de uma outra pessoa. Eu, menino, estava era aprendendo alguma coisa sobre o que um apaixonado sentia. Ele sabia o que queria dizer. Como expressar isso na ponta do lápis era comigo. Na segunda-feira seguinte lá estava a moça, naquele mesmo lugar, para me pedir que lesse para ela a carta que eu mesmo havia escrito e… escrever a resposta!

A partir daí, ia ser assim: o menino passava a ser procurado por todos aqueles que não haviam chegado à palavra escrita, como as mulheres da roça, quando recebiam cartas de seus maridos que tinham ido embora, em busca de trabalho nas terras ricas do cacau, no sul da Bahia. Cheias de saudades, ansiosas por notícias dos seus maridos, aquelas senhoras se penduravam no ombro do menino e derramavam sobre ele uma chuva de lágrimas a cada linha lida e a cada palavra dita em resposta aos seus entes queridos, desaparecidos em terras longínquas. Ler e responder aquelas cartas era de cortar o coração.

Mais triste do que isto era quando o chamavam à casa de alguém que estava morrendo. Nessas horas, ele tinha que ler um livro de rezas diante do moribundo e da platéia que o velava. Prepare-se para o pior: como o doente já estava nas últimas, não ia haver oração que o salvasse. E aí o menino iria viver suas piores noites de terror, achando que a alma penada do falecido viria pegar no seu pé, acusando-o de não ter lido as rezas com a fé necessária para salvá-lo.

Eu iria me lembrar disso no dia em que escrevi num de meus livros: “Não é a fé que remove montanhas, mas o complexo de culpa.”

E aí já está um exemplo de como as experiências de vida permeiam a minha escrita.

Dou-lhes outros.

Um cão uivando para a lua.

Primeiro: devo esse título a um gigante do jazz. De tanto ouví-lo, achei que a sonoridade do trompete de Miles Davis se assemelha a de um cão uivando para a lua, ainda que seja para um luar inexistente. Essa associação de idéias me veio ao visitar um amigo carioca que estava internado num manicômio, onde passava uma temporada no inferno dos eletrochoques. O consumo de drogas o levara a isso. E assim o encontrei: com a cabeça raspada e espumando loucamente. Os calmantes que os médicos lhe davam o deixavam ainda mais excitado. Voltei para casa chocado. E com uma pergunta na cabeça: onde estará a fronteira entre sanidade e loucura? Telefonei para um psicanalista amigo, o doutor Alexandre Kahtalian, contando-lhe o sucedido. Ele conhecia o meu amigo. E me disse que provalmente se tratava de um processo esquizofrênico que as drogas fizeram vir à tona. E que, ao que tudo indicava, aquele meu amigo iria passar o resto da vida entrando e saindo dos surtos. E o pior seria nos momentos, digamos, de normalidade. Nesses, ele iria perceber o quanto estava estigmatizado. Uma vez catalogado como louco, nunca mais iria se livrar do rótulo. O preconceito à sua volta iria fazê-lo sofrer tanto quanto os eletrochoques. Desliguei o telefone com a frase de Faulkner na cabeça: “Entre a dor e o nada, eu escolho a dor.” E fui para o teclado. E bati isto:

Passei o dia todo subindo e descendo escada. Preciso me cansar. Que saco. Não, não sou eu quem está louco. São esses médicos incríveis. Sim, os loucos são eles. Eu simplesmente os odeio. Estou te chateando. Estou te enchendo, não estou? Desculpa, é por causa dos remédios. Acho que já não tenho sangue nenhum nas veias. Tenho drogas.

Segui escrevendo. Como um louco.

Oito meses depois tinha um romance nas mãos.

Um cão uivando para a lua! Se era uma fabulação permeada pela minha visita àquele meu amigo internado, ou pelo trompete de Miles Davis, ou por uma frase de Faulkner, ou pelo leitura de Hospício é Deus, de Maura Lopes Cansado, ou se aquele cão era eu mesmo, pouco importava. Era só um romance, do qual a crítica disse ser de toda uma geração. Mas houve quem achasse que o seu autor devia ser um louco mesmo. Recebi cartas assim: “Se você é como o seu personagem, não queria estar na sua pele.” E: “Você pôs na mão da gente, você ferrou a gente com esse livro doido.” Numa viagem a Curitiba com um colega de trabalho aqui do Rio, ele convidou uma amiga para jantar conosco. Foi uma noite muito agradável. Contamos piadas e demos muitas risadas. Na despedida, porém, ela confessou que teve medo de aceitar o convite para aquele jantar.

– Mas que bom que você é bem diferente do que eu imaginava! – ela disse.

Intrigrado, perguntei-lhe:

– Como você imaginava que eu era?

E ela:

– Doidão! Como no seu livro.

Voltei de lá com dois consolos. O primeiro: aquela moça, lá no distante Paraná, havia me lido. O segundo: e agora ela me achava uma pessoa normal.

Bom, isso se passou há 30 anos. Um cão uivando para a lua acaba de ser relançado pela Editora Record, numa edição comemorativa, que já não espanta ninguém. Loucura mesmo é o que estamos vivendo hoje, não? Mas ainda há quem diga: é tão atual… Felizmente, não há mais quem tema se aproximar do seu autor, achando que ele é um louco furioso.

Depois do primeiro livro vieram os outros, de enfiada. Críticos e leitores iriam ver algo de autobiográfico em todos, ou quase todos, principalmente em Os homens dos pés redondos, Essa terra, Um táxi para Viena d’Áustria e O cachorro e o lobo. É que nesses livros alterno um narrador em primeira pessoa com um outro, onisciente. Isso faz parte de uma estratégia. Escrevendo em primeira pessoa do singular, tento me plasmar no personagem, entrar mais fundo nele. Na terceira, busco um distanciamento crítico do narrado. Como se fosse um dramaturgo que usasse as técnicas de Konstantin Stanislavski e de Bertold Brecht ao mesmo tempo – e me perdoem por tão altas pretensões.

Mas se o narrador em primeira pessoa me deixa mais próximo do personagem, fazendo com que me sinta na sua pele, isto não significa que ele e eu sejamos a mesma pessoa. Entre mim e ele haverá sempre a permeação da ficção. Esse eu poderá conter algo do autor, mas não é necessariamente oautor, ainda que haja identificação entre um e o outro. Quando Gustave Flaubert dizia “Madame Bovary sou eu,” estava falando do quanto ele se identificava com a sua personagem, do quanto ele partilhava os seus sentimentos. E assim foi entendido no seu tempo e na posteridade. Ninguém passou a chamá-lo de Madame Flaubert.

Até aqui falei, em rápidas pinceladas, dos meus processos narrativos. Como seriam os de meus companheiros de geração?

Para começar, nunca lhes perguntei isso. Sei que Ignácio de Loyola Brandão costuma andar com um caderninho no bolso, fazendo anotações que depois usa em seus livros. Por minha própria conta e risco, deduzo que a sua condição de editor da revista Vogue venha lhe servindo de posto de observação sobre a tal sociedade do espetáculo em que vivemos. O seu mais recente romance, O anônimo célebre, aponta nessa direção. O livro tem até ingredientes de auto-ajuda para quem busca desesperadamente a notoriedade. Só que, ao contrário dos autores salvacionistas prêt-à-porter, O anônimo célebre é prêt-à-laisser, ou seja, a ser deixado de lado pela clientela de papagaios de piratas e alpinistas sociais, em razão da sua crítica acerba a esse mundo vidiotizado de sucesso a qualquer preço. Não estou querendo dizer que o Loyola, meu amigo de toda uma vida, tenha fracassado em seu projeto. Muito pelo contrário: o autor de Zero e Não verás país nenhum, só para citar dois de seus títulos mais contundentes, outra vez acertou na mosca. É saudável ver um escritor postar-se na contra-mão das ilusões do seu tempo, como esse camarada chamado Ignácio de Loyola Brandão.

Ele e eu fazemos parte de uma tribo numerosa, de Moacyr Scliar em Porto Alegre a Márcio Souza, em Manaus. E mais, e mais: João Ubaldo Ribeiro, Nélida Piñon, Oswaldo França Júnior, Wander Piroli, Roberto Drummond, Ivan Ângelo, Raduan Nassar, Domingos Pellegrini Jr, Flávio Moreira da Costa, Sérgio Sant’Anna, João Gilberto Noll, etc, etc, etc. Impossível não lembrar aqui do finado João Antônio, nascido nas bandas de Osasco e que fez do Rio de Janeiro o seu campo de batalha, e onde morreu, sozinho, como um cão sem dono. Um homem com uma vivência enorme entre os que chamava de “a patuléia, a ratatuia, os que comiam o pão que o diabo amassou com o rabo.” O seu amor pelos deserdados da sorte era tão grande quanto o seu desprezo pela classe-mérdia, como dizia. Identificava-se até os ossos com Lima Barreto. Aclamado pelo crítico Leo Gilson Ribeiro como “clássico velhaco,” bravejava contra os brilharecos e pós de vaidades de seus pares e desancava os “doutores e sambudos da universidade.” E nos legou dois livros de contos memoráveis: Malagueta, Perus e Bacanaço e Leão de Chácara, frutos do seu corpo-a-corpo com a vida, de suas vivências pela sua galeria de tipos inesquecíveis da patuléia, da ratutaia.

E toda essa geração de João Antônio, que é a do Loyola e a minha, só existe por causa de outras, desde Machado de Assis e Lima Barreto, e que se difurcaram em Guimarães Rosa, Fernando Sabino e Clarice Lispector, nos quais entroncaram Autran Dourado, Antônio Callado, José J. Veiga, Lygia Fagundes Telles, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Carlos Heitor Cony etc, grandes e admiráveis escritores brasileiros.

E agora novos e instigantes ficcionistas pululam na minha estante: Carlos Herculano Lopes, Rubens Figueiredo, Luiz Rufatto, Arnaldo Bloch, Bernardo Carvalho, Raimundo Carrero, Milton Hatoom, o já citado Bernardo Ajzenberg, Godofredo de Oliveira Neto, Adriana Lisboa, Flávio Carneiro, Ruy Tapioca, Marçal Aquino, Tony Bellotto, Antônio Carlos Tettamanzi, Gustavo Bernardo, Mauro Pinheiro, Cyntia Moscovith, Cláudia Lage, Gisela Campos, Carlos Ribeiro, Aleilton Fonseca, isto para citar apenas alguns nomes da safra mais recente que tenho lido, com prazer e entusiasmo.

Nunca dantes se escreveu tanto no Brasil.

Resta-nos esperar a permeação dos textos destes autores com os leitores.

Termino com dois versos de um poeta português chamado Alexandre O’Neill, que também vêm a calhar:

Folha de terra ou papel,

tudo é viver, escrever.

>Eu assino embaixo.