(Conferência proferida na Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro e publicada no jornal Rascunho,
de Curitiba, em julho de 2007).
“Começa-se com um indivíduo e, antes que se dê
conta disso, descobre-se que se criou um tipo; começa-se com um tipo e
descobre-se que não se criou coisa nenhuma. E isto porque somos todos
uns pássaros bizarros, mais estranhos ainda por trás de nossa aparência
do que desejamos que alguém saiba, ou do que nós próprios sabemos.
Quando ouço um homem proclamar-se ‘um tipo mediano, honesto, aberto’,
fico com a certeza de que tem qualquer anormalidade concreta e talvez
terrível, que resolveu esconder – e os seus protestos de que é mediano e
honesto e aberto são a maneira de recordar a si próprio a sua
conveniência”.
Isto é o começo de um conto. Título: O moço rico. Autor:
Scott Fitzgerald. O que temos aí? Um narrador a confabular sobre a sua
insegurança, ao situar-se na linha imaginária entre seres reais
(personagens estranhos, por trás de seus rostos e vozes), e os de papel
(máscaras ou representações dessas mesmas pessoas), que podem nada
significar. Como se temesse ser devorado pela Esfinge que ainda vai
criar, à imagem e semelhança de um amigo de longa data. Não deduzamos
que ele se sente perdido na selva das palavras. Tem uma bala na agulha e
a detonará no momento preciso – passamos a perceber isso quando nos
revela o seu alvo: “Não há tipos, nem generalizações. Há um moço rico e
esta é a história dele…”
Pronto. O personagem já foi enunciado. Mas ainda vai demorar um
pouco para sabermos o seu nome e qual é o seu conflito básico, o que,
afinal, é a motivação de todo conto.
Figura ambígua – passível de ser confundida com o próprio Fitzgerald
-, esse narrador estaria diante do seguinte dilema: como transformar
uma pessoa em personagem, sem fazer dela uma caricatura grotesca? Daí
as suas auto-advertências, que acabam por levá-lo a um intento
ambicioso. Desconstruir as falsas imagens que os pobres têm dos ricos e
estes de si mesmos. “Quando pegamos um livro sobre os ricos, um
instinto qualquer logo nos prepara para a irrealidade. Até os
narradores mais inteligentes e neutros, tornaram o mundo dos ricos tão
irreal quanto o país das fadas”.
Ou seja: até ali, ao escreverem sobre os ricos, todos os escritores
(norte-americanos, bem entendido) teriam obliterado um suporte
essencial à construção de personagens: o da verossimilhança. E esse
“ali” era a década de 1920, quando, na euforia do primeiro pós-guerra,
os Estados Unidos da América se tornaram a nação mais rica do mundo.
Mas temos mais duas possibilidades de interpretação do preâmbulo do conto que ainda se vai contar:
Primeira: uma oficina do contista para si mesmo, enquanto aquece os
dedos e a mente, preparando-se para pôr o seu personagem em ação. (Um
contemporâneo de Fitzgerald, William Faulkner, dizia que, para ele, o
barato de ser escritor era poder criar um animal de duas patas e pô-lo
em movimento).
Segunda: um jogo de cena, no qual, antes de sermos apresentados ao
personagem, ele, o narrador, pede permissão para nos introduzir a um
universo que julga desconhecermos: “Deixem que eu lhes fale dos muitos
ricos. Eles são diferentes de nós – de mim e de vocês. Habituaram-se a
possuir e usufruir desde muito cedo e isso os influencia, tornando-os
brandos onde somos duros, e cínicos onde somos confiantes, num processo
difícil de compreender, a não ser que se tenha nascido rico”.
Atentemos para essa aliança estratégica narrador-leitor. O que se
explica. Durante um bom tempo, Fitzgerald ganhou muito dinheiro
escrevendo contos para revistas de grande circulação na classe-média.
Aqui o vemos a tentar seduzi-la, através do conceito que o seu narrador
faz dos ricos.
“Lá no fundo de seus corações se acham melhores do que nós, porque
tivemos de descobrir sozinhos as compensações e os refúgios da vida.
Mesmo quando penetram profundamente no nosso mundo, ou descem abaixo do
nosso nível, continuam a pensar que são melhores do que nós. São
diferentes”.
E só então, já no final do primeiro capítulo da história que ainda
não começou a contar, ele nomeia o seu personagem, revelando-nos,
finalmente, a saída que encontrou para construí-lo:
“A única maneira que tenho para descrever o jovem Anson Hunter é
abordá-lo como se fosse um estranho e manter teimosamente o meu ponto
de vista. Se por um momento aceitar o dele, estarei perdido – e nada
terei a mostrar a não ser um filme absurdo”.
Resumo da ópera: eis aí um caso exemplar de estratégia narrativa,
para quem se interessa pelo processo criativo dos escritores, a começar
pela angústia da primeira frase – ah, a tela em branco! O que estará a
me dizer? Que estou de pote vazio? Que não tenho mais café no bule?
Decifra-me ou te devoro? Até que numa bela manhã um santo baixe (ou será
uma santa, chamada Inspiração?). Aquela para a qual o próprio
Fitzgerald, durante um período de desoladora baixa criativa, que o
fizera perder a sua esplêndida miragem, exclamava: “Volta, volta, oh,
resplandecente!”
Deixem que eu lhes fale um pouco mais de Fitzgerald, o soberbo
criador de tipos que se tornou o melhor e o pior protagonista de si
mesmo, ora no papel de autor glorioso, ora no de personagem arruinado.
Quando a luz verde que iluminava o palco do seu orgiástico futuro se
apagou, ele desceu às trevas de um inferno íntimo, para declamar, com a
autoridade que o fracasso lhe conferia: “Na noite escura da alma são
sempre três horas da manhã”. Enquanto isso, um outro personagem subia
ao paraíso. Chamava Ernest Hemingway. Lá de cima, com a autoridade do
sucesso, contemplou a decadência daquele que havia sido um dos seus
pares mais constantes. E sentenciou: “Seu talento era tão espontâneo
como o desenho que o pó faz nas asas de uma borboleta. Houve uma época
em que ele tinha tanta consciência disso quanto a borboleta, não ligando
para o fato de que seu talento podia apagar-se ou desaparecer de todo.
Mais tarde começou a preocupar-se com as asas feridas e sua estrutura;
aprendeu a refletir, mas já não conseguia voar porque o amor ao vôo o
abandonara. Restava-lhe apenas a lembrança dos dias em que voar fora um
ato natural”.
A ironia dessa história: ele também, o personagem chamado Ernest
Hemingway, acabou vendo a sua musa inspiradora bater asas do seu ninho,
qual uma borboleta. E todos sabemos no que isso deu. Hemingway pegou
uma espingarda, não para sair à caça da inspiração, na esperança de
poder trazê-la de volta. Simplesmente enfiou o cano da arma na boca. E
apertou o gatilho. Portanto, há que se ter cuidado com qualquer
atormentado pela página em branco. E ainda mais se ele estiver com a
barba por fazer.
Mas se ela, a santa Inspiração, voltar, qual uma Fênix, o escritor
poderá reerguer-se, sentindo-se capaz de pegar de novo o fio da meada, e
enfiá-lo pelo fundo da agulha. E daí, entre a euforia e a ansiedade,
tentará de novo costurar um personagem, que com sorte adquirirá pernas
para andar por conta própria, movido pela dialética do discurso
ficcional. Se ele, o personagem, chegar a tanto, tudo que o autor tem de
fazer é não atrapalhá-lo, pondo pedras no seu caminho.
Epílogo do resumo: o personagem chamado Anson Hunter, The rich boy, deu
a Francis Scott Key Fitzgerald um conto memorável, até hoje incluído
nas antologias de suas melhores histórias curtas, ou, se preferem, short stories.
Uma delas, organizada, traduzida e prefaciada por Ruy Castro, foi
publicada no Brasil recentemente, pela Companhia das Letras. O menino rico (na
tradução do Ruy) está na página 126. E este “menino rico” é apenas um
entre os muitos tipos fascinantes criados por Fitzgerald. O mais
inesquecível deles é Jay Gatsby, o protagonista de O grande Gatsby, que
já teve três adaptações cinematográficas. Na virada dos mil e
novecentos para os dois mil, fizeram uma eleição no mundo de língua
inglesa, para a escolha dos melhores romances do século 20. O grande Gatsby foi o segundo mais votado, ficando abaixo apenas do Ulysses, de
James Joyce, consensualmente tido e havido como a obra mais inovadora
de todos os tempos. Era agora que o velho Scott poderia morrer dando
umas boas risadas.
Laureado autor da Era do Jazz, que lhe deu fama, grana, e lhe
ensinou a conjugar o verbo dissipar em todos os tempos e modos, no eixo
Nova York – Paris – Riviera francesa (cenário de seu melancolicamente
belo Suave é a noite),Fitzgerald morreu cedo, aos 44 anos, esquecido em Hollywood, que detestava (trabalhou em roteiros como o de E o vento levou, imagine!),
ali tendo de dar duro para pagar as contas do hospício onde sua
mulher, Zelda, estava internada. Deixou um romance inacabado, O último magnata, que
foi levado às telas, com Robert De Niro no papel principal, numa
atuação contida, densa, que certamente aplaudiria, sentindo-se um pouco
compensado pelos massacres hollywoodianos às suas histórias, como no
filme A última vez que vi Paris, adaptado de Babilônia revisitada –
que também está na antologia organizada por Ruy Castro -,um
contosensível, pungente, comovedor, de trágica beleza, que o
artificialismo de Hollywood deturpou a ponto de torná-lo
irreconhecível.
Scott Fitzgerald não era brilhante apenas na construção de cenários,
tipos, estratégias narrativas, ritmo e cadência, enfim, na arte e
beleza do seu texto, da sua linguagem e do seu estilo, que cativam logo
de cara: “Jim Powell era um boa-vida. Por mais que eu deseje
convertê-lo num personagem sedutor, sinto que seria falta de escrúpulo
de minha parte enganar o leitor quanto a esse ponto. Era um boa-vida
até os ossos, um boa-vida indiscutível, noventa e nove e três quartos
por cento boa-vida…” – e por aí ele foi, sedutoramente. Também era
capaz de, numa única frase, por vezes aparentemente banal, tocar no
ponto mais vulnerável de uma heroína. Um exemplo: “Ela era ainda uma
bela mulher de trinta anos”. Outro: “Ela falava com a voz cheia de
dinheiro”. Precisa dizer mais?
*
Mas sim. De onde vem esse ser chamado de a ou de o personagem?
Se ao abrirmos ao acaso qualquer dicionário da língua portuguesa, e
formos à letra P atrás dela ou dele, encontraremos, em primeiro lugar,
duas outras letras: F e S, de feminino e singular. A seguir, saberemos
que a palavra deriva do francês personne (pessoa, indivíduo) acrescida do sufixo age, que, sabemos todos, é masculino.Até aí morreu Neves, uma, ou um, personagem popular.
Na sua primeira acepção, personagem significa “pessoa notável,
eminente, importante; personalidade”. E também “pessoa”, sem qualquer
qualificativo, quer dizer, alguém igual a mim e à maioria dos mortais.
Depois vêm as outras definições: “Papel representado por um ator ou
atriz, a partir de figura humana fictícia criada por um autor.
Representação teatral de pessoas tiradas da história ou da imaginação.
Imagem com que uma pessoa se apresenta em público. Personagem literário
em que um autor se encarna etc, etc. Vendo que todas as acepções, de
todos os dicionários, dão mais ou menos no mesmo, busquei Persona. Abri
um, e nada. Recorri à Grande Enciclopédia Larousse e a
“Persona” também não estava lá. Mas alguém sempre me socorre no mundo
das palavras. E desta vez tinha de ser ele, o meu querido e finado
amigo Antônio Houaiss. Eis aí: Persona/ persõna/ [lat.], s.f
(sXX). 1. PSIC – Na teoria de C.G. Jung, personalidade que o indivíduo
apresenta aos outros como real, mas que, na verdade, é uma variante às
vezes muito diferente da verdadeira.
O item número 2 é rebarbativo: “Personagem literário” etc. O
terceiro também repete muito do que foi dito sobre “Personagem”. No
final, volta a referir-se à teoria psicanalítica de Carl Gustav Jung (1875-1961, psiquiatra suíço), o vocábulo foi usado originalmente do alemão, emprestado do latim. E só.
Somados todos os verbetes, o reducionismo da teoria de Jung deixa a
impressão de que ele choveu no molhado. Mas é preciso levar em conta –
digo-me -, que um dicionário geral da língua não tem o objetivo de
contribuir para a resolução de dúvidas muito especializadas.
Agora vem a pergunta: por que masculinizei a palavra (o personagem),
se ela é feminina? Na verdade, faço tal uso quando o dito cujo é
masculino. Ou, vai ver, é porque, primeiro, ele era o herói. Na antiga
Grécia era épico. Um arquétipo, um modelo, como Ulisses e Aquiles. Ou
trágico como Édipo Rei. Esse herói clássico estava acima dos homens
comuns, por ser nobre de sangue azul, mas sujeito às vicissitudes
humanas, das quais o calcanhar de Aquiles serve de exemplo. Os épicos
geraram o romance. Os trágicos, o teatro.
A partir do Renascimento, entra em cena o herói moderno, no papel do
homem-comum, cuja nobreza está no seu caráter, nas suas ações, na sua
própria condição. No entanto, o que vai se consagrar na modernidade é a
figura do anti-herói, que é patético. Leiamos a sinopse do primeiro
deles, que se celebrizou como o verdadeiro fundador da literatura
moderna:
Um fidalgo provinciano, que passava o tempo todo a ler romances de
cavalaria, acabou por se identificar com os heróis de suas histórias.
Um dia, vestiu uma velha armadura, armou-se de espada e lança, e partiu
para uma louca aventura. Ao encontrar um grupo de almocreves, parou
para conversar com eles. E tentou persuadi-los de que ali pelos
arredores havia uma camponesa chamada Dulcinéia, que era a mulher mais
bonita do mundo e a senhora dos seus sonhos. Os almocreves deram-lhe
uma surra e o levaram de volta para casa, onde o padre do lugar,
ajudado por um barbeiro, queimou solenemente todos os seus livros. Sua
loucura, porém, era incurável. Ele voltou a montar em seu cavalo, o
Rocinante, e partiu de novo para as suas proezas, desta vez na
companhia de um fiel escudeiro, chamado Sancho Pança, que tudo faria
para remediar as conseqüências dos desatinos que a desvairada
imaginação do amo acarretavam. Vencido em combate, foi forçado, por
juramento, a abandonar a sua aventura. Foi então que ele descobriu a
fatuidade da sua quimera e morreu, deixando a Sancho Pança a realidade
de uma existência desprovida de heroísmo e fantasia.
A primeira parte de Dom Quixote foi publicada em 1605. A
segunda, em 1615. E com ele, Cervantes pôs em cheque todas as ilusões e
princípios estéticos da literatura anterior à sua. O tempo agora era
outro. A Espanha deixara de ser um conquistador do mundo para tornar-se
o país da burocracia. Todo o seu heroísmo degradava-se.
Dom Miguel de Cervantes Saavedra fez mais: expandiu as fronteiras do
romance, tornando-o um espaço entre a ficção e a biografia, e um
território entre o real e a imaginação, sendo tudo isso ao mesmo tempo e
nada disso, levando o leitor ao terreno da dúvida. O engenhoso fidalgo da Mancha pôs
o mais patético dos empedernidos a rir-se. E a partir dele o romance
passou a ser um desestabilizador das certezas humanas. Não menos
importante: Cervantes inaugurou a figura triangular
(herói-mediador-objeto do desejo), e com isso compôs a estrutura
profunda do romance ocidental.
O gênero iria crescer na Inglaterra do século 18, com a revolução
industrial, quando o campo marcha para a cidade e Londres se torna a
maior capital do mundo, enche-se de bordéis, cria o cartão de ponto e o
comportamento padronizado. (Logo, logo, Charles Dickens nos dará conta
disso).
É no século 19 que o romance chega ao seu apogeu, pelo conjunto da
obra de um elenco de gigantes. É o tempo de Tolstoi e Dostoievski, Eça
de Queirós e Machado de Assis, Gustave (Madame Bovary sou eu)Flaubert,
Sthendal e Balzac, o que dizia: “É preciso desfolhar toda a vida
social para ser um verdadeiro romancista. Porque o romance é a história
secreta das nações”.
No século vinte, um irlandês pede a palavra. Ora muito bem, estava
tudo muito bom, mas era hora de dar uma sacolejada nessas histórias com
começo, meio e fim. Afinal, a mente humana não funciona de forma tão
linear, mas por fluxos de consciência. O mundo já estava em plena era da
psicanálise, que tanto se valeu da literatura. Pois agora a literatura
iria se valer da psicanálise. Ao tempo cronológico interpõe-se o
psicológico e os monólogos interiores. E esse tempo não era mais o do
grego Odysseus, o homérico Ulisses, rei de Ítaca, e sim o de um outro
Ulisses, representado pelo anônimo corretor Leopold Bloom, que não
tinha nenhuma Tróia para conquistar, epicamente, montado num cavalo de
pau. A aventura desse outro Ulisses resumia-se a gastar as solas dos
sapatos, perambulando pela cidade de Dublin, por todo o dia 16 de junho
de 1904, cruzando pelo caminho com a mulher, Molly, e um jovem chamado
Stephen Dedalus.
Paródia da Odisséia, o Ulisses de Joyce quebra a
estrutura do romance tradicional, e, ao combinar características de
lenda, reportagem, farsa, drama, sinfonia, tratado escolástico,
referências simbólicas emprestadas da mitologia, da história e da
literatura, faz da experimentação de linguagem, invenção de palavras e
inovações estilísticas a sua grande novidade. Foi um escândalo. Pelo
menos no Reino Unido e nos Estados Unidos, que o proibiram, por
considerá-lo obsceno. Aí começou a guerra sem lança, armadura e cavalo
de pau de James Joyce para conseguir publicá-lo nos países que falavam
a sua língua, mas não queria rezar pelo seu catecismo, vanguardista
demais. Nessa sua odisséia, de nada adiantaria ele gritar para os
censores: “Ulisses sou eu!”, pois o tempo dos heróicos gregos já havia
passado e ele agora era apenas um transeunte em Paris, dependendo de
favores de alguns de seus pares que combatiam à sombra na livraria de
Sylvia Beach – uma americana na Rive Gauche -, e em cafés como o Deux
Magots e o Closerie des Lilás, de onde, no entanto, despachavam
manifestos pela liberação do Ulisses.
(Parêntesis para uma lembrança: uma vez o escritor Antônio Callado –
aquele lorde que tanta falta me faz -, disse o seguinte: “A cultura do
século vinte tem as marcas de três nomes: Marx, Freud e James Joyce.
Ninguém precisa ter lido Marx para ser marxista, Freud, para ser
freudiano e Joyce, para ser joyciano. Porque as contribuições deles
estão impregnadas no ar que respiramos”. Bem, Karl Marx entrou aí
porque estávamos no tempo das utopias. Quem sabe hoje teríamos de
trocá-lo por Bill Gates, Freud, por um autor qualquer de auto-ajuda, e
Joyce por Dan Brown?).
O século vinte foi também o de Marcel Proust, Virgínia Woolf – que a
crítica situa entre Joyce e Proust -, Franz Kafka, Thomas Mann, Ítalo
Calvino. E da tropa de choque norte-americana, comandada por William
Faulkner, John Dos Passos, Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway, este,
imbatível na arte de construir diálogos.
No Brasil, os modernistas de 22 propugnavam por um rompimento com a
norma lusitana, e que viéssemos a escrever de acordo com a nossa fala,
levando em conta as suas incorreções. O ícone desse ideário foi um
herói sem nenhum caráter, o Macunaíma, de Mário de Andrade.
Mas foram os romancistas de 30 – Rachel de Queiroz, Jorge Amado,
Graciliano Ramos e José Lins do Rego, que o realizaram, com muito poder
de fogo. Hoje, ainda são bem nítidos os traços mais fortes dessa
geração. Os de Rachel: o depoimento vigoroso e solidário, contra um
quadro social deplorável. Injustiças, fome, miséria. Jorge Amado: sua
extraordinária capacidade de criar personagens, de contar histórias; a
linguagem desabusada; o lirismo; a simpatia pelos pobres em geral, as
prostitutas, vagabundos, e pelo mundo afro-baiano, em contraposição aos
mandões, déspotas etc. Zé Lins: a fabulação. Graciliano: além de todas
as preocupações comuns aos demais, quanto ao quadro social, ele deixou
a sua marca de estilista admirável. E dizia que tinha dois trabalhos.
Primeiro, o de escrever cada palavra, frase, parágrafo, com um rigor
que chegava a ser obsessivo. Depois, o de reescrever tudo, para
abrasileirar o seu texto. (Isto porque, no seu livro de estréia, Caetés, não conseguira evitar a influência de Eça de Queirós).
E se o Nordeste tinha isso tudo, o Sul teve Érico Veríssimo (que
dispensa apresentação), e Dionélio Machado, o autor de um clássico, Os ratos. Era
o centauro dos pampas. Quanto ao Rio, já havia tido Machado de Assis e
Lima Barreto, que dobraram de um século para outro e iriam atravessar
os tempos. Precisava mais?
Vale lembrar a sintonia do nosso ciclo de 30 com o dos Estados
Unidos. Sem dúvida alguma, há similitudes – pelas denúncias que
apresentam -, entre Vidas secas e Vinhas da ira, de John Steinbeck. Eskine Caldwell, o de Estrada do tabaco, foi outro autor norte-americano bem próximo dos nordestinos.
Então veio o segundo pós-guerra. A Itália ressurge das cinzas com o
neo-realismo. Destaques: Elio Vitorini, Vasco Pratolini, Césare Pavese.
Da literatura deles, nasce um cinema que arrebata o mundo, pela sua
contundência e humanidade. Quem viu Ladrões de bicicleta, já associou as idéias. E que dizer de Roma, cidade aberta, de
Rosselini? Este influenciou até o nosso Glauber Rocha. O romancista
atrás da câmara: Frederico Fellini. O poeta: Pasolini. Portugal se
deixa influenciar pelo neo-realismo italiano, com rescaldos dos
romances brasileiros de 30, sobretudo em Alves Redol, o de Barranco de cegos, e nos primeiros momentos de José Cardoso Pires, por quem este leitor aqui sempre teve uma infinita admiração.
França: existencialismo. Sartre, Simone, Camus. À mesa, com seu
trompete sobre ela, Boris Vian, um músico da noite, compositor e
escritor, amigo de monsieur Jean-Paul e madame Beauvoir. Morreu aos 38
anos, deixando uma obra-prima: o romance A espuma dos dias, detoques surrealistas. O surrealismo, claro, faz parte dessa história, com Breton e Aragon. Na contra-cena, o nouveau roman, propondo
uma estética do distanciamento, o que significava trocar o enredo e a
psicologia dos personagens pelas descrições minuciosas de ambientes.
Seu principal teórico foi o romancista Alain Robbe-Grillet, que ainda
deve ser lembrado pelo roteiro de O ano passado em Marienbad, filme
dirigido por Alain Resnais. Tendo um pé nesse movimento e outro fora
dele, Marguerite Duras, com Boris Vian e Albert Camus (que na verdade
era argelino) vieram a salvar o romance francês da inanição, naquele
período.
Inglaterra: tempo de Young angry men. O mais “zangado” deles se
chamava Colin Wilson, autor de um sucesso entre os jovens, chamado The outsider. Desse movimento saiu um grande dramaturgo: John Osborne. Ele estourou com uma peça, que virou filme: Look back in anger. Literalmente, Olhe para trás com rancor. Mas quem ficou acima de todos foi lady Doris Lessing, a autora de A erva canta, O carnê dourado e tantos outros romances magníficos.
Estados Unidos: o maior romance de guerra (em volume e repercussão) é algo joyciano e se chama Os nus e os mortos. Autor:
Norman Mailer. Ele tinha 25 anos então e já estreou como um
peso-pesado das letras norte-americanas. Tornou-se prolífico. Sua obra é
vastíssima. Escreveu – e ainda escreve, mesmo passado dos 80 – sobre
quase tudo. Publicou livros sobre Marilyn Monroe, Cassius Clay, as
convenções republicanas e democratas, o Vietnã, de cartas ao presidente
(que era o Kennedy, para o qual fazia até uma defesa de Fidel Castro),
sobre Jesus Cristo (um ótimo romance, por sinal, chamado O filho do homem).
Brigou muito pelos direitos civis. Virou uma figura pública, no melhor
sentido: aquele que intervém em praticamente todas as questões do seu
tempo. É dele este petardo: “Para os Estados Unidos da América, a paz é
apenas um intervalo entre duas guerras”. O horror, o horror, diria Marlon Brando, repetindo, em Apocalypse Now, o final de Joseph Conrad em O coração nas trevas, que Francis Ford Coppola transpôs para a guerra no Comboja.
Além de Os nus e os mortos, de Norman Mailer, um outro romance de guerra causou estrondo. O Catch 22, de Joseph Heller, que os da minha idade, se não o leram, deve tê-lo visto no cinema, com o título de Ardil 22.
Essa geração norte-americana é tão poderosa, literariamente falando,
quanto a anterior. Recordemos alguns nomes: Truman Capote, Gore Vidal,
Carson Mc Cullers, William Styron – lembram de A escolha de Sofia? – James Baldwin.
América hispânica: ninguém escrevia ao coronel, mas o coronel escreveu Cem anos de solidão. E a Colômbia, o Chile, o Peru, o Paraguay, o Uruguay, a Argentina, o México, Cuba, enfim, la pátria grande
sonhada por José Marti entrou no mapa do mundo, no qual García
Márquez, Borges, Cortázar, Ernesto Sábado, Vargas Llhosa, Juan Rulfo,
Juan Carlos Onetti, Cabrera Infante e Isabel Allende se tornaram nomes
familiares. Era o boom latino-americano. E nós aqui só tínhamos Jorge
Amado para ombrear com esse batalhão, lá fora.
No Brasil: conheci rios, rios largos e profundos. E minha alma ficou
profunda como os rios. O mais caudaloso desses rios se chama João
Guimarães Rosa, tão grande que nasce em Codisburgo, Minas Gerais, e
desagua no Mississipi, onde William Faulkner fundou um território
mítico e nele inscrito a sua legenda. Os dois eram primos. E
aparentados de James Joyce, mas, em relação a este, tinham a vantagem
das vastidões continentais, dos espantos de um continente que, se já
não era mais o Novo Mundo, mundo ainda novo era.
– Nonada. Tudo o que o senhor ouviu não foi tiro de homem, não, Deus esteja.
Eis aí como Guimarães Rosa criava um personagem. Pondo-o a falar com
ele. E, a partir da primeira frase, contar-lhe toda a história. Foi
assim com o Grande sertão: veredas. Um monumento.
E que mistérios tem Clarice?
Os dos rios que correm para dentro de si mesmos.
E era nesses rios que ela mergulhava, até às profundezas de outras
audazes mergulhadoras, chamadas Virginia Woolf e Katherine Mansfield.
Mas cá para nós: Clarice Lispector fez mal às moças. Refiro-me às
que se deixaram levar pelas aparências de suas águas, achando que eram
só um novo estilo de correnteza. Tirando isso de letra: caíram na
armadilha da imitação da sua forma (talvez por culpa da Clarice mesmo.
Depois de escrever A imitação da rosa, ela bem que podia ter feito um post-scriptum, advertindo
que, ao se imitar uma flor, o máximo que se consegue é uma natureza
morta). Porque chega a parecer que é fácil imitá-la, em suas inovações
formais. O mesmo não se pode dizer quanto aos seus mistérios. Resumamos
isso para conteúdo.
Quando Clarice chegou, cá já estava Lygia Fagundes Telles,
confortavelmente assentada no seu trono de rainha paulistana das
letras. Autora de um best-seller, o romance As meninas, é no conto, porém, que ela se torna ainda mais admirável, como podemos conferir em seus livros Antes do baile verde e A estrutura da bolha do sabão, entre
outros. Empatados em idade, ou um aninho há mais para lá, três ou
cinco para cá, estão no centro da sua geração os seguintes barões
assinalados: Fernando Sabino, Autran Dourado, José J. Veiga, Antônio
Callado, José Cândido de Carvalho, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan,
Murilo Rubião, Carlos Heitor Cony, os cirurgiões plásticos que fizeram
as costuras finais nas extirpações, iniciadas pelo Modernismo de 22, às
adiposidades da última flor do Lácio, ou seja, os barroquismos, a
verborragia e o empolamento lingüístico, que herdamos dos colonizadores
lusitanos.
Minha geração encontrou a estrada asfaltada. Da Manaus de Márcio
(Galvez Imperador do Acre) Souza, à Porto Alegre de Moacyr Scliar e, um
pouquinho depois, João Gilberto Noll. E lá vamos nós à Bahia de João
Ubaldo Ribeiro, Marcos Santarrita e Sônia Coutinho. Às Minas Gerais de
Oswaldo França Júnior, Ivan Ângelo, Wander Pirolli, Roberto Drummond e
Luiz Vilela. Ao Rio de Nélida Piñon, Sérgio Sant’Anna e do
gaúcho-carioca Flávio Moreira da Costa. À São Paulo de Ignácio de Loyola
Brandão, João Antônio, Raduan Nassar e da mais nova de nós, Márcia
Denser. Ao Paraná de Domingos Pellegrini Júnior e etc, etc, etc.
Hoje, temos mais escritores por metro quadrado do que livrarias e
leitores. São tantos, que está difícil, senão impossível, saber os
nomes de cada um. Dentre os que consegui captar no meio da multidão,
destaco o amazonense Milton Hatoum, o paranaense Miguel Sanches Neto, o
mineiro Carlos Herculano Lopes, o paulista Marçal Aquino, o
pernambucano Raimundo Carrero, os baianos Luiz Pimentel, Carlos
Ribeiro, Aleilton Fonseca e Aramis Ribeiro Costa, a gaúcha Cíntia
Moscovitch, os cariocas Adriana Lisboa, Marcelo Moutinho, Antonio
Carlos Tettamanzi e Altamir Tojal.
Feitas essas voltas no tempo, regressemos ao começo desta
história: como se constroem personagens. Para o autor destas linhas,
eles vêm do fundo de uma gaveta chamada memória. Aparecem
quando menos espero. Rondam as minhas noites, entram nos meus sonhos,
vigiam-me as madrugadas. A princípio, são imagens vagas, feições
humanas de quem mal me lembro, sombras de um passado que o presente
quer resgatar. Convivo com esses seres durante meses, às vezes anos,
até que pululem no meu teclado, me façam engatar a primeira frase, e
daí em frente vão me impondo o seu próprio destino.
Meu primeiro romance se chama Um cão uivando para a Lua e
nasceu do impacto que uma visita a um amigo, internado numa clínica
psiquiátrica no Rio de Janeiro, me provocou. Ele estava com a cabeça
raspada, vinha sendo tratado a eletro-choques e babava pelos cantos da
boca. Fiquei profundamente abalado. Ao voltar para casa, comecei uma
história, imaginando-me na pele de um louco que batia papo consigo
mesmo. Foi assim que criei um personagem chamado “A” e seu duplo “T”.
Não faltou quem os associasse às iniciais do meu nome e sobrenome, a
ponto de uma amiga de um amigo, à qual fui apresentado durante um
jantar, me dizer na despedida:
– Que bom que você é diferente do que eu pensava?
– E o que você pensava?
– Que você…
– Era louco?
Ela riu:
– Mas não é o que todos que estão lendo o seu livro vão pensar?
O segundo: ao engraxar os sapatos em frente a um café de Lisboa (era
o dia 25 de junho de 1965), passei a observar os homens que iam e
vinham pela calçada, gordos, lentos, tristes. Achei que eles tinham os
pés redondos. Por causa das voltas que davam em torno de si mesmos.
Pronto: ali estava o título. Os homens dos pés redondos. Depois,
na cidade do Porto, convivi com um homem que andava com uma tesoura no
bolso. Ele dizia que iria usá-la para matar o seu chefe, no escritório
em que trabalhava. Pronto: ali estava o personagem. Veio a chamar-se
Manuel Soares de Jesus. Ou apenas De Jesus.
O terceiro: a história começa com a imagem de um sujeito que um dia
voltou de São Paulo para a sua aldeia, no sertão baiano, e se enforcou
no armador de uma rede. Fui lá para tentar descobrir como havia sido a
vida desse homem. Ninguém quis me contar nada. Achei que tinha perdido a
viagem. Até perceber que a negação do fato é que era o fato. Porque o
sonho do lugar era o de partir. Aquele que partiu, voltou e se matou,
havia matado o sonho do lugar. E assim nasceu um romance chamado Essa Terra, que já está com vinte e uma edições no Brasil, e outras em muitos países, de Cuba a Israel.
Calma! Não se assustem, achando que vou falar de todos. Pinçarei
apenas uns casos, digamos, mais curiosos. Como no dia em que me lembrei
do primeiro poema de Federico García Lorca que li. Foi em São Paulo,
na Biblioteca Mário de Andrade. Era assim: “Cantam os meninos/ na noite
quieta/ Arroio claro, fonte serena. / Os meninos: Que tem teu divino/
coração de festa? /Eu: Um dobrar de sinos/ perdido na névoa.
Muitos anos depois, a memória me trouxe isso de volta. Então me vi
no meio dos meninos, cantando os hinos da escola rural, e os da igreja,
batendo bola na hora do recreio, seguindo os cortejos dos caixõezinhos
azuis, nos enterros das crianças. Assim nasceu o Balada da infância perdida, que, ao ser traduzido para o inglês, foi rebatizado com um título cuja sonoridade desce bem nos meus ouvidos: Blues for a lost childhood.
Uma noite sonhei que havia matado um amigo, que não via há muito
tempo. Mal cheguei ao seu apartamento, em Ipanema, ele me mostrou como a
sua barriga falava das dores que estava sentindo. A cena era
apavorante. Eu sentado e ele de pé, à minha frente, com a sua barriga
dizendo, num crescendo: dói, dói, DÓI. Desviando o olhar, vi uma
pistola de dois canos numa mesinha ao lado. Peguei a pistola, achando
que ela era uma quinquilharia decorativa. Mas tive o impulso de
apontá-la para o amigo, apertando o gatilho, achando que, se a arma
estivesse carregada, eu poderia matar as suas dores. Para o meu espanto,
o tiro saiu e atingiu-lhe o peito. Horrorizei-me ao ver a cara de
horror dele, que caía em câmara lenta. Detonei a segunda bala. Ele
desabou de vez. Levantei-me, pulando de alegria: “Acertei, acertei! Os
dois tiros!” Era uma extraordinária sensação de vitória, para quem
nunca tinha pegado numa arma. Tratei de me escafeder. Passei o resto do
sonho a fugir. Num táxi. Acordei extenuado. E me perguntando: “Que
violência é essa que carrego dentro de mim?” Então me decidi a voltar à
psicanálise. E fui bater na porta do doutor Antônio Dutra Júnior. Ele
não me aceitou de volta, por razões que não me lembro. Mas me indicou a
doutora Diva Cavalcanti. Logo na primeira deitada no seu divã, ela
remeteu aquelas balas para a barriga da minha mãe. E assim, enquanto a
minha barriga falante contava-lhe outras dores para ela, quatro vezes
por semana, meu teclado voltou a me dizer que sim, que eu ainda tinha
bala na agulha. Foi assim que nasceu o romance chamado Um táxi para Viena d’Áustria.
Passei uns tempos achando que não tinha mais assunto para escrever.
Estava em casa numa manhã de domingo, e chovia muito. Cheguei à janela e
senti o cheiro da terra molhada. Me lembrei de Jacques Brel cantando:
“Eu te oferecerei, pérolas de chuva, vindas de um país, onde nunca
chove. Fui ao computador e escrevi: “Eis-me de regresso a essa terra de
filósofos e loucos, a julgar pelo meu pai, que disso tudo tem um
pouco”. Era a volta ao romance “Essa Terra”, vinte anos depois. Ao
terminar o primeiro capítulo, me enchi de coragem e o levei para a
doutora Diva. Na sessão seguinte, ela disse: “Foi a melhor coisa que
você já escreveu”. Caramba! Babado forte. Senti-me a levitar, cantando
as Bachianas número 5, de Villa-Lobos. Ou, quem sabe: “Introibo ad
altare Dei. Ad Deo qui leatificat juventute meam”. Saí da análise, com o
consentimento dela, claro. Mas o livro empacou. A duras penas,
consegui chegar ao quarto capítulo, onde empaquei de novo. Nisso, fui a
Portugal, para participar do júri do Prêmio Camões, que o concedeu,
unanimemente, a José Saramago. De lá, segui para Roma, onde acabava de
sair uma tradução do “Essa Terra”, aliás, “Questa terra”. Numa palestra
na Universidade La Sapiência, falei: “Talvez o que esse nosso velho
mundo esteja precisando é de uma boa e velha história bem contada”. O
professor Ettore Finazzi-Agró me convidou para almoçar. E como se
tivesse ouvido as impressões da doutora Diva Cavalcanti sobre o
primeiro capítulo, e soubesse do meu empacamento a seguir, disse-me que
louvava e dava fé ao que eu havia dito, pois as vanguardas já haviam
dado o que tinham que dar. No meu regresso, abri o computador e bati a
primeira frase do quinto capítulo: “Num tempo em que esse mundo velho
era povoado por contadores de histórias, um galo cantando fora de hora
era o começo de um romance – de amor”. E aí o teclado deslizou
pianissimamente, até o ponto final de um livro chamado O cachorro e o lobo.
A seguir, vieram personagens como o meu querido canibal Cunhambebe, o
primeiro chefe supremo da Confederação dos Tamoios, que fez a terra
tremer de Cabo Frio a São Vicente, e o nobre seqüestrador do Rio de
Janeiro, o corsário René Dugway-Trouin, que, a serviço de Luís XIV, o
Rei Sol, fez o primeiro seqüestro da cidade, em 1711. Ele chegou aqui
com 18 navios, 700 canhões e cerca de 6 mil homens, e tomou o Rio como
refém durante 50 dias, enquanto aguardava o pagamento do resgate para
liberá-lo a seus habitantes. Foi o episódio mais dramático de toda a
era colonial lusitana. Bom, o meu mais recente personagem de romance
tem 30 anos de batente. É o Totonhim, o narrador de “Essa Terra” e “O
cachorro e o lobo”, que acaba de voltar à cena, em “Pelo fundo da
agulha”.
De personagem em personagem, cheguei ao “Minu, o gato azul”, escrito
para crianças. Saiu este ano. O livro, belamente ilustrado por um
jovem artista chamado Adriano Renzi, foi inspirado no gatinho de
estimação lá de casa, que morreu há dias, deixando-nos com um vazio
imenso, que literatura alguma é capaz de superar. Por fim, meus
personagens são assim: da vida, da história, da loucura e da morte.
Será que existem outros?
Se preferirem uma recomendação mais original, fiquem com a de James Joyce:
“Memória, exílio e astúcia”.