Nísia Vilaça
(“Paradoxos do pós-moderno – sujeito e ficção”, Editora UFRJ, 1986.)
O Barroco se explicita na “viagem” temporal construída no romance Um Táxi para Viena d’Áustria, de Antônio Torres. Um êxtase estático.
Tempos e lugares os mais díspares percorrem, afetam a personagem presa a um táxi em um engarrafamento, após cometer um crime aleatório: efeito de nenhuma causa. A personagem principal, Watson Rosavelte Campos, é um potiguar que trabalhava no Rio como publicitário até ser demitido. Entre um pileque e outro revê o Cabral, antigo amigo, em entrevista na tevê. Resolve visitá-lo, encontra-o deprimido, decadente, e mata-o num ímpeto. A história vem narrada em flashback delirante, enquanto Watson, refugiando-se num táxi parado, faz velozes viagens no imaginário espaço / temporal.
Ney Reis comenta no Caderno Idéias, do Jornal do Brasil, por ocasião do lançamento do livro: “É difícil não embarcar nesse pileque estilístico pelo imaginário do Rio classe média rumo a Viena”.
Gilles Deleuze, trabalhando a questão temporal, nos dá pistas para a leitura do trajeto de Antônio Torres neste seu último livro:
Velocidade não significa chegar primeiro a uma meta: às vezes, por ir com muita velocidade, se chega com atraso. Tampouco significa mudar; às vezes, por ir com muita velocidade, alguém se mantém constante e invariável. Velocidade é como um táxi: linha de espera, linha de fuga, engarrafamento de calçada, sinais verde e vermelho, ligeira paranóia, complicação com a polícia.
A velocidade a que se refere Deleuze parece presidir a estruturação
do romance de Antônio Torres, onde o narrador nos introduz no
burburinho do universo desencantado de uma Ipanema engarrafada, através
de imagens fraturadas do cotidiano. A técnica é cinematográfica,
jornalística, publicitária. Com takes rápidos, manchetes
engraçadas e vivas, percorremos velozmente cenas, surpreendemos tipos
das mais variadas classes, raças e sexos. Da turma do morro querendo
descer às senhoras de fino trato, que aproveitam o trânsito parado para
se ajeitarem no espelhinho do carro. O narrador se coloca
simultaneamente de fora dos acontecimentos descritos e vivamente
interessado, enquanto descreve e comenta o desenrolar do tumulto criado
pelo acidente com m caminhão de Cola-Cola. Seu interesse fica nítido
no emprego da função apelativa da linguagem: dialoga com várias das
personagens. Ao motorista do caminhão, que adivinha drogado ou de porre,
adverte:
– Tu pensas que foi muita sorte sair com vida deste acidente? Pois
pensavas, burro e azarado, é o que tu és. Sorte mesmo seria teres
partido desta pra outra melhor, levando junto sua congênita pobreza.
À técnica de radialista se misturam outros recursos para narrar o espetáculo. “O pau vai comer solto, amigo ouvinte a cobra vai fumar. Prepara o seu coração para muita emoção”.
Pequena quadrinha para narrar uma batalha de garrafas, intertextualidades literárias e musicais se misturam a ditados populares na composição do tumulto. Delineia-se então a personagem principal: um indivíduo descendo apressado pelas escadas do edifício número 3 da Rua Visconde de Pirajá. O narrador, que se opõe na posição de um motorista de táxi, observa as atitudes suspeitas e se pergunta sobre sua identidade. Maluco, paranóico, quarentão inofensivo ou culpado de algum crime? Depois desta primeira postura, numa visão de fora, o narrador-motorista de táxi passa a entabular com o suspeito uma imaginária conversa e aproxima-se mais da personagem. Quando o “campeão de salto aos degraus”, ou seja, o suspeito, entra no táxi do narrador-motorista há, então, uma mudança de ponto de vista narrativo. A perspectiva de fora é substituída por uma corrente de consciência que viaja desabalada pela imaginação, memória e desejos da personagem. Cala-se o narrador-motorista. Cessa a distância da visão de fora, expediente usado para criar o suspense policial. A passagem de uma visão a outra se dá em breve trecho através de discurso indireto livre, onde a ambigüidade do sujeito da fala reproduzida aponta para a cumplicidade entre o narrador e a personagem e indicia a substituição de um pelo outro ou a identificação dos dois.
Volta a recostar-se no banco do táxi, sente-se cansado e com sono. Hum, uma cama agora, hein, amigão? Dormir, dormir, dormir e acordar a milhares de quilômetros daqui.
O romance põe em cena uma geração que nos anos 60, ao tornar-se adulta, encontrou todos os deuses mortos, todas as guerras terminadas e toda a fé do homem abalada. É a literatura sem literatice. Fica mesmo explicitada a questão da escritura e as circunstâncias do mundo contemporâneo, distintas daquelas que presidiram a criação de um Machado, de um Joyce, de um Faulkner, de um Dostoievsky. “Como escrever sem mesa, cadeira, papel, casa, dinheiro, comida, emprego?” O jeito é caminhar no ritmo dos fragmentos, do rebaixamento do estilo, acompanhado de personagens sem nenhuma grandeza. Fala prosaica, fala em que registros múltiplos reproduzem no nível do significante o engarrafamento narrado. Viena d’Áustria é um ponto de fuga que não chega a ser trilhado. É a música de Mozart Missa em dó maior tocada no rádio do táxi que o leva à catedral em Viena d’Áustria. Trajetória kitsch. Sonhos, alucinações, misturam-se no táxi imóvel com cheiro de pólvora e combustível. “É como estar engarrafado no maior túnel do mundo, entre um tiroteio e um incêndio”.
Entre as altas velocidades do delírio, as pequenas memórias de um passado, ou na evocação das figuras paterna e materna, e do Cabralzinho, o amigo que será morto, o livro caminha em ritmo de surpresa. A mesma surpresa que tem a personagem ao descobrir-se assassino. O aleatório criando excessos e não economia de meios, como em João Gilberto Noll. O aleatório cria o crime perfeito no ritmo da modernidade, como comenta o narrador: “velocidade e cinismo, uma coceirinha no dedo. E pimba, esporro e êxtase”. A personagem Veltinho acaba por matar o amigo a partir de uma troca de canal fortuita, quando sintonizava na TV Educativa uma entrevista com outro amigo que não vê há 20 anos. A inconsciência do crime é sublinhada no livro pelo fato de o narrador, ao contar o momento decisivo, trocar a primeira pessoa pela terceira. “Watson Rosavelte Campos, filho da mãe honesta e pai corrupto, assassino em potencial, embora não saiba disso, chega finalmente ao prédio da sua vítima.
A estruturação do livro em fragmento impede que se reconstrua uma razão social (desemprego), uma crise existencial (suspeita de decadência) ou razões psicológicas (identificações com o pai). Não há preocupação com o desenvolvimento linear, mas com o caminho que “se faz ao andar”, como lembra o narrador na trilha de Antonio Machado. E Deleuze lembra: “O que interessa em um caminho, o que interessa em uma linha nunca é o princípio nem o fim, mas sempre o meio”.
O livro se inicia com o caos do engarrafamento e caminha nômade em direção a um ponto de fuga: Viena d’Áustria. O táxi não chega porque não parte e o narrador, ao final, caminha para ver o pôr-do-sol à beira-mar, bem devagar, enquanto espera que venha uma nuvem e o leve para um lugar tão longe que nem Deus sabe onde fica.
Em A Balada da Velha Infância Perdida, do mesmo autor, a personagem também tem vôos e sonhos movida pela embriaguez, mas a narrativa ainda possui uma linearidade na recuperação do passado de uma vida entre Natal, São Paulo e Rio, com outro viés de personalização própria aos livros de memória. Tal não sucede em Um Táxi para Viena d’Áustria. O narrador, em várias ocasiões, repudia a memória.
Pensar faz mal à saúde. Bom mesmo seria ter um dispositivo automático na cabeça. Pintou um pensamento indesejado? O dispositivo disparava e a cabeça passava a emitir uma música incidental sem referência, sem memória, sem lembrar nada.
Mais que sucessão de tempos, oposição de tempos e lugares como em A Balada da Velha Infância Perdida, temos superposição, acavalamentos. Técnica do pick-up, como o tartamundeio, de que fala Deleuze, opondo este procedimento ao Cut-up de Burroughs. Não há corte, mas multiplicações crescentes, idéias desterritorializadas. “Multiplicar os lados, acabar com todo tipo de círculos a favor dos polígonos”.
Torres reinventa a escritura e a libera da função-autor, cujos inconvenientes seriam: constituir um ponto de partida ou de origem, formar um sujeito de enunciação de que dependam todos os enunciados produzidos, fazer-se reconhecer e identificar numa ordem de significações dominantes e de poderes estabelecidos. Imprime ao discurso um uso rizomático que procede por interesses, cruzamentos de linhas, pontos de encontro no meio. Conversas e não colóquios ou debates. Afasta-se do modelo narcísico com seus estados de ânimo para se inventarem em dobras e devires barrocos.
Sem que o narrador saia do espaço do táxi são inúmeras as linhas de fuga criadas no romance. Surgem devires que se sobrepõem à partida do Rio ou à chegada a Viena. A respeito deste thriller de Antônio Torres não se poderia comentar: “Elementar, meu caro Watson”.