O Estado de São Paulo, 9 de dezembro de 1984
Cremilda Medina

Qual escritor – ainda mais se vier dos confins da terra brasileira – que não se emocionaria ao ver um livro seu, em francês, com destaque numa boa livraria de paris? Antônio Torres, que começou a publicar nos anos 70 e ficou mais conhecido depois do sucesso de “Essa Terra”, passou agora por essa experiência quando compareceu ao lançamento do mesmo livro (Cette Terre) na França. Já se vai acostumando às edições estrangeiras: a Editorial Sudamérica lançou Un perro aullándole a la luna, “Essa Terra” está também traduzido para o inglês e seus contos figuram em antologias no Canadá, México, Polônia e Argentina.
Não que se embriague com a expansão além da fronteira brasileira. Ele, como a generalidade dos autores nacionais, sabe que este é o autêntico espaço de difusão para a literatura brasileira. Mas seu lado ingênuo (adolescente, por que não?) sente um certo frisson diante de um vitrina parisiense, mesmo que a voz do Brasil se dilua no meio de um mar de outras vozes internacionais. Talvez porque o menino Antônio não esqueça nunca que saiu da terra, da enxada, no interior mais remoto da Bahia, e conseguiu chegar, quase por milagre de sobrevivência, ao domínio da máquina de escrever.
Junco, Bahia, 1953. Antônio Torres, filho de agricultores assolados pelas intermitentes secas do Nordeste, teve a grande chance de aprender a ler e escrever com a professorinha abnegada que por lá peregrinou. Eram 11 filhos e Antônio devorou as seletas emprestadas pela professora, adquiriu o dom mágico de saber ler e a comunidade o consagrou: foi uma criança muito especial que percebeu o significado e o serviço a que se presta a escrita e a alfabetização. Era requisitado para ler e escrever cartas, único vínculo de tanta gente que saiu das agruras do sertão para nunca mais voltar. Viúvas de maridos vivos ou namoradas que perdiam seus companheiros, obrigados a partir. Era ele quem escrevia as declarações de amor e de dor. Segunda-feira, chegava o correio no lombo do burro e, com ele, a esperança de vida que fatalmente teria de passar pelos olhos abertos, atentos, de Antônio. Nos outros dias da semana, nas horas de descanso do campo, era os ouvidos do menino que se perfilavam para captar os romances, as estórias de pavão misterioso da fabulação popular.
Os auditórios de Paris, por ocasião do lançamento de Cette Terre, deliraram quando o escritor brasileiro falou dessas raízes. Nada de realismo fantástico, mas sim fantástica realidade. Disse mais para europeus estupefatos: desde sempre valorizou a palavra como serviço muito importante. Na hora em que morria alguém no Junco, chamavam-no para ler o missal. O compromisso com a escrita pesa sobre sua cabeça até hoje, mas foi só em 1975, em um debate público, que se conscientizou: é um escritor fatalmente engajado com a palavra escrita. Tudo o resto veio por acréscimo: conseguiu ir estudar no ginásio em Alagoinhas, descobriu as bibliotecas e suas almas – Tolstói, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Monteiro Lobato e tudo que caísse na rede. Trabalhava numa sorveteria e, sempre que dava, corria para o cinema, com programa duplo, os filmes mexicanos da Pelmex, as chanchadas brasileiras, os musicais de Hollywood; vieram também James Dean e Elvis Presley…
Já em Alagoinhas, menino metido, escrevia para o jornal local. Quase foi expulso do ginásio, porque tratou da escola sob o titulo – “A Casa Grande de Cunha”. Foi difícil tentar convencer Cunha, o dono da escola, que esse titulo não tinha nenhuma intenção… O jornal do ginásio também lhe serviu de prática na profissão que logo se impôs. Paralelamente, lia muito poesia. Como bom baiano, não fugia ao império de Castro Alves, mas também se deliciava com Gonçalves Dias e Augusto dos Anjos. Até aí, pura vivência de um mundo interiorano. Com o serviço militar, porém, deslocou-se para Salvador, a primeira grande capital em sua vida.
Jogou alto. Sempre. Um borracheiro de Alagoinhas, que veio a Salvador pelo trem Marta Rocha (não havia asfalto), o apresentou ao editor-chefe do Jornal da Bahia. Quase morreu de emoção, as pernas tremendo. Pois ficou no jornal e caiu na realidade imediatamente. Mandaram-no para o cais do porto fazer matéria, não viu nada acontecendo e morreu de desgosto quando, no outro dia, os jornais de Salvador falavam de contrabando naquele mesmo cais em que não descobrira notícia. Essa dura experiência jornalística só é compatível a outra, no mundo da intelectualidade, quando, no aniversário do patrão, as pessoas só comentavam Proust. Ele, homem da roça, guardou um trauma que o empurrou a vida toda à procura de uma permanente atualização nas leituras.
O jornalismo, tirou de letra. A literatura, descascou-a e descasca-a até hoje com empenho e paixão. De Salvador para São Paulo, para trabalhar na Última Hora, muitos quilômetros rodados. A reportagem de rua e a linguagem dos paulistas, de início, o assustaram, não entendia bem o que escreviam, mas prestou muita atenção e se desempenhou. Saiu da era da reportagem de bonde para a frota de jipe. O que sempre se ressaltava era o pulso verbal desse baiano treinado em cartas, missais, pavões misteriosos, poemas, crônicas, reportagens e outros desafios do cotidiano. Por isso, não foi difícil ele, da enxada em Junco nos anos 40, passar para a publicidade, em São Paulo, nos anos 60. Em 1965, já então um redator muito bem pago com perigo de se escravizar para sempre à publicidade, fugiu. Foi para Portugal conhecer outros mundos, provas de outra aventura. Desempregado, sem eira nem beira, um anjo bom veio em socorro, o recolheu à sua casa e alimentou-o da mais pura literatura.
Antônio Torres deve ao poeta português Alexandre O’Neill não um mecenato, porque o poeta é pobre em toda parte, mas uma amizade e uma bagagem de leitura. Nos quatro meses em que ficou desempregado foi plantado às margens de Guimarães Rosa, entre outros pelas mãos de O’Neill. Por incrível que pareça, o poeta português o levou para Mário de Andrade, João Cabral de Melo Neto, entre muitos autores de todas as latitudes. Enquanto seus companheiros de ofício ou afinidades procuravam os Estados Unidos para se aperfeiçoarem, Torres se achou em Portugal. Se achou e achou seu texto. Mais uma vez O’Neill teve um papel fundamental. Dizia ele, vocês, brasileiros, sofrem de um complexo de inferioridade cultural. Então ele percebeu e agarrou seu texto, um texto mergulhado no Brasil, sem traumas de Proust na consciência.
Deve também ao romance de 30 – Jorge Amado, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz –, de quem é eterno aprendiz, a inspiração ficcional, Transpira muito até dar forma ao texto. Terminar um romance representa muita morte. Persegue, no fundo, a auto-superação: só se dá por atacado se uma pagina o surpreende, se sente uma nova dicção. O primeiro livro – “Um Cão Uivando para a Lua” (1972) – marchou em compasso de espera muito tempo. Não achava a primeira frase, para ele essencial. Dois anos sem encontrá-la. Um dia, numa clínica psiquiátrica do Rio de Janeiro, diante do amigo alienado, ficou sob o impacto da cena Só se acalmou quando jogou no papel um conto em que uma pessoa, alucinada, fala consigo mesma. Daí parar o romance, se passaram oito meses, Mas Torres adverte: por trás desses oito meses, o período mais curto em que escreveu um livro, estavam 30 anos de vida.
O segundo livro – “Os homens de Pés Redondos” – nasceu ainda quando vivia em Portugal. Sentado na Praça de Londres, no primeiro dia de Lisboa, viu a gente que passava, sentiu como que os pés redondos, cansados de tanto rodar. Ao escrever seus primeiros romances, nos anos 70, sentia-se assim de pés redondos, a literatura saindo como quem arranca uma espinha da garganta. Para uma geração de direta convivência com o Cinema Novo com o Teatro de Arena e com a Oficina de São Paulo, cm a descoberta de Oduvaldo Vianna Filho (Vianninha) e com ele, o conhecimento do homem brasileiro, a construção de personagem, foi como que uma compulsão expressar algumas das estórias que se acumulavam no baú. O romance é o espaço preferido, justamente porque é uma estória cheia de estórias, uma base de conflito e tensão. Nunca abandonou o mundo de Junco, a infância cheia de narrativas, os casos da cultura oral. À medida em que entrou nas vísceras da cidade grande, pressentiu que este é um mundo sem fábulas. As fábulas vivem com seu pai, seu avô. Ele, no entanto, assumiu as conseqüências urbanas. O conflito básico, em ternos estéticos – também um grande desafio -, é plasmar a fabulação tradicional com a narrativa urbana, a toada com o rock’d roll.
Malcolm Silverman, estudioso norte-americano, ao analisar a ficção moderna brasileira (em livro editado pela Ed. Civilização Brasileira), cita essa variação de Torres a partir mesmo dos dois primeiros romances que seriam urbanos, e o terceiro (e mais bem-sucedido_, que seria rural: “As revoltantes realidades contidas nas limitações geográficas de Essa Terra variam somente em contexto, se comparadas às de Os homens dos pés redondos e Um Cão Uivando para Lua. O pandemônio urbano, embora menos de molde a produzir um trauma psicológico imediato (como uma seca ou uma enchente), submete a resistência humana a uma prova igualmente dura”. Silverman que estuda, neste trabalho, até o quarto romance (“Cartas ao Bispo”), concluiu que “Antônio Torres emprega a figura onipresente de Gil como uma espécie de trampolim para o tema esterno das vicissitudes da vida, e também como um espelho passivo das iniqüidades sociais (por exemplo, a pobreza endêmica nordestina)”. O que quer dizer, no fundo, é que Antônio Torres, não importa onde se localiza geograficamente – se no campo ou na cidade -, está do lado dessas vicissitudes. “A linguagem reforça esta temática, sendo espontânea, despretensiosa e repleta de imagens populares,” O Crítico norte-americano arrisca uma certa fórmula, percebida no quarto livro, que seria uma mistura da tese neonaturalista com a introspecção modernista: “O autor demonstra senso de objetividade na escolha dos seus temas e um calculado refinamento de linguagem”.
Foi exatamente essa linguagem de transfiguração da realidade sofrida do sertão ou da metrópole que levou os franceses a saudades Gette Terre como “um testemunho e porta-voz de uma população que se esforça obstinadamente por sobreviver em meio ao barulho e à fúria de uma terra e, transe” e, por outro lado, um testemunho traçado pelas mãos de “um poeta e pintor”. Torres, modestamente, se alia aos ficcionistas brasileiros e aponta para o esforço dos anos 70: beber das águas do mais modernos escritores, Machado de Assis, percorrer a ética e a estética do romance dos anos 30, entrar no grande rio de unidade nacional, Guimarães Rosa, prestar atenção a duas diferentes contribuições – Antônio Callado ( em “Quarup”) e Clarice Lispector – e dar as mãos a todos os da ativa (presentes neta série), cada um com seu sotaque, e solidificar a identidade nacional, unindo os séculos que convivem neste território, sem esquecer a grande modernidade literária do continente e do mundo.
Um novo romance sairá, se tudo der certo, em 84. O estímulo de Paris valeu. Há um ano e meio não daí das 30 páginas iniciais, vai trabalhando no pão nosso de cada dia (a publicidade) e acredita que agora o livro deslanche. A cada novo parto as exigências de auto-superação são maiores. “Essa Terra” ficou marcado tanto no âmbito do público (grande audiência em São Paulo, Nordeste, da Bahia para cima) quanto na sua esfera emocional. Confessa que o sente como mais abrangente. Talvez o que lhe deu maior resposta como escrita a serviço do outro. Os olhos se enternecem ao lembrar que foi chamado para ir a São Paulo, convidado por baianos anônimos do ABC, seus conterrâneos de Junco, que queriam abraçar esse escritor da terra.