Gazeta Mercantil – sexta-feira 26, 27 e 28 de Setembro de 1997
Klaus Kleber
A excursão de Antônio Torres pela sua herança genética, em “O Cachorro e o Lobo”, tem muito a ver com o DNA de todos nós. Não deve estar muito longe o dia em que o censo demográfico mostrará que a maioria dos brasileiros não só vive nos grandes centros urbanos do País, mas nasceu ali mesmo ou por perto. Será a culminância da grande fusão em processo no País, da gente que inchou as grandes cidades com as populações urbanas algumas décadas mais antigas, migrantes também do País e do exterior.Depois de ler Torres, o que se estranha é por que as fontes que abastecem o vasto reservatório nacional de mão-de-obra, tão fortes no imaginário popular, tenham deixado de ser matéria romanesca, desde que partiu para o São Paulo o primeiro pau de arara.
Esse mundo praticamente abandonado, e que antes pertencia a Graciliano Ramos, foi redescoberto por Antonio Torres com “Essa Terra”, de 1976, seu grande marco literário ate agora, traduzido em cinco línguas. “O Cachorro e o Lobo” é, de certa forma, como diz o próprio autor, uma continuação do livro anterior. O velho Junco, com suas estranhas mortes e ressurreições no tempo, continua lá, tem algum jeito de Macondo, mas pode ser também uma espécie de Condado de Yakanapatawpha. A estranha modernidade que o avanço da civilização industrial produziu no Sul dos Estados Unidos tem visível paralelo com o que acontece nas pequenas cidades do Nordeste ou naquele naco que Minas agregou ao Polígono das Secas. Novelas de televisão transmitidas por antenas parabólicas, aquele girassol cibernético na paisagem ao lado do mamoeiro, 40 Km de estrada asfaltada que ligam a cidade a uma rodovia federal, sandália de plástico substituindo as de couro – tudo, de repente, junge ainda mais o interior da Bahia, como o da Paraíba, à periferia de São Paulo.
O dia-a-dia da cidadezinha é o personagem central de “O Cachorro e o Lobo”, embora a princípio pareça que tudo se sobrepunha uma tentativa de diálogo entre as duas espécies de canídeos, que se conhecem profundamente e profundamente se estranham. O narrador, Totonhim, retorna à sua mitológica terra para o aniversário de seu pai Totonho e chega depois da data da festa. O velho lobo não se interessa pelas andanças do filho, que não tem a aura de prodigo, e que jamais conseguirá ocupar o lugar de Nelo, o irmão morto. Mas não se trata de um romance freudiano, como se poderia pensar. Nelo, Totoinho, Totonho, compõem-se com Inezita, Tias Anita e Donana, Údsu e outros, na procura pelo irrecuperável. Mais que a paternidade, busca-se a origem.
Torres não nos dá um interior estereotipado, como nas novelas regionais ou de época que fazem o tormento de atores que devem imitar sotaques não localizáveis. Essas cidadezinhas de casas baixas e de grandes janelas, que os proprietários pintam como querem, mais não só conseguem fazê-las mais parecidas, não são um cenário de papel e não têm mulheres como chefes de policia. Lá ainda se sente o vazio do êxodo, como em certos contos de Pirandello, mas não são os retornados com dentes de ouro, óculos escuros e radinho de pilha que trazem as novidades. O arquipélago brasileiro esta mais unido, ainda que seja apenas pela TV, que mistura regiões separadas por centenas de quilômetros, confundem o campo e a cidade, o antigo e o novo, a linguagem do “ocho” com a gíria da metrópole. E precisa ser um escritor como Torres para nos dar conta disso.
No ambiente de sua criação, Totonho, que nunca se afastou muito dali, o velho cachaceiro que chega aos 80 anos e que conserva uma rocinha, adquire uma grandeza solitária. Ele é a permanência de um sentimento do mundo e acaba sendo como na musica de Chico Buarque, o nosso tataravô baiano.