Entrevista para Marzia Figueira

Entrevista para Marzia Figueira, para A Gazeta, Caderno Dois, Vitória (ES), domingo, 28/06/1992.

A bordo de um táxi Rio-Viena

Brasileiro “até os ossos”, ele carrega o sertão no coração aonde quer que vá. A Vitória veio para estréia do projeto Teatro do Texto, em que Paulo Betti e Luís Lima (autor da adaptação) representaram um compacto de seu Best seller, Um Táxi para Viena d’Áustria, editado em 91 pela Cia das Letras. Esta entrevista começou no saguão do hotel, continuou num táxi, mas não para Viena e sim até a Biblioteca Pública Estadual, onde terminou, minutos antes da apresentação… Antônio Torres, que vai virar biblioteca em agosto em sua terra, Sátiro Dias, na Bahia, falou desse Táxi que já foi traduzido na França e na Alemanha e espera apenas que ele suma na poeira que levantou para se dedicar a outro projeto: um romance urbano, político (e que “de certa forma” o leva de volta às origens), passado num quarto de hoje, em São Paulo. Já está praticamente pronto, dentro de sua cabeça. Mas não tem nada a ver com a viagem delirante do táxi tomado por um passageiro estranho e estressado numa das esquinas caóticas do Rio de Janeiro, onde tudo começa – e acaba.

“Um Táxi para Viena d’Áustria” é um delírio? Uma “viagem” entre aspas?

Um Táxi para Viena d’Áustria é a viagem imaginária de um homem que depois de cometer um crime entra num táxi e como está muito estressado adormece. E o rádio do táxi está tocando a Missa em Dó Maior do Mozart e é essa música que faz o passageiro delirar, ele delira ao som dessa música. E a Missa fica um contraponto para a barulheira em volta, do Rio de Janeiro, todo aquele caos urbano.

– Uma viagem no plano da fantasia…

– É, a viagem é a não-viagem, e com isso eu acredito que o livro passa é muito dos sonhos, das ilusões e desilusões de um homem do Terceiro Mundo em relação ao Primeiro Mundo.

– Essa leitura teatralizada, ou seja, no caso do projeto Teatro no Texto a transposição do romance para o palco, não muda totalmente o conceito de comunicação entre escritor e leitor? Não acha que muita gente vai preferir ver a peça a ler o livro?

– Não acredito, não. Devo dizer a você da minha emoção com esse trabalho do Luís de Lima, em que fez a adaptação do livro. Ele fez inicialmente um compacto de 30 minutos, que é o que nós vamos ver hoje na Biblioteca Estadual e é o que foi apresentado na Biblioteca Nacional. Lá foi uma coisa apoteótica, empolgante mesmo. As pessoas saíram dali correndo para comprar o livro, dentro da própria biblioteca. Então, acontece o contrário, a apresentação no palco aumenta o interesse pelo romance. Mas o maravilhoso é que o próprio Luís de Lima se interessou em fazer do Táxi uma peça de teatro. E depois dele o Stepan Nercessian me procurou, dizendo que era uma peça de teatro. E todos os diretores de cinema que conheço, e alguns que não conhecia, também me procuraram para dizer que é um filme pronto e acabado.

– Talvez porque quando se lê seu livro parece que de vez em quando você está com uma câmera na mão.

– É… A sensação que eu tive ao escrever é que tinha duas câmeras na mão. Uma estava na porta do prédio, esperando o homem descer pelas escadas para entrar no táxi. A outra câmera estava na esquina, no tumulto com a capotagem do caminhão da coca-cola. Quando o homem entrou no táxi a sensação foi de que eu jogava as duas câmeras nele, uma na cabeça e outra no coração, na alma.

– Num filme pronto, realmente. E vai sair esse filme?

– O problema é o que todos me dizem, como Geraldo Sarlo, que fez Delmiro Gouveia. Ele me disse que depois de ler o Táxi ficou muito chateado comigo por não ter dinheiro para sair correndo filmá-lo. Esse é o grande problema nacional, a falta de verba, que não precisa nem explicar. Mas só o fato de todo mundo me dizer isso já é uma coisa que me alegra muito. Cada um tem suas idéias, idéias diferentes.

– E cada leitor pode interpretar o “Táxi” à sua própria maneira, não acha?

– Acho. Eu acho que a vantagem de um livro, em principio, é essa. Como ele não é uma obra pronta, como um filme é, ou uma peça de televisão, por exemplo, ele abre muito a imaginação do leitor.

– É o livro, o leitor e sua imaginação.

– Exatamente! O leitor constrói sua própria história a partir daquela história.

– E o “Táxi” é aquele romance definitivo, enfim, que você vem buscando desde que estreou na literatura em 72 com “Um Cão Uivando para a Lua”?

– Certamente não, porque eu pretendo escrever ainda muitos livros. Mas dentro desse momento ele foi aquele que eu estava buscando.

– Quer dizer que você encontrou uma forma nova de escrever, é isso?

– Eu preciso lhe contar o seguinte: eu sonhei com a história desse livro. Uma noite eu sonhei que matava um amigo meu, um escritor, e passei a noite toda, no sonho, fugindo de táxi…

– Então o personagem, o Rosavelti, o Veltinho, é você? “Táxi” é autobiográfico?

– Deve ter muita coisa de mim, mas eu não diria que o romance seja necessariamente autobiográfico, mas eu acho que tudo que escrevo contém muito das minhas vivências, da minha experiência de vida, dos meus roteiros de viagens, do sertão da Bahia até a Europa, São Paulo, Rio, todo esse Brasil que eu já rodei muito, tudo isso aparece dentro dos meus livros. Mas, claro, eu espero ser um romancista e, portanto, alguém dotado de imaginação. E que esses referenciais todos, meu corpo-a-corpo com a vida, me sirva de material, mas um material que apenas dê o toque de partida para as minhas histórias.

– E o sonho com o “Táxi”?

– Pois, é, como eu estava contando, acordei apavorado, suado, me perguntando que violência é essa que carrego dentro de mim… Que crime é esse? Não adianta me perguntar que amigo era porque não posso contar… (Risos). Fiquei extenuado, contei para minha mulher, Sônia, comentando como fora um sonho apavorante. Só mais tarde, quando estava fazendo a barba é que me deu conta de que não era um sonho, era um romance pronto. Enquanto eu dormia, meu inconsciente trabalhava para mim.

– Foi só colocar, então, a história no papel?

– Não, ai daria só uma página. Comecei a escrever esse romance em 87, mas no meio do caminho achei que havia algo de falso nele. Eu trabalhava em propaganda e me desempreguei.

– Já virou peça, pode virar filme, foi exportado…

– Pois é, pode virar o que se quiser, é só o Brasil ter condições porque as pessoas querem fazer dele muitas coisas. Antes de sair aqui foi comprado lá fora. Já recebi as provas da tradução francesa, sai em novembro em Paris, estarei lá para o lançamento.

– Mas você acha que o “Táxi” vai ser bem recebido pelo leitor que não conhece nem vive a realidade do Brasil atual, tão amarga? Esse leitor vai entender? Tem muito leitor brasileiro que não decifra.

– Ah! A primeira carta que recebi da editora Gallimard, nada menos que a Gallimard, da Sra. Alice Raillard, conselheira editorial da Gallimard, crítica literária famosíssima, tradutora de Jorge Amado, João Ubaldo, me dizia o seguinte: “Brésilien, oui, mais contemporainement universal”… O que quer dizer que ela considera o livro muito brasileiro mas universalmente contemporâneo.

– Como traduzir o linguajar, as gírias, as frases feitas, tão tipicamente brasileiras?

– Meu amigo Henri Raillard estava no Rio quando eu estava escrevendo, acompanhou muita coisa, deu palpite, é jovem, ator, jornalista, escreve muito, tem uma vivência da linguagem moderna do Brasil, eu o escolhi para traduzir. Ele fez um trabalho perfeito, levou seis meses traduzindo, mas a reação da Gallimard diante do livro foi esta: não parece tradução, parece um livro escrito em francês! Fiquei muito feliz com isso, e se depender da tradução dele tenho certeza de que será um sucesso.

– Lá como cá… E na Alemanha?

– A tradutora alemã veio conferir algumas coisas comigo e eu lhe mostrei a cópia da tradução do Henri. Ela achou brilhante. Para a Alemanha, ela me deu uma idéia de mudar um pouco o título, que em francês ficou Un Taxi pour Vienne d’Austriche (porque na França também chamam Viena d’Áustria como em Portugal). Mas na Alemanha ela me deu uma sugestão que achei muito inteligente: mudar para Um Táxi Rio – Viena. Não ficou bonito? E dá o mesmo sentido da viagem. Essa semana eu tive duas grandes alegrias: uma foi ver as provas do Táxi em francês e a outra vou lhe mostrar. (Levanta-se e pega a edição do Essa Terra que está saindo em Israel). É uma emoção muito grande! Essa Terra saiu primeiro na França, depois na Alemanha, na Inglaterra, nos Estados Unidos e, agora sai em Israel. Um Cão Uivando para a Lua saiu na Argentina e Balada para um velha infância perdida teve uma bela edição também na Inglaterra e nos Estados Unidos.

– Como se sente como um escritor brasileiro mais conhecido no exterior do que em seu país? Ou não concorda com isso?

– Não, não concordo. Não sou mais conhecido lá fora, não. É que o Brasil é um país grande demais e isso complica muito. Mas no quadro dos escritores contemporâneos, eu me sinto muito bem no Brasil, já vendi muito livro. O Essa Terra já passou dos 100 mil exemplares.

– Você é considerado na Europa como um dos melhores escritores da América Latina, ao lado de Jorge Amado, Drummond, Graciliano Ramos, por exemplo. Mas no Brasil um crítico do Estadão disse que às vezes você “macaqueia” o estilo de Rubem Fonseca e que Táxi faz parte do “besteirol” que Kundera escancarou. O que pensa dessa opinião, e da crítica de modo geral?

– A única crítica negativa que o Táxi recebeu foi essa, do Estadão. Eu viajei o país inteiro de Passo Fundo a Manaus, a bordo desse Táxi, ganhando críticas esplendidas, no Rio, São Paulo, em todo lugar. É uma questão de opinião e com opiniões divergentes a gente aprende muito… Acho que o artista brasileiro tem uma posição um tanto infantil diante da crítica, se melindra, mas acredito que aprendo mais com críticas negativas que com críticas positivas. Entretanto, é preciso ver quando o crítico está exercendo realmente a crítica ou quando ele está tendo uma postura meramente pessoal. A crítica, para mim, está assim equacionada. Se o Táxi fosse ruim, puxa, todo mundo teria dito que era ruim, mas a maioria esmagadora aplaudiu. O livro foi capa de tudo quanto é Caderno, teve primeira página do Globo, Jornal do Brasil, de A Gazeta… Agora, para você ver como são as visões, o crítico da Folha, por exemplo, achou que meu livro era exatamente na contramão da literatura urbana que se faz hoje. Ficou até chato para mim. Imagine, na contramão de um Rubem Fonseca, de um Loyola, de um Roberto Drummond. Veja você, uma opinião completamente diversa, achando até que meu texto criticava os outros textos. Ele fez uma entrevista comigo por telefone e queria saber se eu concordava que meu trabalho era um trabalho de oposição a esses outros tipos de trabalho.

– E é?

– Claro que não. Eu respondi que não estou em briga nem em luta com meus colegas escritores contemporâneos. Eu quero mais é que eles tenham muito sucesso porque o sucesso deles me ajuda. O sucesso que não me ajuda em nada é o do Sidney Sheldon… Quando um leitor brasileiro está lendo um escritor brasileiro ele está assimilando uma dicção, uma linguagem, que é a minha, um comportamento, um texto, que é também o meu.

– A propósito de Sidney Sheldon, você disse (aqui em Vitória mesmo) uma vez que nunca leu um Best seller. Por quê? Preconceitos? Ou agora que Saramago, Rubens Fonseca, Chico Buarque e Antônio Torres entraram para a lista, você mudou e já lê Best seller? Mudou você ou mudou o público que compra livro?

– Não é isso… (Risos). É que quando a gente fala em best seller não está incluindo essa categoria de escritor. Uma coisa é um livro de qualidade que vira best seller. E aí eu acho que a Companhia das Letras mudou, num certo sentido, o gosto do público. Ela conseguiu introduzir no mercado o best seller de qualidade literária. E eu não estou contra as pessoas que entram para a lista de best seller, não é isso. É que existe uma indústria do best seller, aquela coisa que é feita quase que por computador. Bota-se uma pitada de sexo, uma pitada de espionagem…

– É uma fórmula, não?

– É uma fórmula! É uma fórmula infalível, claro. Esses caras ficaram donos do mercado. Mas no Brasil recentemente começou a surgir um outro tipo de leitor. Um leitor mais sofisticado, que começou a exigir mais.

– Como carioca que já se tornou, você esqueceu a “seca, miséria e fome”? O que ainda conserva das raízes do sertão baiano?

– Bom, eu carrego o sertão comigo onde vou e ele está sempre presente. Mesmo que eu não queira, ele me chama de volta. Agora mesmo eu virei biblioteca na terra em que nasci. Uma terra sem rádio, sem notícias das terras civilizadas, como cantava Luiz Gonzaga, o rei do baião… sei uma estantezinha, eu descobri Castro Alves, Gonçalves Dias e também Alan Kardec e Humberto de Campos… Aí chegou a professora Teresa lá e descobriu que eu gostava de ler e começou a fazer curso intensivo diário de leitura… E me botava para escrever todo dia, e em botava para ler em voz alta e até hoje adoro ler em voz alta!

– Então você devia estar no palco no lugar do Paulo Betti, dentro do “Táxi”, não acha?

– Acho que eu devo ter alguma coisa de ator, sim, por causa dessa professora… Voltando a sua pergunta, esse sertão me chama de volta, ao criar uma biblioteca pública com meu nome em Sátiro Dias. Quero aproveitar a oportunidade para fazer um apelo aos escritores do Espírito Santo para enviarem seus livros para lá. A terra é pobre, o lugar é pobre. Por isso, enviem seus livros aos cuidados do prefeito José Robério Batista, Biblioteca Pública Antônio Torres, Sátiro Dias, Bahia. O CEP é 48 485, não tem erro. Quando recebi a carta do prefeito dizendo que a escolha não tinha sido dele mas da terra, do povo, fiquei com aquele papel na mão, timbrado com o nome da biblioteca, emocionado, pensando que eu ainda não tinha idade para isso…

– Homenageado em vida, é a glória, não é não?

– E não é? Fui convidado para inauguração, vai ser dia 6 de agosto, e é claro que vou.

– Falar em idade, você ultrapassou a barreira dos 50. Em que acredita agora? Continua acreditando na Loto e na Sena, já ganhou? Na Santa Madre Igreja? E no Partido Comunista, que não existe mais?…

– Estou com 51, é uma boa idade… Não ganhei na Loto (risos) e tenho minhas religiosidades. Mas agora só acredito mesmo é no trabalho.

– E no Brasil, você acredita?

– Está difícil de acreditar. Está duro para encarar o Brasil de hoje, do jeito que está. Eu sempre me pergunto como é que um país como este, com tanta beleza, tanta terra, com tanto potencial humano e criativo, com tanto potencial econômico, pode ter chegado à situação em que está.

– A que conclusão você chegou?

– Que deram um nó no Brasil e agora não sabem desatar. Essa “yuppada” que tomou conta do poder, essa “yuppada” jeca, que só fez o caos, esses enriquecimentos rápidos que a gente está vendo aí, enquanto tudo empobrecia, num país que não é pobre, é rico. Então o que precisamos é de boa administração e honestidade.